Mapear o tempo: memória e premonição

João Louro, Nuno Faria e Tobi Maier (Galerias Municipais)

joao louro ni le soleil ni la mort galerias municipais

Extratos da conversa “vanguarda” ocorrida na exposição ‘Ni le soleil ni la mort’, de João Louro.

 

Tobi Maier: Começando com o título, João, em francês [Ni le soleil ni la mort], pode-nos contar um pouco como chegou a esta “conclusão” ou “manchete”?

João Louro: […] Antes de responder a essa pergunta, eu faria uma espécie de pequeno parêntesis, porque é bom também, nestas circunstâncias, podermos falar sobre isso, e com certeza que toda a gente o faz (toda a gente foi a museus, toda a gente conhece artistas): o que é que é isto de ser artista? O que é que é isto de fazer arte? E essa é provavelmente a pergunta primeira que se deve fazer, para depois, com alguma propriedade, responder à tua questão.

Eu acho que abordar isso é importante neste momento porque, se nós repararmos bem, os artistas acompanham a nossa vida no planeta desde o início. […] Dizem que há a profissão mais antiga do mundo ― não há: há uma ainda mais antiga, que é a de ser-se artista. E podia-se até fazer uma história só [a partir dela] sem a ligar à filosofia, ou à antropologia, ou à política ― podia-se fazer só uma história a partir destas representações que os artistas fizeram ao longo do tempo. Portanto, o artista, basicamente, é um escriba. Ele relata coisas, ele mapeia o tempo, portanto ele faz mapas. E se nós juntarmos todos os artistas ― pelo menos aqueles que me interessam (e espero encontrar-me também no meio desses, por causa da questão da pertinência) ― nós temos um mapa da nossa presença neste sítio desde o princípio. Portanto, o artista faz uma espécie de mapeamento do tempo. Claro que sempre de uma forma subjetiva, porque é sempre, enfim, filtrada pela observação que faz de determinados fenómenos. Mas, é possível um artista neste momento contemporâneo dizer que é mais importante que o Andy Warhol ― isto sem qualquer tipo de pretensão. Sobretudo porque a arte que é feita atualmente, e que pode lidar com os assuntos com que alguns artistas já não poderão lidar porque não estão cá, torna os artistas de hoje mais importantes. Há um pavor humano que é o de perder a memória. Nós não poderíamos imaginar uma vida sem memória, não podemos imaginar um “planeta Alzheimer”, quer dizer, era um planeta que não teria nem passado nem futuro, era uma entidade que existiria só no presente. Portanto esse papel, o da memória, da testemunha, que é o papel que o artista desenvolve, parece-me ser absolutamente fundamental.

Isto foi só um pequeno parêntesis para depois poder responder-te, com alguma propriedade. Portanto, o artista cria memória. Essa criação de memória é fundamental e é isso que, basicamente, ele faz, mapeando, digamos assim, o tempo.

Quanto à questão que tu colocas: “Ni le soleil ni la mort” é um título de um livro do escritor Peter Sloterdijk, que eu gosto muito, e que me parece que seria o mais apropriado para falar de um fenómeno que é especial. Gostaria muito de ligar o fenómeno da Primeira Guerra Mundial com as vanguardas. Isso parece-me ser fundamental, criar essa ligação. Parece que não está bem feita ainda, ou está feita de uma forma ténue, e portanto é importante trazer alguns elementos, alguns autores para esta conversa, e eu acho que o Blanchot é fundamental para dar início à conversa e início de exposição.

TM: Sim, na sua obra, você frequentemente trabalha as vanguardas do século XX. Agora, a Batalha de Verdun, de 1916, tem sido importante para a pesquisa para esta exposição ― uma das principais batalhas da Primeira Guerra Mundial. Queria entender um pouco porque você decidiu embarcar nessa pesquisa que, como nós podemos ver nas imagens, é também bastante cruel, não é?

JL: Eu comecei a interessar-me pelo assunto da relação da Primeira Guerra com as vanguardas há uns tempos. A Primeira Guerra Mundial começa em catorze [1914], portanto, se calhar, em 2014 isso deve ter tido alguma influência em mim, não faço ideia (eu já pensava nisso um pouco antes). Mas para imaginarem, para terem uma noção do que é que estamos a falar, a batalha de Verdun dura dez meses, onde morrem cerca de novecentas mil a um milhão de pessoas (estamos a falar de um estádio de futebol cheio que morria todos os meses – é extremamente dramático). E dá-se precisamente a coincidência do início dessa batalha com uma série de fenómenos importantes relacionados com a vanguarda: o aparecimento do Cabaret Voltaire (a batalha começa em fevereiro [21 de fevereiro de 1916], o Cabaret Voltaire é inaugurado em Zurique em fevereiro também [5 de fevereiro de 1916], com diferenças de datas muito curtas ); o primeiro manifesto dada está também cronologicamente próximo [16 de julho de 1916]… portanto, tudo se estava a passar simultaneamente ― a fuga de artistas, a morte e a mutilação de outros artistas que tinham ingressado nas fileiras, tudo estava a confluir. Estas personagens ou estavam em combate ou estavam a fugir para Zurique, porque [a Suíça] sempre foi um Estado neutral e estava a absorver todas estas pessoas que viviam em profunda revolta contra o status quo da situação que se estava a desenrolar.

Portanto, esta relação muito próxima entre uma batalha, que dura cerca de dez meses, e o aparecimento de uma série de fenómenos relacionados com o início das vanguardas era importante desenvolver. Isto para percebermos como é que os nossos antepassados do universo da arte fizeram para que nós cheguemos até ao hoje. Ou seja, se nós percebermos esses fenómenos do princípio do século XX vamos compreender muito melhor a arte no sentido lato e a arte contemporânea em particular.

[…]

TM: Na abertura da exposição, houve uma performance com a leitura de poemas dadaístas, nomeadamente Karawane e Totenklage, de Hugo Ball, e Ursonate, de Kurt Schwitters, que foram lidos por Hibou de Gris. Também na finissage de uma outra exposição que organizámos este ano, de Stefano Serafin, na Galeria Avenida da Índia em maio (o Serafin retratou a destruição das esculturas de António Canova durante a Primeira Guerra Mundial), organizámos um concerto de música futurista na ocasião. Esta semana, estava traduzindo o release para uma mostra que vamos abrir agora em breve, com a Adriana Proganó, e o texto também faz referência ao manifesto dada. Então, queria talvez entender, da sua parte, como artista, como você explica o interesse de artistas plásticos […] por esse momento, por essa Primeira Guerra também? […]

JL: Eu até fico satisfeito. Peca por tardio e por serem poucos. Eu fico satisfeito que todos estes artistas comecem a olhar para trás, para os seus, como eu dizia, antepassados do mundo da arte, para os nossos bisavós. Para nós compreendermos o universo da arte contemporânea temos mesmo de ir lá atrás olhar para eles. Portanto, eu fico muito satisfeito que haja artistas interessados em tentar procurar e trazê-los outra vez à superfície e reinterpretá-los na contemporaneidade, ou seja, trazê-los outra vez à superfície e pensar sobre eles. Porque eu acho que é nesses artistas de vanguarda do princípio do século XX que está a origem da arte contemporânea (da arte moderna e depois a origem da arte contemporânea). Percebendo essa origem, nós percebemos muito melhor o nosso tempo. Não é uma coisa de nostalgia nem é uma coisa de fuga para o passado ― não: é uma espécie de recuperação de referências importantes para se perceber a atualidade. Não tenho dúvidas sobre isso.

TM: E a questão da música e do som como intervenção? É mais um momento de interrupção, ou mais uma “banda sonora” para a sua obra, a música e o som ou a performance…? Estes poemas, reproduzidos em áudio no espaço expositivo e que foram lidos ao vivo na performance, aparecem também citados em obras de sua autoria que temos aqui na outra sala ― os diagramas periódicos[1], não é?

JL: As Tabelas Periódicas pegam nalguns trabalhos anteriores. O que fizeram estes artistas do princípio do século foi destruir, digamos, a plataforma de comunicação que existia, que estava decadente e estava moribunda também. Portanto eles acabam por dinamitar essa plataforma e recomeçar praticamente do zero. Por isso, todas essas “viagens” que fazem à arte africana, tudo isso, todas essas referências que existem também nesta exposição — a procura do primitivismo, a procura das origens, a procura daquelas danças de culto, o chamamento do “tan-tan da selva”… todos esses fenómenos eles tentam recuperá-los. Em relação às Tabelas Periódicas, é precisamente isso, ou seja: uma tabela periódica representa os elementos constituintes do universo, digamos assim, os elementos básicos. Só que ali estão transformados pelas palavras dos poemas do Hugo Ball e do Kurt Schwitters. E, portanto, se eu conseguir essa substituição, essa deriva, ela faz com que estejamos perante uma espécie de novo universo, nova linguagem, nova forma de comunicação, tudo aquilo de que estes artistas também andavam à procura ― novas formas, novas linhas de comunicação. E essas obras são precisamente isso, são uma espécie de olhar para uma espécie de constituição do mundo, uma nova constituição do mundo, uma origem, sem moral, sem positivo nem negativo, não há ali dialética, é crua. E essa construção do mundo tem uma espécie de pedras base que, neste caso, serão constituídas pelos sons desses poemas, dada (porque aqueles poemas não tinham significado, não tinham conteúdo). Portanto, é uma espécie de origem do mundo, chamemos-lhe assim.

TM: Porém, a performance de Hibou de Gris não foi encenada em frente das tabelas…

JL: Não… não é preciso ser tão óbvio, não era preciso “colorir”… Porque são poemas por si só bastante difíceis e quem está um pouco fora do universo das vanguardas até pode achar que há uma espécie de gratuitidade, mas não é. É precisamente isso: é a criação de uma nova plataforma de comunicação. Estamos ali a tratar da origem de qualquer coisa, da estaca zero.

TM: Talvez uma outra questão que visa um pouco esse assunto da montagem, aqui na exposição: quando visitei o Centro Internacional das Artes José de Guimarães, há uns anos atrás (ainda vivia no Brasil), dei de caras com as esculturas africanas nos cavaletes de vidro que, lá em São Paulo, conhecemos da Lina Bo Bardi. Vocês aproveitaram a ferramenta de display, os cavaletes de vidro, para uma montagem realmente muito emocionante lá em Guimarães. E queria entender, de um ponto de vista conceptual, mas também curatorial, o gesto de criar essas analogias entre as máscaras [2] e as caras das vítimas da Primeira Guerra que são apresentadas na parede oposta.[3]

Nuno Faria: […] Havia uma coisa que o João tinha dito (só para fazer também uma nota prévia, e depois tentar responder à pergunta): o João disse uma coisa muito interessante na nota prévia que fez à tua pergunta, que é a questão de que os artistas mapeiam o…

JL: O tempo…

NF: …o tempo, vá lá, a memória. E eu tinha escrito umas notas hoje no comboio para preparar esta conversa. Olhando retrospetivamente… acho que é muito interessante que as conversas se façam depois da montagem de uma exposição porque, quando estamos no período de preparação e de montagem, e de inauguração depois, não há ainda recuo para, enquanto espectador, darmos conta da substância e da coreografia dos gestos em que se consubstancia uma exposição. E então tomei algumas notas, já assim a posteriori, e uma delas era essa (não era exatamente essa, mas há uma ligação interessante): eu acho que este projeto não nos fala sobre o passado; é um projeto que nos fala do futuro. No melhor dos casos, do futuro imediato que pressentimos hoje. E vinha a pensar que talvez haja uma linha que é comum a muitos artistas, uma linha cronológica ou de tempo, que é mediada pelas carreiras, ou pelos percursos, ou pelo que for: talvez os artistas se interessem, numa fase mais precoce do trabalho, pelo espaço, e progressivamente, quando envelhecem, se comecem a interessar mais pelo tempo. Olhando para vários artistas, isso é uma tónica interessante. Não só o espaço entendido como coisa física, mas como elemento de representação também. E no caso do João isso é muito notório aqui. Esta é uma exposição claramente sobre o tempo, sobre uma certa angústia; um tempo, talvez, que tenha que ver com uma ideia de fim, uma certa ideia de fim, a ideia de que algo está a terminar e não vemos (como alguém dizia sobre as mudanças) nenhuma esperança nisso. Não vemos o que é que possa vir a seguir que não o fim, mesmo o fim. E esta exposição tem uma característica muito importante, eu acho, que é […] [ser] a explanação de um processo investigativo muito longo. Aliás, eu fiquei muito surpreendido quando o João me convidou e quando comecei a aperceber-me da extensão deste projeto ― o que estava para trás e o que vinha ainda para a frente (importa dizer que começámos a trabalhar com muito tempo de antecedência). Concomitantemente ao projeto apresentado nesta exposição, o João tem vindo a dedicar-se a outro, que é um projeto sobre a figura do veneno. O veneno enquanto metáfora de uma espécie de choque entre duas formas de viver, de conceber o mundo e de explorar o mundo. Uma forma, basicamente, que tem que ver com modos de vida que vão de acordo com os ciclos da natureza, não é? As comunidades indígenas na Amazónia, por exemplo, vemos o que é que lhes está a acontecer… O grande requinte do Bolsonaro foi dizer esta maldade (é uma coisa que é diabólica, é tão diabólica quanto estas imagens que estamos a ver, da guerra) que é: “há que dar a propriedade das terras aos índios”… e pronto, não vou falar mais sobre isso, mas é uma maldade terrível. Os índios recusam completamente a propriedade daquelas terras, a propriedade é-lhes uma noção estranha; e tudo o que isso engendra depois… É diabólico. E acrescenta: “os índios também têm direito ao progresso”. Esse projeto que o João está a fazer tem o veneno como metáfora muito poderosa, por um lado do mal, por outro lado do antídoto, e há algo que se cruza ali destas duas formas de vida ou de conceção do mundo.

Portanto, devo dizer que estas duas  investigações me surpreenderam muito. E acho que elas têm que ver com essa ideia, que não é sequer uma ideia de fim como os dadaístas ou os românticos alemães, de maneiras bem distintas, clamaram, ou cantaram, ou vociferaram, é mais uma ideia de algo que vai acabar mesmo — é inelutável que acabe.

E portanto, esta exposição, se pensarmos, e se nos distanciarmos um pouco de toda a iconografia que nos localiza num determinado tempo, é, ainda assim, turva, não é?

Há algo na mediação que a fotografia convoca que é turvo. Nós não estamos verdadeiramente lá, estamos numa membrana qualquer, que é mimética por um lado mas que, por outro lado, é também da ordem da encenação e da representação. E portanto, a fotografia é mesmo uma linguagem estranha desse ponto de vista, porque nos convoca mas ao mesmo tempo nos ilude.

Há sempre um mal-estar quando olhamos para estas imagens, e eu acho que o que o João está a fazer, como muitos outros artistas nos tempos que vivemos, é esconjurar um conjunto de males que sabemos que aí vêm e a dizer-nos que a história não nos ensina nada, de facto. Tu falaste na memória e na construção da memória, mas isso é uma falácia. Não há construção da memória, de facto, quando sabemos que ela nos ensina muito pouco ou, ensinando-nos, apesar de tudo não nos inibe de cometer os mesmos erros ou erros ainda maiores, mesmo que isso signifique uma perda, ou que conduza, mesmo, à nossa extinção enquanto indivíduos e enquanto espécie.

Mas para dizer que sim, que é um projeto, eu acho, sobre o tempo. E é interessante quando falaste que os artistas são recoletores de tempo ou construtores do tempo.

Para responder à pergunta, Tobi, eu acho que essa é uma das obras mais misteriosas da exposição. A aproximação entre os rostos disformes, que nos dão bem a medida da carnificina que foi este conflito, e as máscaras Pende remete-nos para a história do rosto…

JL: E por outro lado chama-se O Nascimento do Moderno. É como se o moderno estivesse assente nessas cicatrizes, estivesse assente nessa rotura, não é?

NF: Sim. Mas o rosto é, de facto, o ponto máximo de reconhecimento de nós próprios no outro e, ao mesmo tempo, uma espécie de fronteira que, por isso mesmo, por esse reconhecimento, não poderia ser, digamos, ultrapassada: “não fazemos mal ao nosso semelhante”, “não nos auto-mutilamos”, nesse aspeto. O Levinas falou muito sobre isso quando se deu o trauma da II Guerra Mundial, não é?

Mas esta é uma das obras mais misteriosas e é também um dos pontos de contacto de vários que o João mapeou e desenhou. Mas importa aqui introduzir um pequeno parêntesis: o João, como muitos artistas, não faz um trabalho de investigação académica, no sentido estrito ou disciplinar do termo; faz, antes, um trabalho de investigação intuitivo, livre do ónus da prova ou da demonstração, baseado no estudo de imagens e de textos que lhes são vizinhos, que vai para lá do trabalho de detetive que o investigador fará à procura de um documento. As imagens enquanto documento são coisas diferentes do texto enquanto documento). E, para retomar e concluir , a representação do rosto mutilado e a aproximação à máscara, quer dizer, ao rosto enquanto máscara, é um dos topoi que simbolizam a loucura, a insanidade que é a Primeira Guerra. Bom, isso tem antecedentes, mas esta procura da máscara e, nomeadamente (não só, mas também) da máscara africana, como uma espécie de interface que, no fundo, convoca a questão da alteridade como único ponto de contacto entre as duas realidades, não é? O outro; a convocação do outro, mas de nós mesmos também.

TM: Agora, as máscaras, elas para mim, num primeiro encontro, ficaram bastante distantes das caras mutiladas da Primeira Guerra Mundial. Porém, elas também dialogam com uma outra materialização de uma observação do João, que é essa cena da escultura do Cristo [4] com essa casa-escultura [5] ao seu lado. Pergunto-me: são epifanias artísticas ou até curatoriais da sua parte, ou até um gesto colaborativo?

JL: Para te responder, pegava um bocadinho atrás, naquilo que o Nuno estava a dizer em relação à história e aos processos de trabalho dos artistas e, neste caso, o meu processo de trabalho. Do meu ponto de vista, a questão da historicidade tem de ser posta de parte. No universo da arte, a mim não me interessa a sequência cronológica dos acontecimentos. A mim interessa-me muito mais a história dos que perderam, dos vencidos, interessa-me muito mais os labirintos da história, as areias movediças, aquilo que não se percebe muito bem. Quer dizer, a história tem de ser lida não como compêndio. Daí as investigações serem muito interessantes, porque podem levar-te a caminhos estranhos, inesperados. Só para te dar um pequeno exemplo das investigações relacionadas com este tema, eu acabei por descobrir que havia um general que fazia parte do grupo restrito que estava junto do Kaiser ― portanto, pertencia ao Estado Maior ―, que era o Erich Ludendorff. Isto é uma coisa que não se conta nos compêndios da história: é ele que introduz Lenine dentro da Rússia e fá-lo porque tinha todo o interesse em dinamitar o país por dentro. Sabia da existência de Lenine, que vivia, por coincidência (lá está mais uma coincidência da história) em frente do Cabaret Voltaire. Há uma fotografia que se pensa ser Lenine, mas sabia-se que ele vivia em frente do Cabaret Voltaire (ele disfarçava-se, usava perucas, porque era perseguido e já era careca na altura). Mas este general convence o Kaiser a introduzir Lenine dentro de Moscovo e ele é protegido, portanto, pelos alemães. É introduzido num grau de anonimato dentro da cidade e nós sabemos que, em 1917, a Revolução Russa acaba por acontecer. Portanto, se estamos a falar de Lenine a passar em frente do Cabaret Voltaire em 1916, estamos a falar de uma questão de um ano! Claro que o Cabaret Voltaire já estava muito tumultuoso, quer dizer, o fim em Zurique parecia inevitável, mas não deixa de ser curioso que (não é a história que conhecemos que nos conta) um general alemão introduza um bolchevique dentro da Rússia. Se calhar, pegando no Walter Benjamin e nas Passagens [6], em que se conta a história a partir de pequenos detalhes, não é? Pequenas coisas: o postal; o canário que estava na loja do “Sr. não sei quantos”… A história contada pelos pequenos fenómenos, não nesta sequência cronológica que a historicidade nos quer sempre propor. Isto é muito curioso, estes pequenos detalhes que a história nos traz. E por isso mesmo, os artistas no fundo fazem isso, quer dizer, eles escavam o futuro.

Esta é uma coisa difícil de provar (se não entrarmos em universos de misticismo), mas é possível perceber que há uma coisa que é comum aos artistas que é uma espécie de olfato sobre as coisas do futuro, sobre o que poderá acontecer, essa espécie de premonição (sem querer ser místico), esse olfato apurado que os artistas têm e que lhes permite ler juntando determinados elementos. Passa muito por esta subjetividade da abordagem ― porque não é uma coisa científica, e ainda bem que não é! Passa por essa abordagem, essa leitura de fenómenos que estão iminentes. É aquela coisa de que se fala muito do zeitgeist, não é? Aquele sentido do tempo de que eles têm a perceção. Há uma perceção sobre esse sentido do tempo que os artistas têm, pelo menos aqueles que me interessam.

TM: Sim. E essa escrita francesa ou alemã também se materializa em muitas das obras que vemos aqui na parede ou nas vitrines. Essas figuras que você descobriu, o Hans Richter, Franz Marc, Gropius (bom, na obra de Otto Dix talvez seja mais evidente esse trauma da guerra). O que é que você descobriu sobre a atuação desses artistas da vanguarda como “atores” dentro da guerra?

JL: Muitos foram soldados, outros não conseguiram, como por exemplo o Hugo Ball. É preciso perceber ― e para isso temos de ler o Karl Kraus ― que o jornalismo na altura era considerado pelo Kraus como sendo a maior catástrofe, ou seja, o grande aliado da carnificina. Porque era o jornalismo que empolgava as pessoas para se alistarem, não eram propriamente os quartéis. Os quartéis estavam só à espera de que eles lá chegassem. Portanto, havia uma espécie de um empolgamento da nacionalidade, o nacionalismo estava efervescente, e o jornalismo fazia muito bem essa função ― é ele que leva os, diria, incautos para a carnificina. E Hugo Ball, curiosamente, que acaba por ser o fundador do Cabaret Voltaire, tentou alistar-se várias vezes, mas era débil fisicamente. Mas ele tentou ser soldado! Portanto, se até Hugo Ball se tentou alistar, ele que foi o mentor de um movimento de vanguarda altamente adverso a toda a guerra e a toda aquela situação, nós imaginamos que era muito fácil cair nessa armadilha, nesse empolgamento nacionalista que os jornais estavam a produzir. Todos eles de alguma forma iam a cantar e a sorrir para a guerra, basicamente era isto que se passava. Poucos tinham a noção do que lhes iria acontecer. Uns morrem, outros vieram traumatizados. O Apollinaire há de morrer de uma ferida de guerra (não na guerra, mas de uma ferida provocada por um estilhaço num combate). Há mutilados, há uma série de artistas que passaram por isso, e há uns que testemunharam a guerra e que acabam depois por falar sobre isso… há vários. O Erich Maria Remarque tem um livro absolutamente fundamental para se ouvir uma história, e aliás há um filme mudo de Lewis Milestone, de 1930, A Oeste Nada de Novo ― é um filme absolutamente brilhante. Ou Ernst Jünger que escreve talvez o livro mais rico e vivo sobre a Primeira guerra mundial, Tempestades de Aço [1920]. E portanto, são artistas que participaram dessa carnificina, muitos vêm com cicatrizes psicológicas, físicas, e alguns depois incorporam os movimentos de vanguarda, mais tarde, mais à frente: Dada em 1916, a Bauhaus depois (o Gropius foi soldado na Primeira Guerra Mundial, por exemplo). Há uma série de ex-combatentes que acabam depois por formar academias, escrever textos, produzir obra, há um leque imenso de material disponível e percebe-se isso: vão a cantar e a sorrir mas vêm depois completamente estropiados.

TM: Sim, esse processo de seleção dos materiais também me interessa. Nós temos as vitrines, aqui, e você foi pesquisar estes materiais a várias fontes, eu imagino. E depois apresentamos na exposição esse rendering, essa materialização do Cristo que nós trouxemos do Caramulo, um Cristo do séc. XIV. Você observou esses momentos escultóricos ou de tragédia nas fotografias e depois isso levou ao que você queria ver dentro da exposição, como uma coluna que segura todo o discurso que vem à volta?

JL: Há uma combinação de elementos. Há uma história muito importante do contingente português em La Lys, onde esteve o maior contingente português na Primeira Guerra Mundial. Numa das batalhas onde eles estiveram envolvidos, havia uma igreja que foi bombardeada e destruída, e os portugueses recuperaram um Cristo que estava totalmente mutilado. Recuperaram-no e protegeram-no. Há uma imagem bastante estranha, porque parece um mártir cravado no solo, sem um braço, uma espécie de um mártir que está ali mas, de alguma forma, também protegido pelo contingente português. São imagens muito fortes. Depois de todos estes episódios, o Estado francês acaba por reconhecer, nos anos 50, os feitos do contingente português e esse heroico ato na proteção do Cristo, e é oferecido ao Estado português. Hoje em dia, esse Cristo está no Mosteiro da Batalha em homenagem ao Soldado Desconhecido. É o Cristo de La Lys que lá está, mutilado — é uma peça absolutamente incrível. E aqui na exposição, é feita esta relação, que é altamente contrastante: no piso de baixo temos um Cristo e ao lado temos uma latrina, algo que parece quase uma heresia. Mas para aquela gente, que estava abandonada à sua sorte, qualquer sítio servia para sítio de culto. Eu acho que era importante relacionar estes elementos e, portanto, não funciona na exposição como uma espécie de heresia, não é o caso, mas sim como expressão de que a crença ainda não desapareceu, a fé ainda não desapareceu, que era o último reduto de gente que estava abandonada à sua sorte.

TM: Você pratica, é um católico praticante?

JL: Não, não… Não sou.

TM: Mas você passou por uma educação religiosa pesada?

JL: Também não. A minha mãe era bióloga, portanto não acreditava sequer em Deus… [risos] Não era possível, porque ela acredita mas é em Darwin. [risos] Agora, que ― se nos afastarmos das religiões ― há uma componente de religiosidade que todos nós contemos, eu acredito que sim. Coisas inexplicáveis… pelo menos pela ciência.

Interveniente 1: Espiritualidade…

JL: Espiritualidade. Não conotada com nada em específico.

TM: Alguns comentários, perguntas?

[…]

NF: Falavas há pouco, Tobi, sobre a forma de como se opera a passagem da investigação, do arquivo e da recolha, para este aparato de novas imagens que partem de outras e que aqui estão, não é? Há algo que nesta exposição me suscita o maior interesse que é não se parecer com uma exposição do João, não se parecer, pelo menos à primeira vista, com nada do que ele tenha feito anteriormente, não se conformar, vá, àquilo a que se poderia chamar a “marca autoral” do artista. Houve várias reações de pessoas que viram a exposição que confirmam essa surpresa do não-reconhecimento. E isso diz muito, quer da exposição, quer das expectativas que o meio artístico cria sobre os artistas, como que os aprisionando a uma imagem, que não é bem uma identidade, mas uma imagem exterior. No que me diz respeito essa é uma qualidade e uma característica que eu prezo muito no trabalho dos artistas. O trabalho artístico tem essa capacidade de superação formal, e esta exposição é muito interessante desse ponto de vista. Uma das histórias que mais marca é a que está exatamente nas vossas costas, que é esta série de desenhos a carvão [7], que são desenhos atmosféricos. Eu estou convicto de que se esta série fosse mostrada sem se saber quem é o artista ninguém adivinharia que tinha sido o João a fazê-la, e eu acho que isso tem muito mais que ver com os arcanos da investigação, do processo, do que propriamente, como talvez alguns profissionais da arte pensem, com a recolha de influências. Porque os arcanos da investigação, esses labirintos de que o João fala, conduzem-nos a estados de consciência, não só mental mas física também, que predispõem para os “desvios do fazer”. No fundo aquilo que o João faz — e lembro-me agora, por puro acaso objetivo, do Concerto para a Mão Esquerda, de Maurice Ravel, escrito para o pianista Paul Wittgenstein, que tinha perdido o braço direito durante a Primeira Guerra Mundial —, usando a mão esquerda, é operar  uma espécie de “descondicionamento” da marca autoral. Relativamente ao reconhecimento superficial ou facial da autoria há logo um conjunto de pessoas que aqui chega e diz “ah isto parece ser de não sei quem”… Se nós virmos exatamente as coisas que estão aqui a acontecer, se considerarmos a sistemática  desconstrução da imagem a que o artista procede, percebemos que não são céus parecidos com os do [Michael] Biberstein, por exemplo, que remetia para os céus dos Românticos, ou dos Idealistas alemães, mas são imagens conduzidas pela leitura, pelas ambiências convocadas pelo conjunto de relatos, relatos mais romanceados ou relatos mais vividos como testemunhos daquele lugar, etc. Portanto, esta é uma exposição de explosões, no sentido da imagem, mas também de explosão de uma identidade autoral, de uma marca autoral, e acho isso muito interessante, é muito surpreendente a exposição desse ponto de vista. Depois, os processos de montagem: nós trabalhámos muito a partir destas quatro salas, quer dizer, não se faz uma exposição alheada do espaço em que ela acontece. Nós temos a memória deste espaço. O Pavilhão Branco é um espaço muito marcante. Já aqui vimos dezenas e dezenas de exposições, portanto fazer uma exposição aqui é sempre fazer uma exposição com uma memória de várias coisas que aqui vimos. Lembrei-me em particular, enquanto estávamos a montar, de uma exposição belíssima que o Fernando Calhau aqui fez com o Rui Chafes [Um passo no escuro, 2002], em diálogo, que tinha muito que ver com esta conversa do negro com o negro. No caso desta exposição do João, a montagem das salas é muito particular, é quase como se tivéssemos quatro exposições diferentes, quatro densidades diferentes. Aqui [no piso superior] mais atmosférica, e em baixo mais térrea.

JL: Mas há uma coisa que eu gostava de acrescentar, e que é importante, e aí fica também o elogio, porque o trabalho de curadoria é precisamente isso: uma linha de comunicação entre as várias partes no espaço que se tem, porque não se pode inventar o espaço, o espaço é o que existe. Portanto aí o teu trabalho foi um trabalho de minúcia e de inteligência. Mas para dizer também que isto é uma parte de tudo aquilo que foi produzido durante estes anos em que comecei a trabalhar sobre este tema. Há muito mais obras, há obras grandes que não cabiam. Também a questão do espaço é importante, não densificar demasiado, deixar uma certa respiração. Isso é um trabalho curatorial importante, permitir essas leituras, essas ligações. Portanto há muito mais, há outro material que não foi mostrado e que provavelmente um dia será, quando tivermos um projeto mais alargado e pudermos pegar nisto tudo e mostrá-lo. Isto é uma parte do trabalho, digamos assim.

TM: E você vê esse corpo de obra, então, como uma nova etapa dentro da sua prática artística, ou um outro “braço”?

JL: Sim, eu tenho alguns temas que são importantes dentro do meu trabalho, e a maior parte deles são revisitáveis, desde que aconteçam coisas importantes para voltar a pegar neles e amplificá-los e melhorá-los. E este é um tema que também não terminou, ele vai voltar a ser revisitado, desde que aconteçam coisas e apareçam elementos que façam sentido e que possam ser incorporados dentro deste núcleo.

TM: Sim, é mais a questão que o Nuno colocou, da forma das obras, aquela sensação visceral que é menos ligada ao readymade, talvez.

JL: A minha produção não está relacionada com o readymade. Quer dizer, é evidente que o Duchamp é importante, qualquer artista tem de o referenciar de uma forma ou de outra. Eu tenho duas grandes linhas de trabalho que são importantes, e essas continuam a ser revisitadas. Uma, que são as Blind Images, que são cada vez mais importantes, e cada vez mais ouvimos artistas e pensadores a falar sobre a questão da imagem, sobre a questão do desaparecimento da imagem e sobre a questão da sedimentação e da produção constante e infinita de imagens. Todos os dias são milhões de imagens… já não conseguimos ler as imagens. Portanto, o trabalho das Blind Images é extremamente importante. Aliás, eu poderia fazer Blind Images para o resto da vida, se fosse outro tipo de artista. Eu sou é inquieto e prefiro ter várias linhas de trabalho. É uma forma de trabalhar. Eu não conseguiria ser um Rothko, por exemplo. Essa instabilidade faz parte do meu processo, apesar de estar sempre a falar das mesmas coisas, só que com expressões visuais diferentes. Mas os temas são mais ou menos os mesmos. Esta inquietude é que faz com que eu não me fixe. Era Alberto Carneiro que falava do ter “jeitinho”. Havia um aluno dele que, numa aula de escultura em que estavam a fazer uns exercícios, saía sempre a “mãozinha do anjinho”, e essa “mãozinha do anjinho” é o “jeitinho” que os artistas apanham, e sabem fazer aquilo muito bem feito, e levam aquilo até ao final da vida. E muitas vezes é preciso procurar um certo desconforto: passar para a outra mão, tentar fazer de olhos fechados, whatever, não interessa. É preciso criar desconforto para perdermos esse vício do “jeitinho”. E o “jeitinho” é uma questão técnica importante, mas… eu acho que ser-se inquieto faz parte do meu processo e é mais importante para mim.

NF: Bom, não sei se não haverá nenhuma pergunta? Demos já uma voltinha ou outra para vos preparar para as questões.

Interveniente 1: Podes realmente fazer ou não fazer Blind Images para o resto da vida, é indiferente, podes voltar a fazer. A Blind Image não é apenas uma consciência materializada do problema da imagem, mas a permanência da palavra é que parece que veio, está e perdurará, ou não?

JL: A palavra? As Blind Images não ficam completas se não tiverem a palavra. Aliás, a investigação sobre as Blind Images é muito simples de contar: eu percebi que, ao ter uma legenda ou um texto, e ao apagar uma imagem ― porque, no fundo, eu ao princípio apagava imagens de jornais ou de revistas ― percebi que tinha criado uma trouvaille, tinha descoberto qualquer coisa importante. O cérebro humano tem uma característica muito curiosa, aliás, várias, mas uma delas é ter horror ao vazio. Ele não gosta do vazio e preenche o vazio. O monochrome, quando está associado a uma legenda ― a tal questão da palavra ―, o espectador divaga sobre o que está ali. Aliás, às vezes até pergunta se a imagem está ou não está lá, mas o espectador divaga sobre aquilo que está a ler.

Interveniente 1: Há um sentido e um significado naquela palavra. Uma coisa é dizer “cadeia”, outra coisa é dizer “Auschwitz”. Ainda que essa imagem, esse monochrome que é imagem, também não sei se será vazio ― seja negro ou branco, ou seja pintado como aconteceu uma vez numa ou outra pintura [da série] em questão.

JL: Sim, estamos a falar de monochromes. Isso levava a uma conversa mais extensa mas que é basicamente uma coisa que me preocupa desde o princípio, que é a questão do espectador. Não há forma de romper o paradigma romântico se o espectador não participar. Nós ainda estamos dentro do paradigma romântico. Podem-se dar voltas, já aconteceu muita coisa, os movimentos conceptuais, minimais, mas ainda assim, nós emitimos o nosso juízo a partir do paradigma romântico, e é muito difícil de o romper. E a única forma, a meu ver, possível, de romper o paradigma romântico, é passar um grau de protagonismo ao espectador. Ou seja, a obra nunca está completa, a obra nunca está terminada, e quem vai terminar será o espectador. E isso é uma das grandes vantagens que eu tenho a partir das Blind Images. Não é aquela coisa de pôr auscultadores na cabeça, não: o espectador passa a ser uma parte ativa da construção da obra.

Interveniente 1: Não só porque é refletido mas porque lê.

JL: Porque lê. Ou seja, ele passa a estar, ele passa a participar, ele termina a obra. E é a única forma possível de romper o paradigma romântico ― pelo menos no que me parece, porque é dificílimo rompê-lo ―, só a partir desse pressuposto. Mas enfim, isto é mais…

TM: Acho que foge um pouco da exposição, porque penso que você teria de explicar ou mostrar umas imagens dessas Blind Images, que para mim não tem um significado imediato, tenho de admitir. Talvez tenha outras pessoas aqui que também não conhecem.

JL: Sim, tenho imensa pena de não ter aqui, mas faz parte do meu trabalho.

NF: Mas aqui tocamos num ponto muito interessante que é: com esta exposição, irremediavelmente com todas as imagens convocadas por esta exposição ― sejam imagens de arquivo, portanto tomadas de forma direta; sejam imagens que partem de outras, ou que partem de palavras, ou que têm imagem-legenda, imagem-palavra ― estamos muito próximos, sem ser do ponto de vista mimético, desta questão da não-imagem, ou da imagem que não se pode ver, da imagem que já não é possível ver, a partir da qual já não estamos a ver, ou que recusamos ver. E eu acho que, assim, há uma mesma linhagem.

JL: É o que eu dizia há pouco. Apesar de o trabalho ter aparências diferentes, os temas não se alteram muito, quer dizer, as aparências alteram-se, realmente.

NF: Sim, são as questões com que estás a trabalhar ― o que é que se vê, o que é que não se vê, o que é que se pode ver, o que é que não se pode ver. Tem que ver com o limite da imagem.

JL: Não sei se te contei… Tu conheces o Paulo Herkenhoff com quem vou fazer um projeto para o ano, e com quem já fiz vários projetos e de quem eu gosto muito, sobretudo porque tem um pensamento muito refinado, muito agudo, muito especial. Um dia estava no meu atelier, e estava a olhar para uma Blind Image, e eu estava-lhe a explicar a questão de a pessoa fazer parte da obra, porque a pessoa, como está refletida, aparece o reflexo na obra. E ele dizia: “Não, João. Esta obra engole tudo”. Portanto, ele olhava de outra forma. Ele dizia que a obra é uma espécie de um vórtice que engolia tudo onde estava, seja a sala, o sítio, as pessoas. Engolia tudo. É outra forma de olhar para a questão das Bling Images que me despertou uma nova abordagem. Aquelas obras podem ser uma espécie de buraco-negro, uma coisa que suga todas as imagens. É outra maneira de olhar para as Blind Images. Mas enfim, são pequenos detalhes e outras curiosidades…

NF: De um fazedor de imagens. Curiosidades de um fazedor de imagens… [risos]

JL: Curiosamente, eu coleciono imagens. Primeiro coleciono-as e depois apago-as.

TM: Para fechar, talvez fosse interessante você compartilhar connosco o estado atual da pesquisa em que você está trabalhando agora. Se esta pesquisa tem continuação ou se você embarcou em novos “mergulhos”.

JL: Este trabalho continua. Agora, eu gostava muito de estudar profundamente o final da Revolução Francesa, é um assunto que me interessa muito. Interessa-me essa transição, porque nós falamos da história mas houve pessoas que estiveram lá, que viram o final da Revolução Francesa. Eu gostava de perceber essas pessoas, os anónimos que viram a Revolução Francesa. E é um tema que me interessa bastante e que eu gostaria muito de investigar. Não no sentido tão historicista de sequência de fenómenos e que dá uma linha histórica do assunto, mas de saber detalhes: o que é que comiam, o que falavam, como se relacionavam, etc., etc. Todos esses elementos vão-me dar informação para pensar melhor sobre esse fenómeno importante e que foi o princípio do mundo moderno.

TM: E a questão de Portugal, a questão portuguesa dentro da Primeira Guerra Mundial? Eu sinto que isso não está muito presente.

JL: Eu falei da Batalha de La Lys, aquele contingente português importantíssimo; esse Cristo que é uma história absolutamente fantástica e que faz parte de toda essa investigação e está incluída. Claro que não está aqui toda a investigação, não estão aqui todos os trabalhos e este fenómeno é bastante mais extenso. Só para dar um exemplo, um pormenor, que também é uma coisa que pode ser interessante trazer aqui para a conversa, muito rapidamente: a rainha Vitória [do Reino Unido] tinha vários netos, e quer o Guilherme II, o Kaiser; quer o Nicolau II, o Czar da Rússia; quer o Jorge V [rei do Reino Unido] eram todos primos. Eu até trouxe uma fotografia do Jorge V e do Nicolau II, que são sósias, praticamente. Portanto isto eram três primos a brincar às guerras, em que claro que o Kaiser, com aquela vontade de ir ajudar o seu amigo arquiduque Franz Ferdinand (austro-húngaro) que tinha acabado de ser assassinado em Sarajevo (que mais tarde voltou a ser palco de fenómenos sangrentos), desencadeou esta guerra que, como tu dizias, Nuno, não havia nenhum motivo aparente e forte para que tivesse acontecido. Parece uma coisa quase de família. Aliás, a rainha Vitória está ali na vitrine da documentação exposta. E tinha perdido esta fotografia que trouxe hoje para vos mostrar (dos primos Jorge V e Nicolau II) ― está lá o Kaiser, o Guilherme II, o Jorge V e o Nicolau II e não estava esta fotografia de eles os dois juntos.

TM: E esses materiais você compra em alfarrabistas, ou são reproduções?

JL: Os arquivos a partir de cem anos passam a ser gratuitos e portanto é mais fácil ter acesso e não ter problemas com copyrights. E aparece muita coisa.

NF: Sim, mas há um álbum, por exemplo ―  quem não viu eu chamo a atenção para ele ―, de um soldado, de um oficial alemão. É um álbum que o João comprou num leilão e que é absolutamente incrível. Que é um relato…

JL: Sim, é bestial, em que aparece desde os bombardeamentos até ao dar o milho às galinhas. Lá está, é dos tais relatos que não têm uma sequência cronológica, algo que não me interessa, mas têm a parte mundana, da vida. Até tem o cão Teckel que lá está retratado… ― é impressionante ver um cão numa fotografia em que já passou tanto tempo. Essas pequenas histórias.

Interveniente 2: É um mapa, também, não é?

JL: Há um mapa também, de época. Aliás, ele está marcado com a frente ocidental. Sim, são coisas que fui juntando ao longo do tempo.

 

[1] Nota editorial – «13-15. Tabela Periódica #01-#[0]3 | Tela e vinil, 114 x 146 cm», cf. Folha de Sala. Ni le Soleil ni la Mort.

[2] N.e. – «Máscaras, Pende, Congo | 2. Madeira e pigmentos, 30 x 17 x 14 cm | 3. Madeira e caulino, 25 x 15 x 9 cm | 4. Madeira, caulino, corda, tecido, serapilheira e fibras, 38 x 20 x 15 cm | 5. Madeira, caulino e corda, 27 x 19 x 9 cm | Col. José de Guimarães», cf. Folha de Sala. Ni le Soleil ni la Mort.

[3]  N.e. – «27. O Nascimento do Moderno #1, 2019 | Acrílico sobre papel e fotografia impressa em papel vegetal, 49,5 x 64,5 cm»; «28. O Nascimento do Moderno #2, 2019 | Acrílico sobre papel e fotografia impressa em papel vegetal, 52,5 x 67 cm», cf. Folha de Sala. Ni le Soleil ni la Mort.

[4] N.e. – «6. Cristo na Cruz, Sec. XIV | Península ibérica, madeira policromada, 244 x 149 x 33 cm | Col. Museu do Caramulo», cf. Folha de Sala. Ni le Soleil ni la Mort.

[5] N.e. – «7. Casa de Deus, 2019 | Madeira e metal, 210 x 100 x 100 cm», cf. Folha de Sala. Ni le Soleil ni la Mort.

[6] N.e. – Referência a um conjunto de escritos de Walter Benjamin publicados em Portugal pela Assírio e Alvim com o título As Passagens de Paris (tradução de João Barrento).

[7] N.e. – «22-32. Ni le soleil ni la mort #1- #10, 2016, grafite sobre papel, 41 x 36,5 cm», cf. Folha de Sala. Ni le Soleil ni la Mort.

Exposição

Data
Título
Artistas
Curadoria
Galeria
15.05.2019
– 01.09.2019
Ni le soleil ni la mort
João Louro
Nuno Faria
Pavilhão Branco