Murro no Estômago

Ana Rebordão, António Neves Nobre, Carla Filipe, Igor Jesus, Pedro Barateiro, Salomé Lamas

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Murro no Estômago ou os encontros no real
A expressão murro no estômago multiplica-se em usos diferenciados, situações diversas e detém uma significação pessoal (dependendo até se já se levou, ou não, um murro no estômago, e que tipo de murro foi esse), mas faz também parte de um léxico colectivo, podendo entrar facilmente em qualquer jogo de linguagem (pelo menos em algumas línguas). Na sua acepção geral, o murro no estômago remete para uma situação inesperada, muitas vezes dolorosa ou paralisante. Rude, brejeira, vernácula, poética, metafórica, violenta, agressiva. Esta corrente de adjectivos é ainda curta para a amplitude de significados que a expressão murro no estômago pode ter no quadro semântico e pragmático da linguagem, e também no âmbito desta exposição. Se por motivos heurísticos ou de economia discursiva fosse necessário escolher uma palavra para descrever quando uma obra de arte dá um murro no estômago, essa palavra seria ruptura.

A ruptura derivada desse murro no estômago acontece quando uma obra invade o sujeito e o confunde pela resistência simbólica a essa invasão: é esta intromissão na subjectividade que provoca uma espécie de momento traumático, ou seja, uma experiência indizível, visceral, muitas vezes pré-cognitiva. Na maior parte dos casos não lhe (re)conhecemos causa consciente ou racional, só efeito. E é esse efeito intrusivo da obra de arte no espectador (que é sempre corpo que espera alguma coisa) – logo no meu corpo –, essa interpelação agressiva e inesperada, que se reconhece nos trabalhos aqui apresentados. Claro que as obras de Ana Rebordão, António Neves Nobre, Carla Filipe, Igor Jesus, Pedro Barateiro e Salomé Lamas, que compõem esta exposição, nos (aliás, me) acometem de modos diferentes, compósitos e complexos, convocando individualmente e no seu conjunto ora o excesso sensorial, ora a falência porque ainda persistência tanto de meta-narrativas como de taxonomias objectuais, e ainda a expressão do visual pelo visual na ausência de referenciais directos.

O ‘murro no estômago’, nas suas diversas dimensões, e sobre o qual tento escrever em esforço inútil (cada um sabe dos murros que leva e que, como referido supra, não são verbalizáveis), tem surgido na Teoria da Arte e nas Teorias da Cultura de modos muito mais produtivos, pelas mãos de diversos autores que informaram (inconscientemente) o pensamento curatorial desta exposição. No tempo da escrita – esse vício discursivo da arte contemporânea que tanto prezo – surgiram de imediato, deixando a certeza que sempre estiveram lá. Gilles Deleuze, por exemplo, na obra Lógica da Sensação, parte da pintura de Francis Bacon para reflectir sobre trabalhos artísticos (não só visuais) que apelam à “realidade intensiva […] e isto acontece quando a sensação alcança o corpo através do organismo, adquire um carácter excessivo e espasmódico, rompe com os limites da atividade orgânica” (Deleuze, 2007: 51-52).

Hal Foster, no seu texto charneira “O Regresso do Real”, incluído no livro homónimo, refere-se ao “realismo traumático” presente em alguns trabalhos artísticos. Foster abordada um conjunto de obras enquanto veículos para o real, no sentido lacaniano do termo, que permanece inatingível porque resiste ao simbólico e ao imaginário, ou seja, à linguagem. Para tal, entre outras referências, convoca o conceito de punctum de Roland Barthes [1], e de tuché de Jacques Lacan. Para Barthes, o punctum “é também picada, pequeno orifício, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me mortifica, me apunhala)” (Barthes, 2006: 35). Do tuché de Lacan resulta o assalto do trauma ao sujeito que, incapaz de assimilar o que vê e/ou sente, e de o transformar em linguagem, experimenta os seus efeitos (Lacan, 1973). Tanto o punctum como o tuché se assemelham, feitas as devidas ressalvas, à ruptura-efeito de um murro no estômago, esse corte que traz o real de forma abrupta, e que se sabe real porque outros também o sabem.

A exposição Murro no Estômago resulta, assim, de um conjunto de encontros nesse real entre mim, a Ana Rebordão, o António Neves Nobre, a Carla Filipe, o Igor Jesus, o João Gaspar, o Pedro Barateiro, o Pedro Faro, a Salomé Lamas, a Sara Antónia Matos, entre outras pessoas, obras, autores, textos, palavras, mas resulta principalmente de coisas que não se conseguem dizer.

(Clarice Lispector disse que a vida é um soco no estômago. Não acredito nisso, mas que os há, há.)

BARTHES, Roland (2006), A Câmara Clara, Lisboa: Edições 70, 1980.
FOSTER, Hal (1996), The Return of the Real, Cambridge & London: MIT Press.
DELEUZE, Gilles (2007), Francis Bacon: lógica da sensação, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
LACAN, Jacques (1973), Les Quatre Concepts Fondamentaux de la Psychanalyse, Paris: Seuil.

[1] Carla Filipe, numa das conversas sobre esta exposição, foi a primeira a chamar-me a atenção para a semelhança entre a intencionalidade que eu queria imprimir à expressão murro no estômago e o punctum de Roland Barthes.

-Ana Cristina Cachola, Curadora

* Por opção expressa da autora, o texto não segue o Acordo Ortográfico de 1990.

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Publicação

Título
Textos de
Murro no Estômago
Tobi Maier, Ana Cristina Cachola, Marta Espiridião, Miguel Mesquita, Stephan Dillemuth, Carla Filipe, João Ribas, Antonia Gaeta, Pedro Barateiro, Deidre Boyle