Tobi Maier: Como foi anunciado, o evento de hoje — esta conversa — faz parte da exposição Cemitério das Âncoras. No âmbito desta exposição, os artistas Veronika Spierenburg e Nuno Barroso irão colocar uma série de questões a Álvaro Garrido, explorando e procurando expandir tópicos inerentes à exposição. Vou introduzir os participantes com informações providenciadas por eles/as e passamos para as cinco questões:
Álvaro Garrido «é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, e seu atual diretor. Foi diretor do Museu Marítimo de Ílhavo entre 2003 e 2009. Investigador do CEIS20, tem uma vasta obra publicada sobre temas de história da economia e das instituições, com contributos internacionais na história das pescas marítimas, história dos corporativismos e da economia social. As suas publicações encontram-se reunidas em livros, artigos científicos e capítulos de livros e textos de catálogos. Recentemente publicou, como autor ou em coautoria, os seguintes livros: As Pescas em Portugal (Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2018); A Economia Social em Movimento. Uma História das Organizações (Tinta da China, 2018); Too Valuable to be Lost: Overfishing in the North Atlantic since 1880 (De Gruyter, Berlim, 2020); Il Portogallo di Salazar. Politica, Società, Economia (Bologna University Press, 2020).»
O Nuno e a Veronika estão aqui entre nós, eles têm também obra vasta, e a exposição que está na Galeria Boavista, até [20 de junho de 2021], demonstra essa vasta pesquisa num projeto que demorou quatro anos pesquisando a história da pesca artesanal em Portugal. A Veronika «trabalha na zona de intersecção do som com o movimento corporal e a arquitetura, utilizando uma grande diversidade de suportes e materiais. Estudou fotografia na Gerrit Rietveld Acamedy em Amesterdão, tendo depois realizado um mestrado em belas-artes no Central Saint Martin’s College, em Londres.» E o Nuno «estudou engenharia do ambiente na Universidade Nova de Lisboa e fotografia no Atelier de Lisboa. E atualmente trabalha no projeto de arte colaborativa Guarda Rios, um coletivo nómada e experimental que desenvolve investigação sobre os rios da Península Ibérica..» […]
Fotogramas do filme Cemitério das Âncoras (2021), de Veronika Spierengurg & Nuno Barroso. Cortesia dos artistas.
Foram partilhados cerca de 90 segundos deste filme no início da conversa.
Veronika Spierenburg: […] So I’ll just do one minute of introduction about how we started this research, that began with the Anchor Cemetery in Barril [Praia do Barril, Santa Luzia, Tavira]. We wanted to explore the history with our own eyes and understanding. Those big anchors are used for setting nets in a maze to capture the tuna in a central pool. Nuno and me we started to see each other frequently, we drove to different places on the coastline in Portugal and during our visual anthropological investigation of the Portuguese coastal landscape we tried to understand the coherences of ecological, social, and political issues in small scale fisheries. During this period we were capturing visual footage and recorded oral histories of the respective fishing communities. So, without being too moralistic we wanted to get a better knowledge on this topic and, during our journeys, several questions arose and therefore I’m very happy we can question Álvaro. Thanks, Álvaro, for accepting this invitation, thank you. [1]
Nuno Barroso: Olá, Álvaro, muito obrigado por ter aceitado o convite. Só para complementar um bocadinho a introdução da Veronika: nós estivemos neste processo durante três, quatro anos; os nossos conhecimentos inicialmente eram relativamente pequenos, havia aqui uma espécie de uma excitação visual com este lugar (o Cemitério das Âncoras na praia do Barril), que nós percebemos que era limitado. E então começámos a abrir e a expandir, até chegarmos a uma viagem que foi feita em várias partes, de Vila Real de Santo António a Caminha. Claro que é um projeto muito ambicioso, é uma ideia que exigiria mais tempo do que aquele que nós tivemos e talvez um envolvimento maior, mas foi até onde nos foi possível chegar e depois surgiu esta oportunidade de fazer esta exposição e de fechar. E, de facto, como a Veronika estava a dizer, a nossa curiosidade é insaciável, e nós queremos sempre expandir, expandir, e tentar perceber mais, se bem que temos noção de que é um conteúdo absolutamente vasto, com muitas frentes, muitos aspetos complexos. Nós tentámos centrar-nos nesta questão da pesca de pequena escala, por ser um aspeto que nos parece que já foi essencial das nossas costas, que já foi uma atividade economicamente com alguma relevância, e socialmente e culturalmente também, mas que, de facto, hoje em dia, percebemos durante este processo que se está a desvanecer, a desaparecer, e que há um legado de conhecimento e de muitas coisas que se esvai, mas que faz parte também do avançar no tempo.
A nossa primeira pergunta vem ao encontro deste trecho inicial do filme, feito no Cemitério das Âncoras, na Praia do Barril, Algarve, que era uma armação de pesca do atum, como a Veronika também referiu, e que acabou por fechar devido a uma sobrexploração dos recursos desta espécie que entrava pelo Mediterrâneo… E a nossa pergunta vai no sentido de perceber se a pesca têm sido uma coisa relativamente erosiva, destrutiva ― poluição marinha, alterações climáticas, tudo isto está a fazer uma pressão enorme nos ecossistemas marinhos — que soluções há, qual pode ser o futuro da pesca? E também acrescentar, para percebermos e enquadrar historicamente este assunto, quando é que a sobrepesca e a questão dos stocks/diminuição dos stocks é primeiramente mencionada na história portuguesa?
Álvaro Garrido: Olá, olá a todos. Olá Veronika, olá Nuno, Tobi, todos. Obrigado pelo vosso convite. Eu tenho imenso gosto em participar neste vosso projeto, que é um projeto para o público. É muito curioso que o convite que me fizeram para dar resposta, ou tentar dar resposta, a algumas perguntas fundamentais começa por uma imagem da praia onde costumo passar férias. Isto é muito comum e reflete a relação paradoxal que hoje temos com o mar; ou seja, para entendermos a pesca, em regra começamos por interrogar ou por habitar lugares que hoje são basicamente de alienação, ou de puro lazer. E isso é muito curioso, porque se trata de um paradoxo muito interessante. Eu conheço bem a Praia do Barril, e esse historial das âncoras que, de facto, reúne uma carga simbólica imensa e que evoca, como o Nuno nos estava a dizer, a sobrepesca, ou seja, o fim de uma atividade, uma faina humana que foi, aliás, representada com tons épicos quando, na verdade, era uma caçada que incluía aspetos dantescos, a faina do atum.
Em relação à sobrepesca, é uma questão extremamente complexa. Um dos grandes enigmas do nosso tempo é precisamente este: porque que é que boa parte dos recursos da pesca estão praticamente esgotados ou em riscos de se perderem. É uma história antiga. Em Portugal, as referências acerca da sobrepesca são relativamente tardias — tal como outros tópicos da ciência, do ambiente e do conhecimento dos oceanos, chegaram relativamente tarde a Portugal. O primeiro autor que faz uma reflexão importante sobre a relação entre a exploração pesqueira, indústria pesqueira e abundância natural das espécies é seguramente o comandante Baldaque da Silva, no final do século XIX, num livro monumental, “Estado Actual das Pescas em Portugal”, que ele escreveu e desenhou calcorreando as praias do litoral e inquirindo os pescadores e as empresas e pequenas companhas que havia. Mas as referências, na verdade, começam por ser anteriores, sem se usar exatamente o conceito e a expressão sobrepesca. Elas já são perfeitamente notadas em finais do século XVIII, ou seja, a questão do equilíbrio da exploração dos recursos da terra e do mar (a sustentabilidade, como hoje se diria) é uma invenção do iluminismo. Essa ideia da sobrepesca, ou a ideia de que se poderia estar a pescar mais do que o meio natural suportava, é uma ideia do iluminismo, dos naturalistas de final do século XVIII, e que depois é desenvolvida por aquele academismo científico de inícios do século XIX. Mas ela é elaborada, ou melhor, ela ganha uma evidência dramática, em finais do século XIX, a partir da Grã-Bretanha, o que não é por acaso. É o problema do Mar do Norte, e da exaustão dos pesqueiros de bacalhau e de arenque do Mar do Norte, que, de facto, cria um alerta científico moderno, ou seja, com uma elaboração teórica associada, em relação ao problema do overfishing, da sobrepesca. 1880, 1890, finais do século XIX, a Royal Commission of English Fisheries (creio que era este o nome, ou “…British Fisheries”) é, digamos, a grande instituição que elabora o problema da sobrepesca, e depois estas elaborações teóricas, metodológicas, empíricas, chegam a Portugal. E na verdade chegam a Portugal em finais do século XIX, colocadas por Oficiais de Marinha, mas são desenvolvidas a sério, na tentativa de opor remédios ou soluções ao problema da sobrepesca, apenas nos anos 40 do século XX, vejam lá. 1943 é a data da publicação de um livro que hoje é um tesouro, intitulado “O Problema da Sobrepesca”, do inglês Edward Russell, que era então o diretor do laboratório de Lowestoft, na Grã-Bretanha, que era, digamos assim, “a Meca dos biólogos” daquela altura. Esse livro é traduzido para português pelo médico veterinário Alfredo Magalhães Ramalho, que era na altura o diretor da Estação de Biologia Marítima em Portugal, foi fundador ― um dos fundadores — do Aquário Vasco da Gama, portanto, foi um naturalista, médico (não havia propriamente biólogos das pescas) e foi o homem que por iniciativa própria, e rasgo, traduziu para português o livro de Russell “O Problema da Sobrepesca”. A partir daí a questão em Portugal dispara, estávamos nos anos 40 do século XX. Em ’46, Portugal é um dos estados signatários da Convenção de Londres da Sobrepesca, que é a primeira que se conhece com esta designação e, portanto, depois da Segunda Guerra Mundial, com todo aquele crescimento exponencial da indústria das pescas, a questão ganha outra dimensão.
Quais são as soluções que se podem opor? Se existem soluções para abordar esta questão (como, creio, perguntou o Nuno)? É claro que existem, elas já foram ensaiadas, elas fazem parte dos dispositivos, por exemplo, da política comum das pescas da União Europeia, fazem parte dos dispositivos de várias organizações multilaterais da gestão dos recursos da pesca no âmbito dos oceanos globais, mas elas são insuficientes. Ou seja, a utopia prática de erradicar, eliminar a sobrepesca, é uma utopia construtiva, mas que ainda não foi alcançada. Em determinadas fases da política comum das pescas chegou-se a declarar, de uma maneira muito dogmática, que se iria eliminar radicalmente os sinais de sobrepesca. Isso não aconteceu, e, na verdade, hoje o sistema de exploração das pescas que temos, sobretudo nas pescas industriais, intensivas, altamente capitalizadas — não estamos a falar de pescarias locais, quase artesanais —, tudo está orientado para que o ciclo vicioso da escassez de recursos e dos rendimentos decrescentes (porque a pesca é um problema bioeconómico; não é apenas bioeconómico, é bioeconómico-social, diria) para que ele se aprofunde, não é?
De facto, eu creio que um dos problemas dos diagnósticos da sobrepesca se baseia no modelo teórico com que ele é encarado. Porque o modelo teórico de análise da sobrepesca, que depois é traduzido ou refletido em políticas e instrumentos concretos, é demasiado bioeconómico, ou seja, parte-se do princípio (do pressuposto da economia liberal, neoclássica, se quiserem) de que os rendimentos da indústria da pesca devem ser maximizados — e esse pressuposto está errado. Porque, na verdade, do que nós precisamos é de valorizar o capital natural e preservar as comunidades humanas que dependem da pesca, essa é que é a questão fundamental.
NB: Ok, isso leva-me à nossa segunda questão. Durante todo este processo, e quando nos confrontámos com estas pessoas que têm esta pesca de pequena escala, é quase sempre assumido que são os velhotes, que vai acabar, que vai desaparecer, que se vai extinguir. Nós gostávamos de saber o que é que o Álvaro pensa sobre isto e se vê alguma possibilidade desta pesca de pequena escala ser uma coisa que pode acontecer no futuro. Nós tivemos um depoimento do professor Michael Weber, da Estação Litoral da Aguda, em que ele dizia: “Não, há futuro!”. Gostávamos de saber se de facto esta pesca de pequena escala pode ser uma coisa que vai existir e se podemos aprender alguma coisa com ela.
ÁG: Com certeza! A questão da pesca de pequena escala, small scale fisheries, não é? Depois há muitas designações e conceitos que se digladiam uns em relação aos outros e tal, mas, normalmente, qual é o fenómeno actual? É uma perda da população ativa ligada à pesca em geral, claramente; é um envelhecimento dos pescadores; é um abandono da atividade, que é visível. A população ativa das pescas em Portugal e noutros países — não é um problema exclusivo de Portugal — tem declinado nos últimos anos, mas eu penso precisamente, tal como o Michael, que a pequena pesca tem futuro e, aliás, é pela pequena pesca que o futuro das pescas se deve conceber. Porque, na verdade, a pequena pesca é mais sustentável, é uma escala de proximidade, baseia-se num conhecimento muito mais apurado dos recursos, ela tem menos impacto ambiental à partida, utiliza fatores de produção de uma forma não intensiva e menos capitalística, e, por conseguinte, não é por acaso que algumas políticas de regulação das pescas, nomeadamente da União Europeia, tendem sempre a valorizar o papel da pequena pesca, por razões muito variadas.
A realidade… Nós temos hoje uma imagem ilusória que, de alguma forma, está traduzida na pergunta do Nuno, ou seja, a pequena pesca não declinou tanto assim em Portugal. Reparem que, em 2015, 76% dos ativos das pescas portuguesas (os pescadores matriculados, registados; sabemos que são muito mais, há uma dimensão informal na atividade da pesca) — 2015 foi ontem, há 6 anos — eram sobretudo pescadores da pequena pesca. Nós sabemos que boa parte da atividade é polivalente, há uma complementaridade ocupacional, depois há um registo para fins de matrícula e também de registo dos barcos (e o comprimento dos próprios barcos e as suas características), por conseguinte, muito mais de dois terços dos ativos das pescas, aqui há meia dúzia de anos, ainda eram de pequena pesca e ainda hoje são um pouquinho mais de dois terços. Do ponto de vista social, e do ponto de vista das micro comunidades locais dos sítios estuarinos, na Ria Formosa, na Ria de Aveiro, nos estuários dos rios, na costa marítima onde é possível pescar com um tempo menos bom, a pequena pesca tem imensa importância. E neste momento, salvo este parêntesis da pandemia, por causa do fluxo turístico, do boom turístico que Portugal conheceu nos últimos anos, houve até uma revalorização extraordinária do consumo de pescado, resultante em boa parte da pequena pesca e também da pesca desportiva (temos alguma dificuldade em distinguir). Por conseguinte, não há nenhuma dúvida de que o futuro das pescas enquanto atividade económica deverá passar muito menos pela pesca industrial, que utiliza intensivamente fatores de produção altamente depredatórios da natureza, e deve passar cada vez mais por uma pequena pesca. Vamos ter de pagar… O professor Mário Ruivo, que foi um grande pensador destas coisas e um biólogo extraordinário, meu amigo pessoal, dizia: “Ainda havemos de pagar o peixe ao preço do caviar” — essa era uma imagem muito interessante, quase profética, que remetia para esta ideia de que o peixe fresco capturado numa lógica de proximidade, na verdade, tem um preço, e tem um preço que é mais elevado do que aquele que em regra pagamos em Portugal, onde temos o privilégio de comer peixe fresco por preços relativamente acessíveis, que são, aliás, espantosamente acessíveis aos olhos de estrangeiros, porque na maioria dos países não é assim, não é? Enfim…
NB: Vou convidar a Veronika a praticar o seu português e a fazer-nos a terceira pergunta, que tem exatamente a ver com peixe…
ÁG: Pode ser inglês, tudo bem, estejam à vontade.
VS: I’ll try, I’ll try. [risos] Se o peixe pudesse falar connosco o que nos diria cada espécie de peixe?
ÁG: Isso é uma pergunta muito literária. O Padre António Vieira, ele é que falava aos peixes, não eram os peixes que falavam com ele, enfim… Mas isso é interessante porque, na verdade, nós ouviríamos a sardinha a dizer que é a rainha dos peixes em Portugal. Há uma espécie de luta simbólica, uma espécie de pódio, não é? Quem é o peixe mais importante para os portugueses, quem é o símbolo? Porque há este paradoxo: o bacalhau tornou-se o símbolo dos portugueses, da identidade portuguesa, o que não faz grande sentido do ponto de vista biogeográfico, porque não temos bacalhau do Atlântico nas nossas costas, nem qualquer outro tipo de bacalhau. Mas, na verdade, a pesca das pescas e a espécie das espécies é a sardinha. A sardinha foi sempre a espécie mais abundante nas águas junto à costa portuguesa e de jurisdição portuguesa ao largo do litoral português. A sardinha teve, historicamente, uma enorme importância no abastecimento do reino de Portugal, no abastecimento alimentar — basta lembrar todas aquelas políticas protecionistas do Marquês de Pombal, século XVIII, para evitar a saída de sardinha em contrabando para Espanha, porque ela era extremamente importante para o abastecimento do reino, era um negócio sobretudo de abastecimento popular. O bacalhau não tinha ainda tanta importância como veio a ter. Por outro lado, a sardinha tornou-se, mais tarde, finais do século XIX, uma matéria-prima industrial da maior importância para a indústria de conservas de peixe. Se nós tivéssemos estatísticas de pesca dos desembarques até há alguns séculos recuados, veríamos certamente que a sardinha foi sempre a grande pescaria portuguesa em termos de volume da pesca desembarcada, salvo três ou quatro anos durante o Estado Novo em que o bacalhau foi rei, porque assim o fizeram as políticas protecionistas de Salazar. E, na verdade, o fenómeno do bacalhau (eu passei muitos anos a estudar a indústria do bacalhau no Estado Novo, o “bacalhau salazarento”) é um fenómeno extremamente interessante. Ou seja, Portugal não tem o recurso junto às suas costas, como disse, mas é o primeiro consumidor de bacalhau do Atlântico do mundo, e já o é há vários séculos, e isto traduz a dialogia histórica das pescas portuguesas. O elevado consumo de pescado que nós temos (somos dos povos que mais consome peixe), metade desse consumo é basicamente bacalhau — bacalhau salgado seco e hoje também conservado de outras formas. Isso decorre do quê? Do facto de Portugal ter uma costa muito longa, e ser um país costeiro, mas ser uma zona oceânica de baixa produtividade natural, em que o peixe das nossas costas e da pesca local, artesanal, nunca foi suficiente para alimentar o reino, a sociedade, o mercado interno. E daí a prevalência histórica das pescas longínquas, do bacalhau no Atlântico Norte e da pescada e de outras espécies de peixe grosso no Atlântico Sul, desde os séculos XV, XVI, pelo menos. É muito interessante, porque ainda hoje nós vemos: os ativos das pescas, na sua maioria, estão ligados à pequena pesca; a expressão social da pequena pesca nas comunidades marítimas é imensa, nos mercados locais também, nas pequenas cadeias de valor; mas depois a indústria, a própria finança, o lobby institucional e o peso nas políticas públicas, historicamente, está nas pescas longínquas. E isso é muito interessante sobre um retrato das pescas portuguesas. Além disso, o polvo também tem alguma importância, o carapau, a sarda, a cavala e outras espécies, mas, na verdade, entre a sardinha e o bacalhau decidiu-se o campeonato da pesca em Portugal, sempre.
NB: Mudando agora de tópico, o professor Álvaro foi também diretor do Museu Marítimo de Ílhavo. Saltando aqui para o aspeto da museologia, o que é que os museus podem fazer por este património cultural, por este diálogo com as populações, e o que é que podemos aprender a partir destes objetos e narrativas que fomos acumulando em vários museus dispersos pelo país? E isto leva-me a uma questão dentro da questão que é: não seria pertinente discutir um museu da cultura marítima em vez de discutir um museu das descobertas?
ÁG: Isso é uma bela proposta, eu subscrevo-a. Na verdade, o conceito de descobertas é muito triunfalista, demasiado etnocêntrico; é pobre, julgo que é datado, já não faz muito sentido usá-lo, é demasiado historicista. Eu valorizo muito mais um museu da cultura marítima. Curiosamente, nós temos poucos em Portugal. Alguns colegas canadianos e noruegueses por vezes perguntam-nos: “Vocês só têm estes museus marítimos? Não há mais museus marítimos em Portugal?” — Não, não há. Há o grande museu naval que é o Museu de Marinha, há o Museu Marítimo de Ílhavo, há este ou aquele, mas museus com expressão de cultura marítima, de facto, não há. Eu julgo que o que é mais importante, do ponto de vista cultural e social, nas pescas, é na verdade esse acervo de cultura marítima, ou seja, são os barcos, as embarcações, as técnicas de construção, as artes, os modos de pescar, e depois toda a memória, oral e vivida, das comunidades humanas que dependeram da pesca — os pescadores, as mulheres, as crianças, as sucessivas gerações de pescadores. Ou seja, a cultura marítima é um arquivo humano de imensa importância, ela reside em qualquer praia. Santa Luzia de Tavira, cuja imagem vocês mostraram, por exemplo, é um arquivo de cultura marítima, onde é possível encontrar antigos pescadores do bacalhau, antigos pescadores da pescada ao largo de Marrocos, pessoas, mulheres que trabalharam em conserveiras, na apanha do marisco, da pesca local, ou seja, quase toda a cultura marítima ligada às pescas, e não só, reside ali num pequeno lugar, que é um lugar de fronteira entre a terra e o mar, e que tem os braços da Ria Formosa por perto.
Eu julgo que os museus estão numa encruzilhada, e os museus marítimos têm uma enorme necessidade de se recriarem ou de se reinventarem neste momento. Há uma pressão. Em primeiro lugar, a pandemia criou um impacto terrível sobre os museus porque eles subordinaram-se demasiadamente a uma lógica de massas. Ou seja, meter pessoas lá dentro do museu, somar números e exibir uma certa legitimidade, era o programa de todos os museus até aqui há uns meses, e eu acho que agora vamos ter de pensar as coisas de uma outra maneira. E qual é a oportunidade? Julgo que a oportunidade é virar decididamente os museus marítimos de um discurso predominantemente etnográfico, nostálgico, em que se evoca a cultura marítima, as embarcações, com uma certa nostalgia da grandeza e de uma beleza perdida, ou de uma imagem demasiado harmoniosa das comunidades piscatórias, e introduzir aí, a propósito dessa cultura material e dessas memórias imateriais, introduzir um verdadeiro programa identitário. E esse programa identitário envolve um conhecimento cívico da vida marítima. Ou seja: as pessoas que não são das comunidades marítimas, porque é que se hão de interessar pela vida daqueles que são? Esta é uma grande questão (os museus marítimos são um bocadinho “guetos”, ou seja, as pessoas que não têm nada que ver com o mar não vão lá, ou vão e não compreendem praticamente nada). E introduzirem esta dimensão da literacia do oceano, que hoje está na moda nos centros de ciências, no Oceanário de Lisboa, e que é um conceito importado dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, um conceito anglo-saxónico como é costume. Mas a literacia do oceano, a literacia do mar é muito mais do que ciência dogmática e tecnocrata sobre o oceano. É um entendimento estético, cultural, social da vida marítima, e nós temos uma riqueza imensa em Portugal sobre a vida marítima, desde logo na literatura, na poesia, quer dizer, toda a nossa cultura é oceânica e é marítima. Portanto, nós precisamos é de colocar isto dentro dos museus que falam do mar, para nos ajudar a perceber o que era a vida marítima daquelas comunidades relativamente exóticas, e que nós continuamos a insistir nesse exotismo, o que é um erro. As comunidades piscatórias não são comunidades exóticas, nem são comunidades puras. Aliás, eram comunidades tensas, onde a competição, a violência, a tensão, eram permanentes. Nós sabemos disso.
NB: A nossa última pergunta, que parafraseia uma exposição recente, é: o mar é efetivamente a nossa terra? E isto está ligado à questão do alargamento da zona económica exclusiva, a ZEE, que futuro é que nos reserva esta expansão do “país”, digamos assim? Não é que eu veja as coisas desta maneira, mas o que é que isto significa na prática?
ÁG: Eu acho que isto significa uma grande mudança e uma grande retórica também. Uma grande mudança porque, na verdade, a extensão da plataforma continental portuguesa, o alargamento da zona económica exclusiva, para os mais entusiastas é uma espécie de neomaritimismo, ou seja, “Portugal vai-se fazer grande outra vez no mar, ou através do mar”. Este discurso balofo e que tem precedentes históricos em Portugal — durante o Estado Novo, a propaganda do regresso de Portugal ao mar era mais ou menos isto, não é? — é um discurso que deve ser evitado. Eu fiquei perplexo, por exemplo, aqui há uns anos, quando vi aquele mapa, um mapa que o Ministério da Educação (vejam lá) português distribuiu por todas as escolas, a dizer “Portugal é mar, uma zona económica exclusiva dezoito vezes maior do que a superfície terrestre”. Aquilo fazia lembrar o mapa do Henrique Galvão “Portugal não é um país pequeno”, não é? Ou seja, essa retórica quase neocolonial está aqui no discurso, e acho que devemos evitá-la. Essa dimensão retórica não faz falta nenhuma, e por vezes há sectores políticos portugueses (ligados até à Marinha Portuguesa também, nalguns casos, e até à ciência) que embarcam nesse triunfalismo.
Agora, qual é a realidade de mudança que está aqui? É uma mudança da economia marítima portuguesa, e não só portuguesa, [passando] duma estrutura tradicional muito ligada à indústria de pesca, às marinhas, à marinha mercante e aos portos (eram as chamadas marinhas disto e daquilo), para a nova economia do mar, a economia azul, que basicamente desloca a cadeia de valor da coluna de água para o solo e para o subsolo marinhos. Ou seja, há, digamos, uma grande invisibilidade, e há aqui uma camada que se altera. Na verdade, isto é uma grande mudança, porque ela traduz-se em políticas. Se analisarem bem o discurso político, hoje, desde há uns anos (isto já não é novo, isto já tem pelo menos 10, 15 anos), há uma clara desvalorização das pescas, que do ponto de vista social ainda são o principal subsector da economia do mar em Portugal; há uma clara desvalorização da marinha do comércio, dos portos em parte sim, em parte não; e há uma deslocação do discurso, com argumentos científicos por vezes até muito opacos, pouco claros e mal comunicados, para a questão da mineração do solo e subsolo marinhos e para as cadeias de valor que hão de vir da exploração sistémica desses recursos. Mas, na verdade, essa cadeia de valor ainda é relativamente incipiente. Do ponto de vista social ela não tem ainda significado, e nós estamos ainda numa fase muito prospetiva e de cartografia desses recursos. Mas há aqui uma transição de paradigmas e essa transição já foi sedimentada nas opções políticas e institucionais — a própria União Europeia já transitou para esta nova economia marítima, com todas as imagens de economia azul associadas. Em todo o caso, eu julgo que o papel da cultura marítima nesta transição pode ser um papel estabilizador, de consciência para a preservação das comunidades humanas tradicionais que dependem do mar, para o papel da pequena pesca, das indústrias marítimas de proximidade, e para atividades sustentáveis que importa preservar, ligadas ao turismo, mas também a atividades económicas de sobrevivência das comunidades costeiras. Por conseguinte, nós estamos a viver uma grande mudança na relação de Portugal com o mar, que foi sempre uma relação muito superficial, apesar da retórica maritimista que costumamos ter. Há uma redescoberta de um certo mar atualmente, mas eu creio que essa redescoberta incorpora pouco a cultura marítima e a dimensão estética e artística do mar, que este tipo de projetos podem valorizar muito.
NB: Muito obrigado, Álvaro. Bom, teríamos mais vinte questões, e poderíamos ficar aqui mais duas horas!
TM: Quero aproveitar e agradecer ao Álvaro Garrido a disponibilidade, e ao Nuno e à Veronika a grande criatividade, também, na formulação das perguntas, e a generosidade de todos vocês em partilhar as vossas sabedorias visuais, estéticas, ou de pesquisas académicas, e também sobre as questões de museologia, que acho que tocam também em todos nós, especialmente nos profissionais de arte como eu. Eu queria ainda agradecer aos outros parceiros da exposição Cemitério das Âncoras, aqui o Museu Nacional de Etnologia em Lisboa, o Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, o Museu Grão Vasco em Viseu, o Museu de Marinha, a Pro Helvetia e a Embaixada da Suíça em Portugal, que facilitaram a produção de obras, de empréstimos, a produção da exposição, e a publicação que em breve vamos ter a possibilidade de lançar junto com Nuno e Veronika.