Entre Brasil e Portugal, um labirinto de histórias

Filipe dos Santos Barrocas; Tobi Maier (Galerias Municipais)

Frame Labirinto Filipe dos Santos Barrocas

Tobi Maier: Boa tarde, Filipe. Conhecemo-nos durante o nosso tempo como pesquisadores na Universidade de São Paulo. Você continua lá, agora com a pesquisa de doutorado. Hoje estamos aqui em Lisboa para ouvir um pouco da sua pesquisa e do seu filme Labirinto, 2022. Me parece que é um filme que também faz sentido conhecer no contexto do bicentenário da independência do Brasil que celebramos em 2022.

Filipe dos Santos Barrocas: O roteiro que antecede o filme Labirinto, 2022 (esse que te mostrei agora), consiste na minha atual pesquisa de doutorado em poéticas visuais na Escola de Comunicações e Artes da USP, com orientação do artista Mario Ramiro, e do qual o filme não dá conta de tudo, porque ele é extenso (aborda cerca de 70 anos), e recorta quatro obras, de quatro artistas de diferentes linguagens. Na pintura — pintura de carácter histórico — o Antônio Parreiras [1860–1937] que, na relação destes quatro, é o único que inverte a perspetiva e representa o invasor. Representa o português enquanto Outro, estranho e desconhecido, ou seja, ele apresenta a perspetiva do nativo, da terra. Essas pinturas são atualmente painéis decorativos e encontram-se no Centro Cultural de Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro. O conjunto Os desterrados é constituído por três telas: A Chegada, A Partida e O Suplício de Tiradentes, e foram uma encomenda do Estado Brasileiro no final do século XIX. Na mesma época, e possivelmente no contexto do concurso de pintura realizado no evento do 4.º Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, Óscar Pereira da Silva [1867–1939] representa Pedro Álvares Cabral [c. 1467/8–c. 1520] a desembarcar em Porto Seguro, em 1500, com um espelho na mão. Não admira que Vilém Flusser, filósofo checo radicado durante muitos anos no Brasil, num texto de 1998[1], sugira a sua inversão e a revelação do verso do espelho. Num Brasil já republicano, celebrar o “descobrimento” não deixa de ser reatualizar um mito fundador da origem portuguesa. Este evento comemorativo ganha corpo em várias matérias: em pinturas, na moeda de prata forjada nessa ocasião, na encenação da primeira missa, nos monumentos de São Vicente e Rio de Janeiro e a publicação de um livro de Antonio Candido[2] sobre as navegações contendo “documentos”, como por exemplo a Carta [ao rei D. Manuel I] [1500] de Pero Vaz de Caminha [1450–1500] — são uma série de elementos que fincam esses brasões de armas portugueses no solo brasileiro e constroem essa ficção do descobrimento do Brasil.

Outras duas obras:

  • O filme de Humberto Mauro [1897–1983], de 1937, chamado O Descobrimento do Brasil, surge já depois de a pintura ter encontrado no manual escolar um veículo de exposição e educação. Então, digamos que esses jovens cresceram vendo as imagens do “civilizador” chegando e encontrando os “selvagens”. O Descobrimento do Brasil, filme de Humberto Mauro, é o extremo desse processo de construção histórica e disseminação dessas imagens, sendo o cinema um meio de comunicação de massas. E o que é que o filme de Mauro faz? Ele ilustra e visualiza, literalmente, a carta de Caminha, que é uma perspetiva muito específica desta história, não é?! E daí ele ter sido usado como propaganda no governo de Getúlio Vargas [1882–1964] e apropriado para legitimar o seu projeto político que procurava fundar Nação e História num só gesto. O filme foi inicialmente financiado pelo Instituto do Cacau da Bahia, precisamente para mostrar o quanto a fundação do país foi “pacífica” e “cordial”, no entanto, depois Vargas viu aquilo e disse: “Oh, eu vou é usar este filme para poder demonstrar que existe luta de classes”, sabes? “Que isto é um governo do povo” e que o povo é “civilizado” — pronto, é o que esse filme representa. Não tem conflito: “o indígena entra por livre e espontânea vontade na nau para conhecer os invasores”;
  • E a outra obra é Iracema, de José de Alencar [1829–1877], 1865, ou seja, o romantismo brasileiro e o indigenismo. Trata-se de uma “ficção de fundação”[3] baseada no romance entre a indígena Iracema, a «virgem dos lábios de mel»[4], e o explorador português Martim Soares Moreno. Uma narrativa circular que começa e termina em partida, «buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano»[5]. «O cristão sabia por experiência que a viagem acalenta a saudade, porque a alma pára enquanto o corpo se move.»[6] O livro de Alencar, marcado por lutas de terra e língua, começa e termina com Martim Soares Moreno, cristão, guerreiro. A mulher que dá nome ao livro, pelo contrário, ao longo da narrativa vai dissolvendo-se na paisagem, até desaparecer. E esta, tão idealizada quanto o seu próprio corpo, é a visão do Paraíso. Moacir, filho da dor de Iracema, nascido desse romance, seria o primeiro brasileiro, e o primeiro tijolo dessa construção de um ideal romântico de miscigenação. Projeto ideológico que procurava fundar a nação brasileira desse encontro entre português e indígena, omitindo a presença africana no território já bastante disseminada na época.

Bom, são essas as obras com as quais diálogo na pesquisa, e não posso deixar de acrescentar que este filme não poderia ser possível sem a colaboração de outros artistas: Lucas Eskinazi e Yuji Kodato, com quem divido a direção e montagem do filme e o coletivo Som de Black Maria, Isadora Maria Torres e Léo Bortolin, que assinam a direção de som. Apesar do filme ser montado a partir do meu arquivo, essa montagem foi coletiva, permitindo-me outras relações com essas imagens.

TM: Porém, essas obras não aparecem no filme [Labirinto, 2022].

FSB: Não.

TM: Isso é importante para si?

FSB: Exato. Ou seja, o filme não ilustra a pesquisa. Ele está em tensão com ela; ele tenta e não dá conta do todo. Daí eu sentir que esta é uma primeira peça, um primeiro exercício, e que provavelmente haverá outro a seguir, outro filme, e vou-te dar um exemplo disso:

Segundo o diário de Antônio Parreiras, e ao contrário de Óscar Pereira da Silva — que pintou de Paris esse desembarque em Porto Seguro, daí a idealização daquela paisagem —, ele ia no local, fazia uma série de estudos ao ar livre, e acabou representando a chegada e a partida sem demonstrar um encontro. Daí a tese da pesquisa ser que a fundação não é baseada no encontro, como todas as outras obras representam, mas num desencontro, baseado nesse autor. E então, um bom exemplo disso é um relato de Parreiras, de uma conversa dos seus dois companheiros de viagem que tinha quando se deslocava ao interior da “selva” para pintar. Um deles era o Dino, um velho indígena que cozinhava para ele, e o outro, Palma, um escravo africano que desbravava o emaranhado da selva, companheiros… — bom, provavelmente ele era também escravocrata, não se pode deixar de ter isso em conta. Parreiras relata numa noite, à fogueira, uma conversa entre o Dino e o Palma, e essa incapacidade de entendimento e encontro entre ambos nos dá um bom exemplo do desencontro dessa fundação. Isto é o exemplo de uma cena que gostaria de representar. Labirinto é sobre um “descobrimento”, uma travessia, uma chegada a um lugar estranho (aos teus olhos) cujo imaginário que vem sendo construído é idílico, um lugar onde não existe mal e a vegetação é exuberante. Dividido em duas partes, há um claro antagonismo entre ambas e isso fica explícito não só pelas paisagens como também nos personagens: de um lado, um macho, um ser híbrido e estéril, que carrega peso, preso, um rebanho de ovelhas e uma senhora descascando batatas num alpendre de uma casa de aldeia; do outro, os trabalhadores do dia-a-dia numa praça urbana, os policiais, os evangélicos, os garis, as prostitutas e o programa colonial que ainda hoje servem.

TM: Mas não achas que seria mais generoso com o teu público providenciar as imagens às quais fazes referência? E num sentido warburguiano, talvez. Nem necessariamente dentro do filme, mas numa instalação, por exemplo. Eu acho que está tudo muito bem articulado e muito presente na tua cabeça, mas para o público isso não fica evidente. E então, sem essas explicações, eu acho que nós estamos a perder uma história bastante labiríntica, interessante e bem pesquisada, não é? Mas fico um pouco nessa dúvida que eu partilho contigo.

FSB: E eu concordo e prevejo várias materializações desta pesquisa. Sem dúvida, eu, enquanto artista, estando na academia, pesquiso esse material e ele acabará por ser publicado — nós publicamos uma tese no final, mas só isso não é suficiente. Agora, quando formalizamos para apresentar, temos de fazer escolhas e, às vezes, colocar coisas demais é um tiro no pé. Então, as duas cartelas iniciais, elas localizam-te num tempo/espaço específico, e identificam-te o personagem principal desta história: Martim Soares Moreno[7] — isso já é trazer Iracema para a história, já é trazer essa narrativa (só com o nome dele) e demonstrar como num contexto de Península Ibérica unificada, Filipe III, “O Piedoso” [1598–1621], ordena Martim a explorar e expandir os limites da colónia para norte, até à foz do Amazonas, para expulsar os calvinistas holandeses e franceses. Ou seja, a origem do Brasil é fundada num conflito religioso entre os jesuítas e os calvinistas. E quando vamos ler Darcy Ribeiro [1922–1997], no livro Povo Brasileiro (1995) ele diz: «Eles se davam ao luxo de propor-se motivações mais nobres que as Mercantis,  definindo‐se como os expansores da cristandade católica sobre os povos existentes e por existir no além‐mar. Pretendiam refazer o orbe em missão salvadora, cumprindo a tarefa suprema do homem branco, para isso destinado por Deus: juntar todos os homens numa só cristandade lamentavelmente já dividida em duas caras, a católica e a protestante.»[8] Alencar desenvolve um romance a partir do conflito entre as nações potiguaras e tabajaras, oportunamente aproveitado por jesuítas e calvinistas depois. Então, as duas cartelas no início do filme já são imagens, elas já fazem referência a essa obra. Um romance não tem imagem física na realidade, fica na tua cabeça. Outras imagens dessa pesquisa entram no filme de forma subtil, como por exemplo o recorte dos indígenas idealizados da tela de Pereira da Silva, mas não vou dizer quando. Como eu te digo, este filme não dá conta de toda a pesquisa, nem pretende. Este filme é uma parte do todo, e eu, sem dúvida, sinto que tem uma série de outras imagens que são importantes de serem comentadas e estão no roteiro, sendo este constituído por imagens e textos, e vindo a tomar a forma de publicação. Mas, concordo contigo, uma instalação será a forma de conciliar ambos. Assim aconteceu com a pesquisa de mestrado. O livro O corpo neutro[9], quando foi apresentado na exposição coletiva do 8.º Prêmio do Diário Contemporâneo de Fotografia de Belém do Pará, apresentou-se como uma instalação, uma mesa com objetos, um dos quais era o próprio livro. A mesa que está representada dentro do livro. Havia uma série de outros elementos que não ficavam explícitos no livro, além dos retratos, e entraram na instalação. Esse suporte é sem dúvida uma forma de conseguir conciliar pesquisa e prática.

TM: Agora, Filipe, passando por essa pesquisa tens passado por outros portugueses que vieram ao Brasil, figuras iconoclásticas, também nesse sentido de colonização? Quais foram?

FSB: Figuras iconoclásticas portuguesas, de forma explícita como o “gesto” do coletivo Revolução Periférica na estátua do Borba Gato no ano passado, não me aparece. Talvez essa destruição das imagens não seja tão explícita na cultura portuguesa, talvez essas imagens, e disso é um bom exemplo a religião católica, estejam tão entranhadas na nossa cultura que não tem como separar. Artistas portugueses que são uma grande referência para mim e onde talvez se expresse isso, são: Pedro Costa [1958], Miguel Gomes [1972], Gabriel Abrantes [1984], Lourdes Castro [1930], Grada Kilomba [1968], João Maria Gusmão [1979] e Pedro Paiva [1977], mas não reconheceria uma destruição da imagem, não tendo como exemplo o trabalho Vera Cruz [2000] da artista brasileira Rosângela Rennó [1962]. Este uma referência importante da minha pesquisa por atualizar a carta de Caminha sem imagens, interrompendo esse ciclo de traduções infinitas do encontro entre civilizados e selvagens.

TM: Tens ido à Casa do Bandeirante em São Paulo? Conheces o projeto que fizemos com Hugo Canoilas lá também, durante a 30.ª Bienal [de São Paulo]? Como você entende a Casa do Bandeirante e como o bandeirante está hoje explicando a história do Brasil? Alguma revisão que tenha acontecido ou…

FSB: Não conheço esse projeto vosso, não vi.

TM: É o Hugo que foi seguindo os caminhos dos bandeirantes para o interior em várias viagens, filmou, e depois recriou alguns dos objetos que estão lá na Casa do Bandeirante para serem utilizados, e reorganizou todo o display, lá dentro, com alguns artefactos da coleção do Museu da Cidade, acrescentando filmes e objetos de produção do Hugo.

FSB: A figura do bandeirante é uma questão interessante: eu fiz uma disciplina na pós-graduação no ano passado com o Tadeu Chiarelli [1956] sobre o mito nacional do bandeirante e não posso deixar de estabelecer uma relação entre esse mito e o que a Marilena Chauí chama de «mito fundador»[10]. A figura do bandeirante nasce em São Paulo, mas rapidamente se expande para o Brasil inteiro. O Getúlio Vargas e mais tarde Juscelino Kubitschek [1902–1976], com a pretensão de unificar o país, tendo-se em conta a herança rural presente no extenso território e a concentração de poder em São Paulo, apropriaram-se desse mito nos seus projetos políticos e dessa “marcha para o Oeste” que caracterizava os bandeirantes paulistas (o Estado de São Paulo no final do século XIX ia até Goiás… assim metade do Brasil era São Paulo…). A cidade de Brasília nasce desse projeto. A figura do bandeirante passa assim de local a nacional e a símbolo da descentralização de poder de São Paulo por Getúlio Vargas. Daí chegamos à intervenção na estátua do Borba Gato [1649–1718] pelo coletivo Revolução Periférica recentemente. O Tadeu tem uma hipótese: que não deitam abaixo as estátuas dos bandeirantes por questões psicanalíticas. Anhanguera [Bartolomeu Bueno da Silva], Borba Gato, entre outros.

TM: Qual é a estátua do bandeirante de que estás a falar?

FSB: Tem a figura do Borba Gato, sabes qual é? Aquela que parece um soldado de chumbo, assim todo duro. Essa está no bairro de Santo Amaro. Acompanhaste o que aconteceu com ela?

TM: Foi queimada, não foi?

FSB: Exato, foi queimada. Tem umas imagens impressionante dela queimando, e rapidamente foi limpa depois.

TM: Ah! Foi limpa e agora já está lá de novo, é isso?

FSB: Isso. Ou seja, uma estátua dessas com o fogo ela não se destrói, ela é feita de concreto [betão]. A hipótese do Tadeu é que o bandeirante é considerado o pai da nação, daí essa relação, esse mito fundador, e a incapacidade de matar o pai. Teve outras intervenções depois, como no Monumento ao Anhanguera, no Parque Trianon, em São Paulo e no Monumento a Pedro Álvares Cabral do Rio de Janeiro, aquele mesmo monumento que tinha sido produzido no contexto do evento 4.º Centenário [do Descobrimento do Brasil]. É interessante como essa figura vem sendo traduzida de linguagem para linguagem, da pintura para a escultura, e talvez, antes de tudo, tenha vindo da literatura, sendo assim mitificada.

TM: E o Tadeu então apresentou uma linha de tempo de como esses bandeirantes foram retratados na arte, na história da arte.

FSB: Sim, sim, e tudo isso para falar sobre o Monumento às Bandeiras do Brecheret [Victor Brecheret (1894–1955)]. Contextualizando a história dos monumentos para chegar à cidade de São Paulo e no conceito muito interessante de Bovarismo, como essa elite reproduziria símbolos da cultura europeia e desenvolvia esta cidade à sua imagem e semelhança. O Monumento às Bandeiras no Ibirapuera foi também alvo de várias intervenções.

TM: Onde o Jimmie Durham fez a intervenção…

FSB: Isso, isso. Ou seja, o curso centrava-se nesse monumento e na importância dessa obra no panorama da história da arte brasileira e do modernismo. O Monumento aos Fundadores de São Paulo, que está ao lado do Monumento às Bandeiras, uma escultura neoclássica, pelo contrário, é o monumento que entra no filme Labirinto. Monumento que foi homenageado pelo Presidente da República Portuguesa há alguns anos atrás e continua celebrando a continuidade entre Portugal e Brasil.

TM: Mais informação no site do Consulado Geral de Portugal: http://consuladoportugalsp.org.br/fundadoresdes/

FSB: O Monumento às Bandeiras é um bom exemplo das disputas de narrativa presentes na história do Brasil e como as obras de arte são apropriadas pelos projetos políticos. Embora ainda hoje se concentre em São Paulo o poder económico do país, no início do século XX concentrava-se o poder simbólico também.

TM: Mas de certa forma a sua pesquisa, então, também concentra a ligação Portugal/São Paulo, não é?

FSB: Portugal/Brasil.

TM: Mas os monumentos todos que você menciona aqui, agora, são todos localizados em São Paulo, e o filme também nos leva até São Paulo, o filme que acabámos de ver.

FSB: Sim, sem dúvida, mas essa informação não está explícita no filme, só alguém como tu, que viveu nessa cidade, pode reconhecer. Sendo este um filme que se posiciona entre o documental e o ficcional.

TM: Será que, então, essa ligação com Portugal e o bandeirante português é mais presente em São Paulo, de todas as cidades do Brasil? Ou como você vê isso dentro da sua pesquisa?

FSB: A comunidade portuguesa em São Paulo sempre foi influente e, de fato, esteve envolvida na disputa pelo projeto do Monumento às Bandeiras. Sinal da importância dessa figura para a comunidade. Embora reconheça agora a relação entre a figura do bandeirante e esse mito fundador, eu acabei me centrando mais em figuras que antecedem essa. De todas as obras pesquisadas, só Martim, o personagem do romance de Alencar, se adequaria a essa definição, e mesmo assim, na época que a obra retrata, o início do século XVII, talvez esse termo ainda nem se usasse. Os monumentos retratados no filme remetem-se a um momento fundador do país. Pedro Alvares Cabral de braços abertos com cinco metros de altura. Na base está escrito: «A PORTUGAL DEVEMOS TUDO; / O NOSSO SANGUE, / A NOSSA HISTÓRIA. / A ORIGEM DAS NOSSAS INSTITUIÇÕES LIVRES, / O ESPAÇO AMPLO QUE HABITAMOS»[11]. O Jaider Esbell [1979–2021], nesta última bienal de São Paulo, fez aquelas cobras prontas para atacar a estátua do Pedro Alvares Cabral — elas estavam prontas para dar o bote nele. Na realidade eu escolho essas estátuas, esses monumentos, por conta da figuração desses personagens, algo característico da escultura neoclássica, para dar rosto a estes personagens. Se formos a São Vicente, perto de Santos, a primeira vila, ela tem o primeiro monumento desses, que é o monumento à fundação da Vila de São Vicente [Marco Padrão – IV Centenário da Fundação de São Vicente], e esse não tem figuração, ele contém os brasões do Pedro Alvares Cabral e de Martim Afonso de Souza, que foi o primeiro colonizador do Brasil. Em 1500 esse encontro é fortuito, segundo a teoria da causalidade, conforme nos apresentam os primeiros historiadores brasileiros e na sequência dos escritos de Caminha: eles iam para a Índia e descobriram por acaso esta terra. E, no entanto, tem uma série de relatos anteriores que mostram que já sabiam que havia terra ali. Daí que a armada de Martim Afonso de Souza seja a primeira colonizadora. A armada de Cabral antes de partir, deixou dois degredados. Os degredados, no fundo, eram condenados ao exílio por não cumprir uma lei, por não pagar um tributo… João Ramalho [1493–1580], considerado o pai dos paulistanos, é possível que seja um desses. Na carta do Pero Vaz de Caminha, o próprio pede ao rei no final do relato que mande de São Tomé o cunhado dele, que estava lá em desterro. E porque é que ele estava em desterro? Porque ele não pagou uma taxa, ou seja, o desterro era uma forma de punir, não prendiam, mas mandavam para desterro. Então esse personagem que é tido como o pai de São Paulo, esse João Ramalho, ele possivelmente chega no litoral de São Paulo no início do século XVI, descendo do Nordeste, onde teria sido deixado, e é aceite pelos tupiniquins. Esse processo de integração é definido por Darcy Ribeiro como “cunhadismo”, um procedimento político indígena que estabelece uma aliança com o estranho, absorvendo-o na sua cultura.

TM: Quem chega em 1500? Quem é deixado?

FSB: A armada de Cabral chega em 1500 e antes de partir deixa dois degredados. Sobre estes personagens da história, que considero de grande importância, quero dedicar a minha atenção. O degredado, ou desterrado, conforme é possível chamar também (observe-se o conjunto de telas de Antônio Parreiras citadas anteriormente ou a pintura Os Descobridores (1899), de Belmiro de Almeida), é um condenado ao exílio deixado ficar no território para aprender a língua nativa e, por uma questão de “cunhadismo”, como o Darcy Ribeiro o chama, uma prática política indígena que incorpora a diferença na sua cultura e se fortalece com essa aliança, integra-se na cultura local. João Ramalho casou com Bartira (essa representação de Bartira e de João Ramalho, tidos como os pais do estado de São Paulo) e se de facto ele é um dos degredados que ficou desde 1500, ele teve 31 anos até à chegada da armada de Martim Afonso de Souza, daí a importância desse personagem na história. Martim Afonso de Souza funda a Vila de São Vicente em 1531. Ao ser integrado na sociedade local, acaba depois por ser importante na manipulação dos nativos quanto aos interesses dos portugueses nas futuras disputas de território com os franceses e holandeses. O romance Iracema apresenta muito bem essas alianças que os invasores estabeleceram com as tribos nativas, o que se explica por conta desses mais de 30 anos de convivência, de integração, dessas personagens. Então essa personagem é bem importante nesta história. Eu e o artista brasileiro Mario Ramiro projetámos uma instalação chamada Desterro, com esse argumento, que essas personagens tiveram um papel importante nesta história e demonstrando a fundação da nação como um desencontro. Não sei se me perdi na tua pergunta.

TM: Não, não, obrigado. Obrigado, Filipe.

FSB: Obrigado eu, pela atenção.

TM: E da sua visão, quais são as obras mais interessantes nesse momento, ou do lado português ou do lado brasileiro, que trabalham esse bicentenário da independência, ou a ligação colonialista entre Portugal e Brasil…?

FSB: É uma boa pergunta. Atualmente?

TM: O que te vem à cabeça, o que te parece mais emblemático, mais interessante neste momento?

FSB: Eu venho fazendo um recorte mais histórico na minha pesquisa, Óscar Pereira da Silva, Antônio Parreiras, Humberto Mauro e José de Alencar…

TM: Mais histórico.

FSB: …mais histórico. Eu foquei nisso e é nisso que aprofundo. José de Alencar, de certa maneira, é interessante a sua “emancipação linguística”, e exemplo disso é a resolução apresentada na Câmara dos Deputados em 1936 para tentar mudar o nome da língua e o português do Brasil passar a ser chamado de brasileiro. E nós sabemos que são línguas diferentes: culturas diferentes têm línguas diferentes. E não passou, não conseguiram retirar o “português do Brasil”, na língua. O Haroldo de Campos [1929–2003] reconhece a importância deste autor e certamente uma série de poetas, inclusive portugueses, também. Ele está “torcendo a língua” portuguesa. Alencar, um dos primeiros a fazer isso, está “dobrando a língua” do colonizador, e Pinheiro Chagas [1842–1895], um crítico literário da época, sublinha esses maus tratos à gramática portuguesa. Este autor, como os outros que pesquisei, não são as questões estéticas que analiso e sim os contextos dos seus trabalhos, daí que não se possa deixar de considerar que Alencar era um escravocrata e que excluiu a presença africana dessa sua ficção de fundação. Através das obras de Alencar, Óscar Pereira da Silva e Humberto Mauro, pretendo revelar o cenário dessa construção histórica e o papel destas representações nesse processo, como eles reproduzem uma visão estereotipada sobre o “Outro”, sobre o indígena, sobre o Brasil, formando uma visão idílica dessa paisagem. Antônio Parreiras é o único que inverte a perspetiva, mas também não o pretendo colocar sobre um pedestal e o recortar do contexto, observando-o de forma anacrónica. Tudo isto para dizer que, além dessa pesquisa, pretendo estabelecer diálogos com outros artistas contemporâneos portugueses e brasileiros que vêm construindo pontes entre ambos os países, como, por exemplo, o Tiago Cadete [1983], um artista da performance, tu já deves ter ouvido falar…

TM: Sim.

FSB: …ele quando faz um trabalho como Alla Prima [2015], um trabalho que reinterpreta as poses das pinturas históricas, é um trabalho com que eu dialogo, com que eu me identifico. Ele está traduzindo essas imagens, um pouco o que eu faço, também. Então, digamos que ele está pensando e dialogando com essa história. A Rita Natálio e O Museu Encantador [2014, 2021], onde ela se centra nesse encantamento entre as duas culturas, usando como referência o Gabriel de Tarde [1843–1904], no mestrado dela que se chama Papagaios ao Espelho[12] [2015], e onde expõe as relações de espelhamento entre estas duas culturas. Eu acho muito interessante o trabalho que ela faz. Ana Vaz [1986], artista brasileira no cinema e a curta-metragem Ocidente [2015]. Outros artistas aos quais não posso deixar de fazer referência, de tão próximos que são, é a Flávia Vieira [1983], o Tiago Mestre [1978] e o Jordi Burch [1979], que, cada um à sua maneira, vêm costurando essas relações entre os dois países através das imagens que criam — são artistas com quem aprendo muito. E os artistas brasileiros, além da Rosângela Rennó que já mencionei, Lygia Clark [1920–1988], Hélio Oiticica [1937–1980] e Cildo Meireles [1948] são bons exemplos de práticas cujos limites da atuação são imprecisos e de como essa história colonial vem sendo processada e transformada.

 

[1] cf. FLUSSER, Vilém, «Do Espelho», Ficções Filosóficas, Universidade de São Paulo, 1998, p. 67–71.

[2] Nota editorial: O livro em causa tratar-se-á de CANDIDO, Antonio Zeferino, Brazil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1900. Na capa, por cima do título, lê-se: «Quarto Centenário do Descobrimento do Brazil por parte do Instituto Historico Geographico e Ethnographico Brazileiro».

[3] N.e.: Considerando o conceito utilizado por Doris Sommer em Foundational Fictions. The National Romances of Latin America, University of California Press, 1993.

[4] v. ALENCAR, José de, Iracema, Ministério da Cultura do Brasil, Fundação Biblioteca Nacional, p. 5 [http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000014.pdf (último acesso: 01/10/2022)]

[5] Ibid., p. 4

[6] Ibid., p. 55

[7] N.e.: No romance, dá apenas pelo nome de Martim, personagem a partir da qual a ficção alude à figura histórica de Martim Soares Moreno (1586–depois de 1648), colonizador português e fundador do estado do Ceará. No «Argumento Histórico», dentro do romance, José de Alencar faz a ponte entre ficção e história.

[8] in RIBEIRO, Darcy, O Povo Brasileiro. A Formação o Sentido do Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 2.ª ed., 1995, p. 39.

[9] https://issuu.com/filipedossantosbarrocas/docs/o_corpo_neutro (acedido em 05/10/2022)

[10] cf. CHAUÍ, Marilena, Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.

[11] N.e.: Segundo o website do Conselho da Comunidade Luso-Brasileira do Estado de São Paulo, sendo o texto atribuído a Tancredo Neves. v. http://www.cclb.org.br/2019/10/28/monumento-a-pedro-alvares-cabral/ (acedido em 27/04/2022)

[12] NATÁLIO, Rita, Papagaios ao espelho, 2015; Dissertação em Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia: Psicologia Clínica; https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/15399/1/Rita%20Natalio.pdf (acedido em 02/05/2022)