Alguém acha que esta situação é opressiva?
Qual situação?
Aqui. Agora.
Expanding Concert #2, 22 Outubro 2020
“Ter uma identidade é um acto de resistência”
Cidadão anónimo palestiniano
Este texto de Regina de Morais documenta a segunda edição de Expanding Concert 2019 – 2023. Criado por Mattin para as Galerias Municipais, a edição de 2020 apresentou um concerto de Mattin e Margarida Garcia no Pavilhão Branco.
A terceira iteração contará com um concerto de Mattin e Margarida Garcia com DJ Marfox, no dia 19 de Setembro, 2021, na Galeria Avenida da Índia. A resposta em forma de texto será dada por Pierre Bal-Blanc. Para mais detalhes e reservas contacte: bilheteira@galeriasmunicipais.pt
Há quase um ano, Mattin e Margarida Garcia retomaram um espaço de reflexão: como pode a arte (neste caso, um concerto contínuo) responder a problemas globais e locais sem usar a ironia que faz parte do discurso artístico desde, pelo menos, as latas de Warhol? Como pode a arte, independentemente do meio de expressão, escapar aos usos formais preconizados pela indústria cultural, enquanto evita o papel elitista de uma “satisfação de aluguer para a sede de irrealidade e vazio, sem os quais a classe dominante não consegue saborear o seu poder e domínio”[1]? Como pode a arte derrotar a opressão dentro e fora de si mesma?
A segunda performance ao vivo de Expanding Concert ocorreu durante a pandemia COVID-19. Em vez de se movimentarem livremente, todos os participantes tiveram de manter a distância. Em vez de rostos expondo reacções, máscaras cirúrgicas escondiam expressões faciais. Após meses de confinamento, uma performance ao vivo pode ter efeitos opostos: a fome de interacção, de fazer parte de um evento comum, ou o desejo de se retirar e tentar neutralizar a nossa própria presença física. O Expanding Concert #2 certamente tocou e questionou estes dois efeitos, que não existem apenas num contexto artístico, mas superam-no e tornam-se parte das nossas performances do quotidiano?
Escrito em Eden Prairie, Minnesota, EUA, 2021
A tradição das gerações passadas e defuntas é o nosso próprio pesadelo. Ela vive na nossa memória como os dias áureos que nunca tivemos, o mundo fantasma em que gostaríamos de habitar, e que muitos continuam a tentar trazer para o presente e para o futuro, como a pós-vida de algo que nunca vivemos, apenas ouvimos falar. A ficção histórica deixada pelo desaparecimento das gerações passadas torna-se a semente para um futuro imaginado.
Vivemos em memória de algo. Infância, juventude, querubismos. Uma ânsia absoluta por conceitos que ganham importância à medida que envelhecemos: saúde, reprodução, sobrevivência, segurança, a terra prometida. O que é esta terra prometida? Vida na Terra em perfeita comunhão com a natureza? O abandono da Terra em busca de uma colónia marciana? Uma simbiose de corpos humanos e corpos artificialmente inteligentes? Um mercado livre em que o poder de compra é infinito? A possibilidade de felicidade eterna? E quem tem direito a entrar na terra prometida? Cidadão ou migrante, subalterno ou imperialista, parvenu ou pária, fraco ou forte, islâmico ou islamófobo, judeu ou antissemita, racializado ou racista, humanidade autêntica ou fútil [2]?
Estas dicotomias de ser são tão imaginárias quanto uma terra prometida. O nosso presente está repleto de contradições multitemporais e em multicamadas, tornando difícil imaginar uma solução e fácil desejar uma ressurreição do passado [3]. Os sentimentos contemporâneos de privação e desapropriação trazem à tona um anseio por uma ordem que se pode traduzir em retornos diferentes, indeterminados e vagos: o retorno ao fascismo, à autoridade, ao autêntico, aos modos de vida nativos ou tradicionais [4]. Esta total desapropriação dos indivíduos tem como resposta um espírito de irracionalismo anti-alguém, uma forma contemporânea do irracionalismo, nacionalismo e supremacias consumidos durante o Terceiro Reich. As sociedades ocidentais contemporâneas desenvolveram-se sob os auspícios do Homem Unidimensional (que trabalha no sector terciário da indústria e compõe mais da metade da classe trabalhadora), que teve que criar para si paixões, nações, devoções e lealdades fictícias [5].
Uma das ficções criadas por e para o Homem Unidimensional é a conceptualização da História como uma estrutura aristotélica de três atos, seguindo uma narrativa (ou seja, ficção) que culmina na resposta a uma pergunta dramática, o fim do conflito, e restabelece a ordem perdida. “Voltar ao normal” tem sido, desde o início da pandemia COVID-19, uma das frases que melhor descreve uma preferência colectiva por um passado já romantizado.
No entanto, não é difícil perceber que a ideia de “estabilidade passada” é outra invenção. Basta pensar como o colonialismo e a escravatura são as raízes da maioria das sociedades ocidentais (e da instabilidade e violência perpétua contra os povos outrora escravizados) para perceber que, a menos que sejamos capazes de mudar radicalmente as nossas estruturas hegemónicas ocidentais, a forma como temos feito e contado História baseia-se unicamente num léxico e numa práxis ocidentais e brancos, tornando-nos incapazes de pensar num futuro fora desta genealogia intolerante. E, mesmo assim, temos que ser extremamente cuidadosos e perceber que provavelmente qualquer exigência da sociedade ocidental em ver a História com seus próprios olhos e os olhos dos outros também pode ser um ponto de partida para mais formas de racismo. Pode acabar por ser a afirmação de uma superioridade do Ocidente, que durante séculos dominou através de avanços técnicos e científicos (bélicos), e ainda, e esta é a premissa que lhe subjaz, é capaz de ocupar o lugar do outro pelo outro. Esta é uma das muitas questões que a academia, intelectuais, pensadores, e outros que tais, terão que lidar com se houver alguma hipótese de libertar a História no futuro.
Ao responder à pergunta “Fascismo: Já lá chegamos?”, Chad Williams, professor de Estudos Africanos e Afro-Americanos na Brandeis University, respondeu: “De uma perspetiva afro-americana, até já estivemos lá antes” [6]. De acordo com Williams, diferentes elementos de fascismo já existiam na sociedade americana, como “o senso de pureza racial e cultural, restrição de direitos democráticos, esmagamento da dissidência política, violência paramilitar, tal como violência perpetrada pelo Estado (…)”. Muitos destes elementos podem ser transportados para a(s) atual(is) ordem(ns) do dia, como o ressurgimento de “Law and Order” (“Lei e Ordem”), milícias brancas, criminalização de protestos pacíficos e, acima de tudo, a adoção de missões de vigilância e punição por parte da polícia e do sistema prisional junto de organismos específicos de segurança social em áreas como educação, habitação social ou apoio ao rendimento[7].
Este é o liberalismo democrático de duas faces da nossa modernidade, tendo como bandeira a luta contra o fascismo e os regimes autoritários, mas sendo simultaneamente a terra firma onde uma vontade de poder exclusivista reaparece regularmente, “manifestando-se nas zonas de exclusão interna dentro das sociedades liberal-democráticas (plantações, reservas, guetos e prisões); e nos locais onde o impulso expansionista e força universalizante do liberalismo foram capazes de escapar às suas próprias “restrições constitucionais” (a fronteira, a colónia, o estado de emergência, a ocupação e a contrainsurgência)” [8].
Enquanto nos EUA imigrantes e minorias continuaram a ser alvo de ataques civis e do governo durante e após a pandemia COVID-19, em Portugal, ódios de longa data continuaram a ser lançados (e aumentaram) contra a comunidade cigana, a diáspora africana e a diáspora brasileira.
Segundo Franco Fortini, “a frase ‘qualquer um é o judeu de outrém’ torna-se uma verdade literal”[9] no liberalismo democrático de hoje, que transborda de paixões ideológicas, transformando qualquer pessoa num possível alvo de ódio etnocêntrico. A propagação do novo coronavírus também trouxe uma revitalização de novos e/ou adormecidos chauvinismos: seja o genocídio dos idosos na Suécia porque “a economia não pode parar”, o ódio asiático que cresceu exponencialmente nas sociedades ocidentais ou propostas de um cerco às comunidades ciganas portuguesas.
Precisamente dois meses após o assassinato de George Floyd, Bruno Candé, um ator negro português, foi assassinado por um veterano da guerra colonial nos subúrbios de Lisboa. “Volta para a tua terra, p____”, “a tua família está na senzala e tu também lá devias estar” e palavras sobre a violação da mãe do ator e de mulheres negras foram algumas das coisas que Candé ouviu nos dias antes de ser morto(9). Pouco antes de a COVID-19 ser considerada uma pandemia, um deputado português de extrema-direita (único membro do partido de extrema-direita CHEGA) apelou a que uma deputada negra (Joacine Katar Moreira) fosse “devolvida ao seu país de origem”.
Uma vez mais, a pós-vida do colonialismo continua nas mesmas manifestações antinegros de antes. Não podemos negar o ritual intrínseco ao assassinato de um corpo negro, que “permite essa libertação coletiva e garante a estabilidade da sociedade civil” [11], mantendo a estabilidade da sociedade civil branca, a que o negro não pertence [12]. Dito de outra forma, estas manifestações antinegros mostram como a violência racial não se baseia em exploração ou alienação, como uma perspetiva marxista assumiria, mas na morte social e na branquitude como valor. A pandemia COVID-19 apenas agravou esses valores, tornando ainda mais difícil, senão impossível, para os socialmente mortos encontrarem uma saída: pense-se nos palestinos em Gaza, nos requerentes de asilo na Europa ou nos danos colaterais que resultam das tentativas neocolonialistas de controlar ou influenciar territórios.
Neste cenário, não são mais as forças de produção, e principalmente a tecnologia, que são os motores da história, mas algo que tem na sua essência aqueles que não têm acesso à sociedade civil, à sua linguagem e não têm como criar movimentos contra-hegemónicos. Não são aqueles que são explorados e alienados, como mencionamos tão abertamente no ocidente, mas aqueles que nunca existiram sem estarem socialmente mortos [13]. Dito de outra maneira, aqueles cuja identidade e reconhecimento como seres humanos lhes são negados (eles representam algo semelhante a anti-humanidade) e nunca tiveram uma cronologia de uma era dourada para olhar como pilar dessa dita identidade.
Porém, os socialmente mortos são justamente aqueles que podem escapar “daquela doença a que chamamos identidade” [14]. Resistência a esta doença pode ser o ponto de partida para uma metafísica que não pertence ao universo das identidades e ideologias de supremacia ocidental. Esta nova metafísica abole o carácter opressivo da identidade (que é normativa, comparativa e, para funcionar, requer exclusão e disciplina) e não funciona num “retorno contínuo do passado sob a forma de identidades nacionais, identidades étnicas, identidades sexuais, entre outras” [15]. Ela contraria as “premissas mono-humanistas [neo]liberais, colonialistas e imperiais” [16] e procura desfazer os sistemas através dos quais o conhecimento e o conhecer são constituídos. Esta metafísica não faz parte do sistema de conhecimento existente que, desde o seu início, deixou pessoas fora da humanidade, e rompe qualquer vínculo com esse mesmo sistema, envolvendo-se em desobediência e resistência epistémicas [17].
[1] Fortini, Franco. “The Writers’ Mandate and the End of Anti-Fascism” Screen, volume 15, issue 1 (1974): 33-72
[2] Mbembe, Achille. Critique of Black Reason. Duke University Press, (2017)
[3] Rabinbach, Anson. “Unclaimed Heritage: Ernst Bloch’s Heritage of Our Times and the Theory of Fascism.” New German Critique, no. 11 (1977): 5-21
[4] Teixeira Pinto, Ana., Bojarska, Katarzyna. “Whose West and Whose Universal? Ana Teixeira Pinto in conversation with Katarzyna Bojarska” View. Theories and Practice of Visual Culture, 29, (2021): 5-12
[5] Fortini, Franco. The Dogs of the Sinai. Seagull Books. (2013)
[6] #ClassACT Forum (Bundles, A’Lelia., Kristol, William., Strossen, Nadine., Williams, Chad.) “Fascism: Are We There Yet?”, October 27, (2020), video, https://www.youtube.com/watch?v=Z4ggYjR94Tc
[7] Petitjean, Clément. “Prisons and Class Warfare: Interview With Ruth Wilson Gilmore” historical materialism (2018)
[8] Singh, Nikhil. “The Afterlife of Fascism” South Atlantic Quarterly (2006): 10-24
[9] Fortini, Franco. The Dogs of the Sinai. Seagull Books. (2013)
[10] Vidal, Marta. “The murder of Bruno Candé has put racism – and colonial amnesia – under the spotlight in Portugal” Equal Times, September 11, (2020)
[11] Marriott, David. Bonding Over Phobia. Columbia University Press (1998)
[12] Ibid.
[13] Wilderson, Frank B. “The Prison Slave as Hegemony’s (Silent) Scandal.” Social Justice 30, no. 2 (92) (2003): 18-27.
[14] Berardi, Franco. Heroes: Mass Murder and Suicide. Verso Books (2015)
[15] Ibid.
[16] Winter, Sylvia. On Being Human As Praxis. Duke University Press (2015)
[17] Ibid.
Apêndice
Nota: Depois da performance, Allan Puce escreveu um poema a descrever o que sucedera nas Galerias Municipais de Lisboa a 22 de Outubro, 2020. O homem mascarado no poema é Mattin. A mulher é simultaneamente Margarida Garcia e Ana Teixeira Pinto
10-22-2020
Projection of a before
a picture expanding backwards
Shadowed shape of a woman
playing bass and a man’s masked
face. Black mask. Difficult times,
repeated question
do you believe in _____
does anybody have an idea
concept of _____?
equivocal and ambiguous space
(arched shape of a woman
playing bass
a continuous line in her line fingers)
some parallels,
projection of a before
times of people looking for directions
to get through.
No more birds outside.
Doubles
shadow of a masked man
in the projected image of an unmasked man.
Do you think these sounds
are connected or reflect
in some ways ________?
Expanding forms
in infinite disintegration
colors, textures, reaction, lead:
moving shadow of the woman
echoing words (forms)
to kill, kidnap, common,
potential violence, potential death,
plan to kill.
Do you have any thoughts
about the _______ ?
Nostalgia.
Already about the past
projection of a before.
Tension
in the woman’s hand
apparently exhausted
childlike, a second man
plays the chair
a potential for
sameness,
Do you
reply?
Bodies get up
and start moving chairs
as
politics,
art form,
collectivity,
force, feather, flight,
menace, meaning,
manifestation or
will:
STOP-stop it-stop.
The woman’s heels
leaving. What was it,
what happened, is not,
is. The collective body
seeks a continuous line her line fingers
from the woman.
Projection of a before
oppressive before
here, right now.