– 03.03.2013
Uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, em parceria com o município de Budapeste. Este programa possibilita a dois artistas portugueses a realização de um trabalho artístico em Budapeste, durante um mês, e a dois artistas húngaros a realização de um trabalho artístico em Lisboa, com igual duração.
Desde 1992, data em que foi celebrado o acordo de geminação, o programa de residência artística já permitiu a cerca de 40 jovens artistas portugueses desenvolver um projeto de trabalho na cidade de Budapeste, e acolheu na cidade de Lisboa igual número de artistas húngaros com o mesmo propósito.
O intercâmbio é uma organização conjunta da Secretaria Geral – Divisão de Relações Internacionais e da Direção Municipal de Cultura.
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Não existe uma relação direta entre a exposição de André Romão (Lisboa, 1984) e a residência em Budapeste. Na capital húngara, o artista pensou e esboçou um texto que só ganharia corpo, meses depois, em Antuérpia. Escolhido para participar numa residência de quatro meses no AIR Antwerpen, ocupou com uma escultura um plinto que estava vazio desde 1970 no centro do Stadspark. Nesse ano, alguém roubara ou destruíra a estátua do poeta flamengo Frans de Cort (1834-1878), deixando a estrutura de suporte entregue a uma discreta, mas perturbadora solidão.
Não é a primeira vez que André Romão se “confronta” com plintos vazios ou estátuas que perderam a autoridade. Basta recordar o plinto coberto de linho em “O Inverno do nosso Descontentamento” na Kunsthalle Lissabon em 2010. Ou, também nessa exposição, uma referência, desta vez bem mais táctil, à escultura clássica, com fins de representação histórica e política, na estátua tombada do navegador Nicolau Coelho. Para se perceber o uso destes materiais e as significações que suscitam, é importante saber que o artista tem manifestado um interesse particular pela história política e cultural da Europa. Certos capítulos ou episódios dessa narrativa servem-lhe como materiais que estuda, explora e transfigura com a linguagem da arte. Concomitantemente, as suas obras permitem-se articular um discurso, que é ao mesmo tempo poético, visual e conceptual, sobre a relação da arte com a cultura e a sociedade. Os meios e estratégias dispostos para esse fim são diversos: um certo rigor herdado do minimalismo, a liberdade exigente do conceptualismo, uma versatilidade no trabalho com as imagens em movimento.
Na Quadrum temos três peças: o texto que o artista escreveu em Antuérpia e duas esculturas na forma de plintos vazios. A obra escrita consiste numa meditação sobre as tensões, as aporias e a violência que a escultura carrega e projeta e enfatiza um elemento cada vez mais habitual na obra de André Romão: o texto. “Para mim, é uma das formas mais próximas da minha maneira de pensar, de criar imagens, de pôr em relação ideias e ‘coisas que já existem no mundo’. No modo como trabalho, as imagens e esculturas não chegam, assim como as palavras também não. Há coisas que não pertencem às palavras, mas também há coisas que não pertencem às esculturas. Na maioria dos casos, complementam-se. São mais uma camada em cada trabalho. Permitem uma complexidade maior, uma construção e desconstrução permanentes de ideias”. O título do texto “Vibrant Void”, refere-se à peça que o artista instalou no lugar da escultura desaparecida em Antuérpia enquanto as palavras evocam os desejos, as promessas ou os materiais que, na história humana, participaram de gestos ou ações afins.
Mas nem por isso André Romão identifica lugares ou períodos históricos. As suas palavras possuem a indeterminação simbólica de um poema. Poderão elas sobreviver como texto autónomo desta exposição? “Cada trabalho procura a sua forma de circulação e procuro que ela seja o mais eficaz possível. Varia de peça para peça. Nas peças de som, por exemplo, o texto só existe no local. ‘Vibrant Void’, pelo contrário, é um texto para circular, para ser visto noutros contextos, tem uma abertura muito grande, nasceu como poster para circular, já o expus duas vezes e já foi publicado antes”.
Avançamos na direção das esculturas intituladas “Notes on the history of violence” e “The aristocrat’s dancing shadow”, monocromos negros e verticais de alturas e geometrias diferentes aos quais alguém arremessou pigmentos. O efeito dessa agressão simbólica é pictórico. “É propositado, queria que fossem objetos sedutores, daí o pigmento dourado e o pigmento prego. As imagens são sempre armadilhas. Queria que percorressem uma linha fina, uma lâmina afiada, que fossem agradáveis e violentas ao mesmo tempo. Só isso as poder tornar perigosas”.
As marcas que o pigmento deixa no chão e nas obras criam a ilusão de sombras, de desenhos. “É um risco que se tem de correr. Acredito muito que as obras de arte operam ao nível da sedução, do desejo. É só uma questão de entrega, de comprometimento, de vulnerabilidade. Um abraço pode acabar com uma facada nas costas”. A propósito de ambivalência, as esculturas de André Romão têm uma relação peculiar com o minimalismo. Significam diante de um corpo, diante de uma presença humana; e a eventual ilusão pictórica que provocam não foi um efeito interdito ao próprio minimalismo. Mas não reivindicam o seu absolutismo da forma e da geometria austera, nem a unidade e a neutralidade que lhes estiveram associadas. Sugerem antes uma relação com um imaginário cultural e político, extravasam a narrativa contida no objeto. “Não acredito na autonomia dos objetos. Há [aqui] uma referência crítica ao minimalismo. Um ato de assumir o caráter narrativo e de projeção nos objetos Numa obra de arte tudo é uma projeção, os materiais, as dimensões. Evocam coisas, referem eventos”.
As esculturas mimetizam as dimensões do corpo do artista. A sua altura, largura de ombros, altura da cintura, amplitude de braços. “São corpos no espaço, tornam-se atores numa peça. Uma escultura é um corpo, interessa-se saber como reage ao arremesso de um fino pó dourado, como os processos económicos, políticos e culturais se sentem nos ossos”. Impelido por semelhante interrogação, o ato de André Romão confronta-nos com a possibilidade da emancipação estética e participação política, inscrevendo-se, também ele, “na história da escultura que é a história da violência da substituição e da celebração”.
-José Marmeleira
– 03.03.2013