Entrei pela primeira vez no Pavilhão Branco nos últimos dias de montagem da exposição «Objetos em Eterno Colapso» de João Ferro Martins. Foi o meu primeiro encontro com a sua obra. Dei por mim perante o que parecia ser os bastidores de uma peça sonora absurda e explosiva ainda por executar.
Quando a exposição abriu ao público, regressei. O espaço não estava muito diferente daquilo que havia experienciado na minha visita anterior. A exposição parecia achar-se na iminência de uma ativação potencial. O silêncio desconcertava, sobretudo quando contrastado com o chilrear dos pássaros e os gritos dos pavões que habitam os jardins circundantes.
À medida que explorava o espaço, o silêncio parecia adquirir presença física. Íamos ao encontro dos restos de uma conferência, uma festa, ou algo assim. Parecia sem importância, uma vez que os vestígios estavam ali, autonomamente, e esta seria agora a nossa paisagem. Não havia modo de nos agarrarmos a alguma coisa, pois o espectador era, de certa forma, desnecessário; o espectador era certamente bem-vindo, com toda a liberdade de interpretar, mas fora isso disfuncional na definição de um significado ou sentido.
O conteúdo não era explícito: encontrava-se escandalosamente e simplesmente ali.
Aparelhos de som desligados, cuidadosamente dispostos, observando-nos.
Através da revisão experiencial do artista das vísceras e posturas de volumosa aparelhagem silenciada (ou de formas sugeridas delas derivadas), não nos achávamos perante os objetos em si, mas do reconhecimento vago das suas formas contendo infinitas composições.
Uns dias mais tarde, ao tomar conhecimento de outras obras e atividades de João Ferro Martins, comecei a imaginar a vasta variedade de ferramentas que usa para elaborar o mesmo misterioso ponto, sem realmente almejar a sua resolução, a qual, mais uma vez, é irrelevante. Trata-se de um estado do ser.
O seu uso frequente da forma circular, por exemplo, a afirmação geométrica perfeccionista inicialmente derivada do perímetro de um disco de 33 rotações, revela uma espécie de escotilha que ilustra uma reorganização subjetiva da natureza, uma construção humana feita por desmantelamento.
Por meio da sobreposição de imagens retiradas duma enciclopédia, o artista cria novos padrões na natureza, revelando uma transparência de outro modo impossível. Associando a esta transparência o comportamento formal de imagens naturais, Ferro Martins cria uma espécie de natureza nova, uma composição subjetiva que implica um conjunto inumerável de possibilidades. Mas o seu incisivo olhar imposto estabelece um intrigante perímetro unívoco sobre os corpos de outro modo em mutação das personagens da vida natural.
No piso superior do Pavilhão Branco, deparamo-nos com uma instalação composta por 22 capas de discos do Staatliche Kunstsammlungen Dresden – Archiv der Avantgarden. O artista selecionou os LP por meio de associações intuitivas e gráficas, quase como que assumindo uma postura esvaziada relativamente às gravações nelas contidas. As capas foram pregadas numa apresentação estética muda, drasticamente inaudível, compactada numa atmosfera escultórica espacial, atuando quase como uma linha de tinta, uma ressonância gráfica. Estas revelaram uma ordem a Ferro Martins da mesma forma que a revelam a nós. Porém, a presente sinfonia não tem tempo.
Pergunto-me o que aconteceria se, por exemplo – como tão bem descreve Didi-Huberman no seu texto Gestes d’Air et de Pierre (2006) –, nos detivéssemos no espaço entre as palavras, no ar que transporta a sua origem e o seu destino, e que todavia não soa nem a origem nem a destino, pois É a pausa que transporta a sua própria presença e tempo.
A palavra texto deriva do latim textile, textus. Ao visitar a exposição de João Ferro Martins, é possível perceber uma narrativa silenciosa, uma adaptação teatral. Participamos inadvertidamente na sensação de qualquer coisa iminente; há uma instância que está pronta a arrancar, todavia extremamente e claramente estática, fixada na imanência.
Esta catapulta sensorial sustém a sua superfície diante dos nossos olhos, movendo-se entre diferentes períodos de tempo, enquanto se acha imersa numa observação imóvel. Ao entrarmos nesta atmosfera aparentemente paralisada, uma trama narrativa cobre e descobre a busca contínua do artista, tecendo elementos de um estado de coisas, ressonante da sua própria claridade alarmante e enigmática ausência de questionamento. Para além disso, os objetos não procuram uma área de categorização, situam-se acima do potencial mutante de todas as coisas. Não existe definição de uma direção do devir; pelo contrário, as obras de Ferro Martins foram libertas da sua pertença original e posicionamento contextual. São reconhecíveis nos arquivos mnemónicos por meio de associações simplificadas, contudo, traduzem a nossa atenção ao mudarem de medium, padrões inter-relacionais e cenário. A presença da sua obra mantém radicalmente a sua própria posição, espacial e temporalmente, o seu conteúdo abstraído ao ponto de desaparecer. O artista é também um espectador diante das suas próprias composições, as quais, como declarou, se acham calmamente à sua frente. A investigação de Ferro Martins parece, deste modo, funcionar como uma contínua apresentação de presença, ou presença do presente, tal como experienciado numa câmara de espelhos, onde assistimos à nossa própria posição multifacetada, na qual, mesmo paisagens monumentais, como da natureza, ou da história, ou do som, se condensam entre os espelhos antes do reflexo.
A desconcertante qualidade de uma peça teatral que nunca acontece surge na mente de Ferro Martins, que é capaz de ilustrar uma das infinitas cartas do baralho das massas sólidas espalhadas pelo espaço da galeria na qual intervém. Não é uma banalidade tentar perceber se o artista está a orquestrar ou a ser orquestrado, se o limbo que resulta da presença paralisada é uma causa ou um efeito do processo de criação. A continuidade deixa de fazer sentido, os objetos assumem o comando e apresentam-se a si mesmos, recontextualizando a sua própria massa, como que apanhando uma rocha metamórfica no processo da sua própria transformação, paralisando as suas moléculas num momento de atenção mútua.
Viramo-nos, devindo, voltamos a virar-nos e assistimos a uma estase artificial, um retrato em constante deformação de imanência. Nas composições musicais de Ferro Martins, a tensão da estase desdobra-se, liberta-se, mas continua orgulhosamente a escapar a qualquer interpretação fácil.
As faixas incluídas no catálogo-LP que acompanha a exposição «Objetos em Eterno Colapso», no Pavilhão Branco, revelam vislumbres da intrincada câmara desse processo em que podemos participar, particularmente quando diante das suas composições físicas. Contudo, as composições poderiam ser consideradas uma continuação acústica do estado físico dos objetos da exposição.
Talvez revelando a forma de uns bastidores, um alfabeto autónomo ao serviço do restante da sua prática, o potencial infinito da gravação explode num manancial de possibilidades, entre paisagens teatrais e meditativas, entre distorções eletrónicas e vocais. Na faixa LEFT RIGHT, o diálogo entre duas vozes aborda ironicamente infindáveis limbos políticos, emocionais, egocêntricos. O elemento de diálogo é executado entre duas personalidades cegamente inflexíveis, sendo bastante indicativo da condição humana atual.
Em Infinite Density, mergulhamos na desintegração da matéria, num buraco negro, como se a massa da matéria existisse numa confrontação com o seu próprio potencial de destruição, absorção, e a sua própria aniquilação. Os sons sintetizados lançam-se diretamente para o centro de um negro vórtice entrópico. Ouvimos algo ritmicamente circular, semelhante aos antigos cânticos meditativos. Um curto-circuito solidifica-se até ao ponto de um movimento circular. Poderíamos pensar numa decomposição orbital recompondo-se a si mesma, perdida no feedback. Outra imagem que ocorre é a da sabedoria de um ouroboros incapaz de chegar à sua cauda, e por isso orbitando incessantemente no seu encalço.
Em 29 words on J.S. Bach, um outro alfabeto ilustra de forma bastante clara o leque de aptidões do artista para traduzir e autoproduzir a narrativa em qualquer estádio e em qualquer forma e material. Aqui o compositor-artista escreve a frase «If I speak so little it is because words have a bigger mouth than mine and I am the one who is consumed by their immense thirst and joy»[1]. Ferro Martins recita, então, cada uma destas palavras de acordo com a sequência das 29 notas que compõem a peça de J.S. Bach BWV 802 – Dueto N.º 1 em Mi Menor. Ao adaptar a composição a um tempo no qual as palavras se tornam audíveis, a composição desmantela o sentido de uma narrativa, colocando cada palavra num estado performativo de unidade autónoma intradependente. Ouvimos uma versão abrandada de Bach, executada a duas vozes em composição, decomposição, recomposição, que todavia é, em última análise, som.
Após a complexidade desta adaptação de uma peça clássica, segue-se a última faixa, Resonant Events. Somos convidados a deixar-nos levar pela ressonância emocional de um corpo poético. Uma peça rock física e agreste, que poderíamos imaginar numa jam session, subitamente transporta-nos para um palco intensificado, um teatro sem teto, um forte vento existencial, uma recitação poética e ironicamente colérica de uma voz anónima, jovem e confiante.
A obra do artista parece comentar, subtil e criticamente, o posicionamento dos seres humanos no desenrolar da sua própria história. Ferro Martins capta a alma de cada fragmento, permitindo que uma direção, e a velocidade natural da criação e da decadência, se comentem a si mesmas.
São-nos dadas sugestões relativas a estas direções, tal como pela lei da natureza as coisas se arruínam: o tempo transforma as coisas em pó, cria rugas, decreta o colapso. Imagino Ferro Martins como um caçador dos momentos em que esta direção se acha inquestionada, de certa forma nítida e límpida, numa caminhada em que o que está diante de nós está também à nossa volta. À semelhança do que aconteceria se o sol parasse de circular e se detivesse imóvel no céu, a sua prática é tingida pelo sentimento de um apocalipse de luz. Há uma forma de tragédia que é tão constante, que se torna quase irónica. Como se os objetos à nossa vista pudessem comentar secretamente acerca do olhar ofuscado do espectador, que espera receber algum sentido, enquanto participa inevitavelmente na totalidade do ser das coisas. O espectador testemunha, assim, uma inexorável participação na metamorfose, atravessando um intrínseco ruído branco invisível.
[Clique aqui para ouvir a faixa Infinite Density]