ser-devir-expandir: notas sobre Expanding Concert 2022

Dasha Birukova

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Alguns dias antes de Expanding Concert ter tido lugar na Galeria Quadrum (Galerias Municipais), em 2022, Mattin ofereceu-me o seu novo livro, Social Dissonance, com a dedicatória: «A mais estranha, a maior. Na alienação nos encontramos».
Uma enorme coincidência, pois tenho andado a pensar bastante sobre a estranheza, como o nosso tempo atual se acha marcado pelo estranho. A estranheza lovecraftiana relativa ao fosso que existe entre os objetos e o poder que a linguagem tem para os descrever. A indescritibilidade como razão pela qual a vida é estranha. Ou a estranheza enquanto rutura de coerência e espaço de estados transicionais. Uma espécie de estranheza que examina uma desestabilização ou fascínio pelo que está fora. Até Harman escreveu que a filosofia tem de ser estranha porque a realidade é estranha. Parece-me sintomático que o material artístico de Mattin seja principalmente ruído, como que uma «estranheza», «que perturba a ordem das coisas, fazendo-nos perceber que o que tomamos como estável, o que tomamos como garantido, contém elementos que, na verdade, não conseguimos decifrar»[2].
Contudo, quando pensamos nas vanguardas no domínio das artes, vemos que estas sempre tiveram que ver com ser diferente, contra as convenções, ser estranho. Por exemplo, mais do que celebrarem o industrialismo ou criticarem a guerra, o futurismo e o dadaísmo substituíam princípios familiares por outros não-familiares, por considerarem que o familiar havia falhado.
A técnica da não-familiaridade ou estranhamento na arte é uma representação da realidade de uma forma alienada. No entanto, sabemos que a realidade é composta por uma sociedade alienada, e que a arquitetura é feita de dissonâncias.
Haverá alguma maneira de se ser não-alienado?
Mattin diria «nem por isso». Metzinger diria «ser ninguém e em lado-nenhum».
Por que razão estamos sempre emaranhados nas dualidades: alguém – ninguém, lugar – lugar-nenhum, familiar – estranho, norma – desvio, autenticidade – alteridade, império – colónia?
Considero Expanding Concert e a prática artística de Mattin, em geral, como um palco onde se revelam estes elementos de estranheza na nossa vida.
Se Shklovsky nos ensinou que a desfamiliarização da arte transfigura a economia do esforço mental do espetador, Mattin propõe transfigurar a nossa perceção como aproximação da compreensão da realidade, usar o potencial alienante do ruído «para produzir experiências estranhas que nos fazem questionar nós mesmos enquanto sujeitos»[3].
Uma espécie de empatia farockiana[4] que produz uma alienação transgressiva.
Provavelmente porque há mais alegria na dissonância do que na consonância.
Considerando a arte contemporânea, vemos que esta procura sempre revelar as dissonâncias, uma mimese da «promessa de felicidade» não cumprida, e não da arte mas do capitalismo e das relações sociais que lhe são inerentes.
Desde 2019, Mattin cria, todos os anos, uma situação ou experiência de «socialização de dissonâncias sociais» na forma de um concerto no qual o público é uma parte tão importante do processo quanto os músicos. Esta é, provavelmente, a razão pela qual Expanding Concert produz estes momentos estranhos de transitoriedade – já não somos espectadores, nem somos os meros músicos. É como um ritual, mas sem uma dramaturgia coerente.
De cada vez que Expanding Concert é apresentado, é sempre diferente, a situação social e política influenciam sempre a forma artística. O primeiro concerto não teve músicos, o público foi o criador da música, ou melhor, da organização dos sons; testemunhámos a organização de histórias orais de comunidades enquadradas pela gentrificação. Bárbara Silva, na sua resposta textual à primeira edição, concluía que precisamos de uma nova harmonia. Ainda precisamos.
O segundo concerto teve lugar logo após o primeiro confinamento, encontrando-se saturado de sentimentos constrangedores, por estarmos juntos a uma distância que ecoava nos estranhos padrões do ruído de Mattin e nos zumbidos graves do contrabaixo de Margarida Garcia preenchendo os espaços entre nós. O terceiro concerto, que aconteceu após o segundo confinamento, foi ainda mais constrangedor que o segundo, talvez porque a crise pandémica não tenha realmente mudado as estruturas sociais e políticas das nossas vidas, continuando a experienciar o racismo, as diferentes fobias, agora acrescidas da Covid. Esta sensação levou a que o público se mostrasse relutante em participar em qualquer organização sónica, embora fossemos compensados pelas texturas rítmicas funcionalistas do DJ Marfox. Um grande alívio: a segurança da música techno, anestesia para dissonâncias.
Para o quarto concerto, Mattin decidiu usar uma abordagem diferente em relação ao público. Talvez tenha ficado desapontado com a forma coletiva de criar a experiência, tendo, por isso, levado a cabo discussões individualizadas com os participantes, ou talvez estivesse a seguir a ideia de «atenção radical» que Pierre Bal-Blanc partilhou na sua resposta textual ao terceiro concerto.
Com efeito, o que é mais importante: um coletivo ou um indivíduo, ou como manter a harmonia numa sociedade feita de eus muito diferentes?
Metzinger «dir-nos-ia que o eu não existe e que “a individualidade fenomenal tem origem na falta de autoconhecimento atentivo e sub-simbólico, num tipo especial de escuridão”.»[5] A escuridão individual da transparência coletiva, em que transparência significa que não somos capazes de ver algo por ser transparente.
É como um tecido sensorial que nos liga neste concerto: não podemos vê-lo, mas temos uma perceção muito pessoal, uma empatia alienada dos procedimentos.

A pergunta com que Mattin me acolheu no concerto foi: «Irá haver uma Terceira Guerra Mundial?».
Godard responderia que a crise da guerra é um problema de representação.
Curiosamente, três dias após o concerto recebi uma newsletter de um jornal político independente russo. Dizia o jornal – embora seja legalmente proibido na Rússia chamar a guerra na Ucrânia de «guerra» – que a televisão estatal, Russia 1, anunciara que estávamos a experienciar a Terceira Guerra Mundial, na qual a Rússia se empenhava com a «desmilitarização de toda a Aliança do Atlântico Norte». Trata-se, efetivamente, de uma representação útil do governo que prepara a militarização total do país. Ouvi dizer que, após a conscrição militar na Rússia, o serviço de congelamento de materiais de reprodução humana se tornou no serviço mais popular naquele país. Esta nova guerra mundial teria certamente inspirado Lubitsch a realizar Ninotchka II. A guerra como ato de dessexualização social.

Na anterior resposta textual a Expanding Concert, Regina de Morais citava um cidadão palestiniano anónimo, que afirmava: «Ter uma identidade é um ato de resistência».
A meu ver, ter uma identidade é um desejo de pertença.
Será possível pertencer a nada?
Falei recentemente com uma velha amiga de Moscovo, que se mudou para a Bélgica há 13 anos, estando eu em Lisboa há 4 anos. Partilhávamos a mesma sensação de que nunca pensáramos acerca da nossa identidade russa enquanto vivíamos em Moscovo, mas que assim que nos havíamos mudado para o estrangeiro, experimentávamos esta carga nacional sobre os nossos ombros. Sinceramente, tenho dificuldade em compreender o que significa ser-se russo, ou que tipo de imagem a Rússia pode criar numa mente estrangeira.
Acho que isto revela um nível diferente de Dostoievski no nosso sangue.
Mas esta guerra fez-me pensar muito sobre a minha nacionalidade, tornou o meu corpo num campo de batalha, onde um quarto de sangue ucraniano luta com os três quartos de sangue russo, e todo o corpo resiste a ter qualquer identidade nacional.
As ondas sonoras não têm origens, poderíamos ser como ondas sem origens, poderíamos ser socialmente aceites sem ter origens?
Preferiria que o meu corpo fosse um ponto que separa o passado e o futuro, em vez de ter fronteiras políticas com outros.
«Os outros – são o outro lugar do nosso aqui»[6]– recordando, mais uma vez, Godard.
Ou a «alteridade» é apenas outra forma de «autenticidade», outra forma de identidade no âmbito da estrutura social, na qual as convenções se acham enraizadas na dominação e na opressão.
Será possível conciliar eus e outros, o aqui e o outro lugar de uma forma não política?
Receio enlouquecer.
Tornemo-nos todos nemocêntricos.[7]

No website e-flux foi publicado, há um tempo, um artigo de Irina Zherebkina em resposta à erradicação da cultura russa, e especialmente da literatura russa, na Ucrânia (porque «merece um cancelamento total, uma vez que traz consigo apenas uma experiência negativa, de “campo de concentração”»[8] . A autora propõe que, para derrotar a opressão russa, a Ucrânia deve apoiar-se na literatura russa menor. A ideia de uma grande cultura é um projeto imperial que conduz ao desejo do fascismo e da guerra. Acrescenta a autora que a estratégia verdadeiramente decolonial passa por usar o princípio da igualdade radical que reúne os valores de «vidas heroicas selecionadas (em torno das quais a grande cultura e literatura são orientadas)» e os valores de «vidas não heroicas — temas da cultura e da literatura menores»[9]. A ideia de Zherebkina é que é mais fácil mobilizar leitores de «grandes» autores como Pushkin ou Tolstoy do que leitores de literatura russa «menor» como Platonov ou Kharms.
Terre Thaemlitz argumentaria que «devir menor» pode ser uma posição igualmente perigosa a «ser maioritário». Que a ideia de «devir» assenta na noção de chegada, de tornar-se outro, em que o «outro» constitui apenas uma construção diferente e igualmente «ligada a processos de homogeneização, agrupamento, identificação e classificação, que são, como tal, automaticamente interligados com o confinamento, a limitação, a territorialização e o «devir fascista»[10].
Terre Thaemlitz sugeriria que, em vez de usarmos a desterritorialização e o «devir menor» Guattariano-Deleuziano, devemos pôr em causa as nossas relações, não tentar chegar a um modelo concreto, seja de género, de raça ou de nacionalidade, ou quaisquer atos de naturalização. Thaemlitz diria que precisamos de «sobreterritorialização», o que significa «simultaneamente envolver-nos em identidades sociais contraditórias; abandonar o orgulho a favor de uma investigação aberta da vergonha e da hipocrisia; convidar a confusão para a nossa própria vida e a vida daqueles que nos rodeiam; e pensar as alianças sociais não só em termos de cooperação, mas também participar ativamente na não-cooperação como meio de socialização».[11]
Será a «não-cooperação» uma forma de socializar as nossas dissonâncias sociais?
Tal acarreta o risco de um verdadeiro estranhamento.
Ou talvez devêssemos todos «devir indígenas».
Descobri recentemente a existência de Inteligência Artificial indígena. Enquanto a IA ocidental se baseia na ideia de que os seres humanos e não-humanos são recursos exploráveis e que estabelecemos uma relação de mestre-escravo com a tecnologia, a IA indígena baseia-se nas epistemologias indígenas norte-americanas e oceânicas, que colocam em primeiro plano a relacionalidade.
No mundo indígena, tudo é animado e tem um espírito, todas as relações pessoais se referem a relações com tudo o que existe na criação. O conhecimento é a relação que estabelecemos com «todas as nossas relações». Estas relações são construídas em torno de um núcleo de respeito mútuo, o qual aceita a autodisciplina humana ao mesmo tempo que atua responsavelmente em relação a outras formas de vida.
Se a «epistemologia do controlo» ocidental está indelevelmente ligada à colonização, ao capitalismo e à escravatura, talvez devêssemos pensar no perspetivismo indígena e na relação respeitosa.

Vejo Expanding Concert como uma experiência muito perspetiva ou espectral.
Caracteriza-o uma relacionalidade, não só no âmago da organização de cinco concertos, que toma de empréstimo a estrutura de chamada-e-resposta da improvisação (o concerto é uma chamada e um texto é uma resposta, e assim por diante). Mas a sonoridade composta pelos quatro universos de quatro músicos (Vuduvum Vadavã em conjunto com Mattin, Margarida Garcia e DJ Marfox nesta edição de 2022) revela a possibilidade de coexistência sónica, que é, ao mesmo tempo, discreta e conectada. Além disso, a organização formal da experiência é moldada pela projeção entrecruzada de gravações de vídeos de concertos anteriores sobre o espaço real. Estes espectros imagísticos do passado rompem a ordem temporal do nosso presente, tornando-se o concerto num ritual de transmissão do presente para o passado, ou num ato de obliteração do tempo ao transformá-lo na nossa memória.

Li algures acerca da expressão shaviriana que refere a experiência musical em que «a música se foi tornando numa extensão da tua carne; ou melhor, a tua carne é agora uma extensão da música».[12]
Se pensarmos em Expanding Concert como um corpo e todos os participantes como órgãos, e sendo que as nossas dissonâncias sociais nos fazem resistir às organizações, então Expanding Concert será um «corpo sem órgãos»[13]. O concerto que resiste a ser um concerto torna-se na carne dos participantes e expande-se no texto intemporal. O que recordaremos do último concerto até ao momento do próximo? Ainda existirá a guerra, ou quantas guerras haverá no planeta? E o que acontecerá depois do último concerto? Continuará a expandir-se até ao fim?

Sejamos surrealistas e acreditemos no incrível futuro pacífico!

 

 

[1] Nota editorial: Referência ao romancista H. P. Lovecraft (1890–1937)
[2] Mattin. (2022). Social Dissonance. Urbanomic: Reino Unido, p. 153. [tradução]
[3] Ibid., p. 170. [trad.]
[4] Nota editorial: Referência ao cineasta Harun Farocki (1944–2014)
[5] Metzinger, Thomas. (2003). Being No One: The Self-Model Theory of Subjectivity, MIT Press, p. 632; citado em Hickman, S. C. (2010). «Thomas Ligotti: The Nemocentric Vision – the self as no-one and no-where». https://earth-wizard.livejournal.com/47133.html (acedido a 02-12-2022). [tradução]
[6] Jean-Luc Godard. Ici et ailleurs [Aqui e em Qualquer Lugar]. 1976, documentário
[7] Nota editorial: nemocêntrico (do latim nemo, que significa “nenhum” ou “ninguém”) é um termo associado ao trabalho do neurofilósofo Thomas Metzinger (1958) e à discussão de hipóteses como um estado de consciência sem o reconhecimento de um eu
[8] Zherebkina, Irina. (2022). «Does Ukraine Need Russian Culture to Win the War Against Russia?». https://www.e-flux.com/notes/477795/does-ukraine-need-russian-culture-to-win-the-war-against-russia (acedido a 08-11-2022) [tradução]
[9] Ibid. [trad.]
[10] Thaemlitz, Terre. (2009). «Becoming Minority». Guest Lecture #6. https://www.comatonse.com/writings/becoming-minor.html (acedido a 08-11-2022)[traduções]
[11] Ibid. [tradução]
[12] Shaviro, Steven. (1997). «Bilinda Butcher». in Kelly, C. (ed.). (2011). Sound (Documents of Contemporary Art). Whitechapel Gallery: Londres, p. 122. [tradução]
[13] Nota editorial: Expressão usada pelo poeta e dramaturgo Antonin Artaud (1896–1948) em Pour en finir avec le jugement de dieu [Para Acabar de Vez com o Juízo de Deus] (1947) e mais tarde operada extensivamente na filosofia Gilles Deleuze (1925–1995) e Félix Guattari (1930–1992)

Jornal

Data
Título
Autor
10.09.2021
Expanding Concert (Lisboa, 2019-2023)
Regina de Morais
28.06.2022
Open Source – acerca do terceiro Expanding Concert 2021
Pierre Bal-Blanc
06.10.2020
Sobre a primeira actuação de Expanding Concert 2019
Bárbara Silva