Vibrações Centrífugas

Héctor Zamora

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Vibrações centrífugas ou o «cantar dos búzios»

Héctor Zamora (México, 1974) vive atualmente em Lisboa, onde, em março de 2017, expôs a performance-instalação Ordem e Progresso, o segundo projeto site specific a ocupar a Galeria Oval do MAAT. Esta apresentação integrou a programação da primeira edição da BoCA – Biennial of Contemporary Arts e da Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura 2017, no âmbito da qual Zamora foi um dos artistas convidados a integrar o programa de residências artísticas promovido pela Câmara Municipal de Lisboa, através das Galerias Municipais.
É neste contexto que o projeto Vibrações Centrífugas começa a ser concebido e desenvolvido, num formato de pesquisa e experimentação próprio do exercício em regime de residência, a qual previa inicialmente uma pequena apresentação no ateliê do trabalho desenvolvido nesse período e espaço.

Surge, logo numa fase inicial, o convite ao compositor e músico Victor Gama (Angola, 1960) para assumir uma coautoria na conceção de todo o projeto sonoro, bem como a previsão de envolver um coro. Desde cedo se torna evidente a dimensão e complexidade do projeto, levando à sua transição do ateliê para o Pavilhão Branco.

Vibrações Centrífugas é uma performance-instalação sonora que se inspira na forma, movimento e som dos moinhos de vento tipicamente portugueses e, em particular, das cabaças de cerâmica que se lhes conhecem – os búzios. De vários tamanhos e com duas formas diferentes, estas peças são o engenho que permite ao moleiro medir, através da ressonância que produzem, a direção e intensidade do vento, e manobrar as velas para dele tirar o maior rendimento. A energia do vento aciona o movimento giratório do mastro e das varas onde estão fixos os búzios, cujo peso é responsável por equilibrar a referida rotação e que, posicionados estrategicamente na horizontal e com a boca de frente para o vento, cortam a direção em que este sopra produzindo um som característico – o «cantar dos búzios», como é popularmente conhecido. Assim, a partir do interior do moinho, o moleiro é capaz de manipular as velas e alinhá-las na posição e velocidade que mais otimizam e rentabilizam o seu desempenho.

É destas peças, e desta sonoridade, que Héctor Zamora se apropria para criar, juntamente com Victor Gama, uma série de instalações escultóricas e sonoras. O som é o grande protagonista deste projeto, e múltiplas possibilidades e variações permitidas pela interação com os búzios são interpretadas, experienciadas, editadas e organizadas numa composição plástica.

Mais uma vez, Zamora resgata para a sua prática artística um assunto emergente da contemporaneidade e cuja discussão parece adormecida ou dispensável. Na atual sociedade industrializada e de alta-tecnologia, assiste-se à extinção de artes e ofícios, técnicas, métodos, processos artesanais e tradições, como neste caso em concreto a moagem de cereais através de um aparelho mecânico movido pela força do vento introduzido em Portugal no Século XVI.

Joaquim Constantino, um dos protagonistas deste projeto, é proprietário de um moinho na pequena localidade de Casal do Moinho de Frade, na freguesia de Ventosa, em Torres Vedras, que serviu de base à investigação levada a cabo por Zamora e foi um importante instrumento no processo de produção artística. Constantino é um dos raros moleiros que, em Portugal, têm resistido à industrialização e produção massificada de farinhas. Com fascínio e paixão pelo «cantar dos búzios», mantém o seu moinho a operar segundo o sistema tradicional. Este está na sua família há três gerações e é um claro exemplo da importância que estes equipamentos de engenharia avançada têm na história e cultura portuguesas. Em 2016, foi iniciado o processo de candidatura dos moinhos de vento típicos do Oeste português a Património Imaterial Nacional e da UNESCO, na tentativa de preservar a sua estrutura, funcionamento original e tradições. A paisagem desta região do país é fortemente marcada pela presença, durante muito tempo desvalorizada, de moinhos de vento, a grande maioria dos quais se encontra em ruínas.

A performance-instalação foi pensada a partir das características espaciais do Pavilhão Branco e, assim, está distribuída em três momentos distintos. Cada um deles representa uma ocupação física que é ativada como um dispositivo performativo e enfatiza a dimensão física que o som ganha no espaço, quer pelo preenchimento do vazio, quer pelo circuito/trajeto que percorre e define.

A ação desenrola-se de forma itinerante pelos dois pisos, dividida em curtas atuações sucessivas que, quase autónomas, são, na verdade, interdependentes e comunicantes, criando uma narrativa que no seu conjunto compõe o projeto.

No piso térreo, onde a estrutura do edifício separa o espaço em duas salas simétricas, a performance divide-se em dois momentos.

Em Movimento I, um coro de 24 músicos – divido em quatro naipes e dirigido por João Barros – interpreta uma composição de Victor Gama, a qual explora através da plasticidade da voz a sonoridade hipnotizante do «canto dos búzios». A composição incorpora uma gravação áudio de 6 canais do verdadeiro som do moinho, captado e editado por Gama. O coro, posicionado em forma de círculo, convida o público a assistir do centro, de forma a fruir da ilusão da perspetiva audível e multidirecional causada pelo sistema de som surround que as vozes, sincronizadas num movimento centrífugo, irão reproduzir.

Em Movimento II, 4 performers acionam 4 instrumentos desenhados especialmente para este projeto, e em particular para esta exibição, que permitem a rotação de pequenas jarras ao longo do eixo longitudinal. Estes são inspirados no bullroarer, um instrumento musical pré-histórico, do período do Paleolítico, utilizado em cerimónias e rituais. O instrumento possuía um mecanismo de rotação que lhe concedia uma vibração e som característicos, numa determinada frequência, capazes de atingir quilómetros, o que o tornou numa importante, sofisticada e fascinante tecnologia de comunicação a longas distâncias. À semelhança da manipulação do bullroarer, a cinesia circular e o som gerado são referências diretas ao moinho de vento, mas através de uma interpretação cuja intensidade sonora faz uso de uma escala e velocidade completamente diferentes.

Movimento III propaga-se por todo o piso de cima, onde os intérpretes dão um autêntico concerto de percussão e sopro, com instrumentos que são uma apropriação da variação completa de tamanhos e formatos de búzios e jarras que compõem um moinho. O arranjo «musical» proposto por Victor Gama inicia-se de certa forma estruturado abrindo gradualmente o espaço. A disposição das várias peças no espaço obedece à formação de círculos concêntricos, nos quais os búzios de maior dimensão se assentam deitados no chão e as jarras e búzios menores orbitam suspensos no teto, ganhando uma dimensão escultórica muito ligada aos códigos e formalidades de um ritual.

A voz, o sopro, a percussão e o movimento centrífugo combinam-se numa performance que desperta os sentidos e propõe a redescoberta e reinvenção dos sons do vento.

Como é habitual no trabalho de Héctor Zamora, a exposição é o resultado da ação. Evoca a memória do espaço, do tempo e das pessoas que determinaram um acontecimento, e cujo rasto nos sugere uma ausência da qual emerge uma nova presença.

As suas obras pedem para ser recebidas, vistas, ouvidas e experimentadas pelas pessoas num espírito de envolvimento social, como se naquele momento todas fossem uma pequena comunidade.

– Sílvia Gomes

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