A exposição Cut Down The Middle na Galeria Avenida da Índia apresenta obras de João Vasco Paiva, Heman Chong, Ramiro Guerreiro, Ko Sin Tung e Magdalen Wong. Concebida pela curadora Claudia Pestana em diálogo com João Vasco Paiva, todos os artistas que participam nesta exposição partilharam espaço de trabalho, ideias e inspiração com Paiva, que regressou recentemente a Portugal após uma estadia de uma década em Hong Kong.
O conceito da exposição baseia-se na dicotomia público-privado, na ideia de espaço público enquanto linguagem de comunicação, estrutura de comportamento ou sinalização e infraestrutura material e meios de re-simbolização urbana.
Todas as obras da exposição repensam o ambiente urbano através do prisma do gesto poético. Cut Down The Middle usa como ponto de partida a obra The Highways Department Colouring Book [Livro de Colorir do Departamento de Estradas] de 2016, de Paiva, a qual também aparece na faixa publicitária afixada no exterior da exposição, revelando a intenção do artista de se apropriar de materiais tradicionalmente utilizados para anúncios públicos para a arte – na verdade, um dos leitmotivs da exposição.
A primeira obra da exposição e que lhe dá o título, Cut Down The Middle (2020) de Heman Chong, deve o seu nome às palavras da novela de Clarice Lispector Perto do Coração Selvagem (1943), cujo título, por sua vez, foi escolhido pelo seu amigo Lúcio Cardoso a partir do romance de James Joyce Retrato do Artista quando Jovem. A ideia de extrair elementos de um todo, desconstruindo a narrativa a fim de proporcionar a possibilidade de ler a mensagem de uma maneira própria, está no cerne do trabalho de Chong.
As questões levantadas pela exposição são: como podemos ler o espaço público com as suas especificidades culturais particulares, e quais são as relações entre público e o privado no ambiente urbano? Estas ideias encontram-se representadas na obra de Ramiro Guerreiro Grelhagem sobre abertura pré-existente II (2021) – uma cortina de grande dimensão com a imagem de um bloco de cimento perfurado que cobre a entrada do espaço de exposição, bem como o acesso a uma black box na Galeria Av. da Índia, que é frequentemente utilizada para a apresentação de obras de imagem em movimento na galeria. O objetivo destes blocos (também denominados cobogó) é regular a circulação de ar, a luz solar ou o espaço de privacidade. Porém, o artista enfatiza a sua natureza ornamental como uma estrutura simbólica independente e desconstrói a sua funcionalidade. Duas outras obras de Guerreiro, pessoa-pano-do-po, av. Marconi (2009) e entalados (2005) são apresentadas como documentação vídeo e em diapositivos e retratam o artista a habitar o espaço público como se fosse seu domínio pessoal privado, questionando assim a noção de fronteiras entre o privado e o público.
A ideia de leituras alternativas que oscilam a partir do título da exposição baseado na obra de Heman Chong reverbera com a leitura alternativa da funcionalidade de um objeto. Assim, por exemplo, Untitled water [Água Sem Título] de 2020, de Magdalen Wong, utiliza “Água Realista”, uma resina que normalmente é utilizada para criar elementos decorativos de água artificial no âmbito da modelação de design urbano. As “poças de água” de Wong proliferam pelo espaço, mas, em vez de orquestrar um design harmonioso, Wong produz um caos doméstico e confunde a perceção do público. Em Power. Performance. Prestige (2012), um vídeo que também se encontra exposto, Wong extrai paisagens de anúncios de veículos de luxo, chamando assim a nossa atenção para as múltiplas técnicas que o marketing emprega numa mercantilização da natureza. Assumindo também o comando da esfera sonora do espaço de exibição, o terceiro trabalho de Wong é Dying robots’ last words [Derradeiras Palavras de Robôs Moribundos], uma obra áudio (2017-em curso) que apresenta as derradeiras palavras dos diversos robôs que aparecem em filmes blockbuster. Invertendo as ideias de orgânico e mecânico, a artista confere aos robôs a possibilidade de experienciar a morte e prova a existência de um “ghost in the shell” (o fantasma na concha), bem como das almas de robôs.
Uma outra inversão ocorre no trabalho de Heman Chong MAKE YOUR OWN PUBLIC LIBRARY [Constrói a tua Própria Biblioteca Pública] (2020). O cartaz cobre uma parede, apresentando a frase epónima, e ligando o exterior ao interior, a galeria com o espaço virtual. Esta ligação é ainda mais ampliada porque o cartaz de Chong é disponibilizado para ser descarregado a partir do sítio web das Galerias Municipais. A mensagem no cartaz refere-se ao desafio de criar algo pessoal e público ao mesmo tempo. Lê-se quase como o slogan de Che Guevara “Seja realista, exija o impossível!”
Um outro trabalho de Chong apresentado em três ocasiões durante a exposição é a performance Everything (Wikipedia) [Tudo (Wikipedia)] (2019) durante a qual um performer lê as páginas da Wikipedia começando pelo artigo de destaque do dia e navegando pelas hiperligações como um Ulisses na sua viagem através do conhecimento virtual. No dia em que visitei a performance, o artigo em destaque era sobre “O São Paulo” – um temível navio de guerra operado pela Marinha do Brasil entre 1910 e 1947. A hiperligação deste artigo conduziu o performer à página dedicada à cerimónia de batimento de quilha na construção naval que tem como objetivo afugentar os maus espíritos de um navio. De acordo com o artigo, esta tradição originou-se ou na Grécia Antiga ou em Roma. Daqui, o performer seguiu a hiperligação seguinte, sobre a história da Roma Antiga e da sua língua, numa altura em que o latim vulgar se tornou numa língua falada em toda a Europa. E assim por diante, o performer prosseguiu a sua viagem ao longo da estrutura de ficheiros da Wikipédia que reflete o complexo, mutável e indeterminado mundo pós-Internet. Há regras específicas sobre como viver neste mundo, mas parece haver uma variedade de maneiras de o ler.
O entendimento do espaço público de uma forma pessoal é o principal tema das obras de João Vasco Paiva. Um estrangeiro em Hong Kong, onde esteve baseado até 2018, facto que enquadra a sua visão artística, Paiva abstrai artefactos urbanos e enche-os de valor simbólico. Untitled_ Sunday IV [Sem Título_Domingo IV], de 2017, é uma reprodução em resina de caixas de cartão achatadas utilizadas pelos trabalhadores domésticos para se sentarem em espaços públicos no seu dia de folga. Esta cópia escrupulosa reflete o estudo do artefacto humano; a cópia mantém a aura da peça original que dá ao artista a possibilidade de transformar o objeto mundano numa peça de arte.
Da mesma forma, Untitled (Containers)_barricade remake I e II [Sem título (Contentores)_reprodução de barricada I e II] consiste em garrafões de máquinas de água reproduzidos em cimento. Estes recipientes de água, que são colocados nas ruas de Hong Kong durante a sua distribuição pelos escritórios, assemelham-se a esculturas urbanas, e também a barreiras que limitam o movimento público.
Um outro exemplo de apropriação de Paiva são as aguarelas apresentadas nas Galerias Municipais, que se baseiam nos “desenhos padrão” das barreiras rodoviárias públicas do Departamento de Estradas de Hong Kong. Estes “desenhos padrão” encontram-se disponíveis online. A partilha de protótipos de construções cujo objetivo é controlar o público, distintamente visíveis nos recentes protestos de Hong Kong, tem o seu quê de ironia. Nas suas aguarelas, Paiva retira as formas das barreiras do seu contexto funcional, apaga a sua aura de violência, e apresenta-as como imagens visuais independentes.
O espaço público estimula diferentes relações com os objetos, por exemplo por skaters, que se apropriam da paisagem urbana para os seus próprios fins. As esculturas Paisagem/Objeto LB/MRC, ICL, IR, TM (2016) são objetos de madeira, em forma de bancos, rampas e corrimões, os quais são frequentemente apropriados pelos skaters para realizarem as suas acrobacias. Os objetos foram cobertos por impressões fotográficas de imagens de satélite e subsequentemente disponibilizados para uso de skaters. Exibindo os vestígios dos truques dos skaters, as esculturas revelam a experiência do tempo e do movimento.
As obras de Ko Sin Tung proporcionam mais um exemplo de um reexaminar da paisagem urbana. O vídeo de duplo canal The world of yesterday [O mundo de ontem] (2017) centra-se na ideia da cidade como “o novo mundo” que existe num contínuo presente-futuro. A cada segundo, a bem conhecida cidade pode transformar-se numa nova cidade. No vídeo P-E-R-M-A-N-E-N-T (2014), grandes planos de anúncios luminosos da cidade desorientam a nossa perceção do espaço. E na impressão a jato de tinta Sunflower and safety helmet [Girassol e capacete de segurança] (2017), a artista usa uma imagem ampliada de um girassol que foi apropriada de um cartaz da cidade. Ko Sin Tung propõe-se a pensar na nossa relação com a natureza na vida urbana, questionando se a natureza poderá proporcionar uma sensação de segurança nas selvas urbanas.
A exposição Cut Down The Middle repensa o ambiente urbano como espaço de representação de objetos ou ideias, enquanto dialética entre forma e experiência. O espaço público é um lugar para linguagens que podem ser óbvias e intrincadas, que aprendemos todos os dias de novo. Com que frequência prestamos atenção ao espaço público e aos seus elementos específicos? Será que podemos desfrutar da paisagem pública tal como desfrutamos da natureza, será que podemos ter uma experiência única estando todos os dias num ambiente mundano? Cut Down The Middle oferece-nos uma visão alternativa do mundo, plena de poesia, mas que se torna quase impercetível na rotina da vida quotidiana. Não há liberdade sem poesia e tudo pode ser poesia se conseguirmos mudar a nossa óptica de perceção.