Entrevista em torno da exposição “O Colecionador de Belas Artes”
Na Galeria Quadrum, entre abril e junho de 2022, são apresentadas pela primeira vez ao público 27 pinturas de Sara & André pertencentes à série O Colecionador de Belas Artes (2021–22). Cada peça envolveu conversações com coleções de arte privadas e representa “o colecionador” no meio de algumas obras do seu acervo, sempre velado pela mesma silhueta negra — aquela que fora usada por António Areal em 1970–71, na série de pinturas da qual a dupla se apropria.
Vista de exposição; Sara & André, O Colecionador de Belas Artes; Galeria Quadrum; 2022. © Bruno Lopes
Daniel Peres: Ao entrar na galeria, as 27 pinturas aparecem-nos erguidas sobre si próprias, distribuídas ordeiramente ao longo da parte central do espaço e “de costas” para a entrada. Deparamo-nos primeiro com o verso da pintura #1, e nele, como nas restantes peças, estão duas etiquetas: uma identifica as obras de arte representadas; outra contém o título, a técnica e as dimensões da pintura, bem como a vossa assinatura conjunta. Se quiséssemos começar por ver todas as pinturas de frente, teríamos de ir até ao fundo da galeria, percorrendo depois a sala em sentido inverso, desde a peça #27 até à peça #1.
Encarar primeiro os versos das pinturas e respetivas etiquetas faz pensar que são vocês a sublinhar que os mecanismos de certificação e autenticação das obras de arte contam e que há que escrutiná-los com sentido crítico. Por outro lado, instaladas verticalmente e de costas para a entrada, as pinturas parecem apelar a uma espécie de efeito surpresa, e a um jogo de velar e desvelar articulável com a questão do anonimato, importante neste vosso trabalho.
Gostariam de comentar a montagem e as perceções que ela, por si só, já poderá suscitar?
Sara & André: Nós experimentámos três modelos diferentes antes de assumir esta versão e todos eles resultavam bastante bem. Num primeiro momento, correspondente ao primeiro dia de montagem, dividimos as pinturas em duas linhas, a linha da esquerda virada para a frente e a da direita para trás. Esta solução resultava bastante bem formalmente, mas não criava tantas relações entre as obras, além de que não convidava a divagar pelo espaço ou a aproximar-nos das pinturas, pois estavam todas numa posição semelhante.
No segundo dia experimentámos distribuir as pinturas pelo centro da sala na posição em que acabaram por ficar, mas viradas de frente para a entrada. Esta solução era extremamente estética, mas pouco eficaz já que não convidava o visitante a entrar e/ou ir até ao final da exposição. No terceiro dia mantivemos a mesma posição que já tinha sido bastante afinada no dia anterior, mas invertemos a orientação das pinturas, obrigando o visitante a percorrer o espaço até ao fim para conseguir ver todas as pinturas. Na altura tememos que pudesse parecer um gesto algo arrogante ou gratuito, mas rapidamente percebemos que esta versão poderia proporcionar uma perceção mais demorada e mais atenta da exposição, pelo que acabámos por optar por esta versão sem grandes receios.
Importa dizer que todas estas decisões foram sendo tomadas em diálogo com o Tobi (Maier, diretor das Galerias Municipais) e até mesmo com vários outros membros da equipa das Galerias que iam passando todos os dias e dando as suas opiniões. Desde que mostrámos as maquetes das pinturas, cerca de um ano antes, e referimos que pensávamos numa possível montagem em duas linhas, que o Tobi tinha falado no MASP (em São Paulo) como possível referência para esta montagem.[1] E curiosamente foi mesmo o que aconteceu.
No que diz respeito ao verso das obras, não foi de todo intencional, já que como explicámos esta seria a terceira opção de montagem, contudo admitimos ter um grande interesse e curiosidade pelo verso das obras em geral. Primeiro que tudo são raramente visíveis, apenas disponíveis para os seus proprietários e, em segundo lugar, contêm habitualmente — sobretudo no caso das obras mais antigas — uma (outra?) história da obra, podendo ter referências a lojas de belas artes, às galerias ou leiloeiras que transacionaram a obra, a elementos inseridos pelo próprio artista e por vezes até a coleções pelas quais tenha passado, pelo que talvez este nosso interesse tenha pesado de forma algo inconsciente nessa opção.
Finalmente e ainda sobre este assunto, a solução das etiquetas no verso das pinturas partiu de uma certa ideia de economia de meios, já que se incluíssemos as fichas técnicas de todas as obras que representámos (dentro das pinturas) na folha de sala — cerca de 160 se não estamos em erro — iríamos ter uma folha com muitas páginas e provavelmente essa é uma informação que a maior parte dos visitantes não necessita levar para casa.
Vista de exposição; Sara & André, O Colecionador de Belas Artes; Galeria Quadrum; 2022. © Bruno Lopes
DP: A montagem reforça relações com o espaço envidraçado da Quadrum, que, sem paredes interiores, se compatibiliza com o facto das peças se elevarem suportadas no chão. Mas além deste diálogo com a arquitetura, o pensamento pode dirigir-se para outras interações específicas com a Quadrum e a sua história, nomeadamente, pelo facto da série tratar tanto do colecionismo e do mercado da arte nacionais, instâncias que já foram muito presentes no passado desta galeria quando também tinha vocações comerciais. É um pouco como se essa memória a revisitasse, e talvez alguns dos colecionadores em causa tenham adquirido peças na Quadrum, e artistas aludidos nas pinturas tenham feito vendas no contexto de exposições nesta galeria.
Parece-vos relevante refletir sobre as possíveis relações da série com a Quadrum e a sua história? Aproveitando este tópico, interessa-vos revelar se a galeria integra o conjunto de espaços artísticos sobre os quais, segundo consta, estarão a preparar um novo trabalho?
S&A: Achamos que seria efetivamente relevante refletir sobre essas relações, todavia não estamos qualificados para o fazer, já que não chegámos a assistir ao funcionamento da galeria enquanto espaço comercial e também não tivemos ainda oportunidade de estudar a sua atividade, pelo que seria inconsequente emitir uma opinião baseada apenas em algumas histórias ou episódios que ouvimos contar.
Quando pensámos na Quadrum — o Tobi tinha deixado em aberto, alguns meses antes, a possibilidade de apresentarmos um projeto para uma das Galerias Municipais — pensámos primeiramente nas suas qualidades arquitetónicas ou formais, contudo, é verdade que pelo menos um dos colecionadores referiu ter feito algumas das suas primeiras compras na galeria, não sendo também de descurar ter sido o local onde a Maria da Graça Carmona e Costa iniciou a sua carreira e por onde passaram muitos outros agentes — artistas e não só, nacionais e internacionais, num período alargado de tempo.
Referindo ainda os aspetos físicos e arquitetónicos do espaço, será interessante revelar que quando tivemos a ideia de fazer este projeto, antes ainda de sabermos que o iríamos apresentar na Quadrum, imaginávamos as pinturas na parede, pelo que a decisão de as mostrar “de pé” adveio justamente da adaptação da série às características do espaço.
No que diz respeito a esse futuro trabalho, no qual nos debruçaremos sobre espaços expositivos, sim as Galerias Municipais — todas, se não estamos em erro — estarão contempladas na nossa investigação. Mas será uma abordagem muito diferente daquela que aqui apresentámos, além de que não tem ainda uma data ou local de exposição confirmados.
DP: A seleção das obras de arte representadas em cada pintura tem obviamente uma importância central — desde logo, por ser fruto de escolhas, e uma escolha pode marcar posições.
Do que percebi, terão pedido aos representantes de cada coleção um leque de obras colecionadas da sua preferência e depois foram negociando quais aquelas que figurariam ao certo em cada pintura.
Consideram que a seleção que foi acontecendo indica algo significativo sobre a distribuição de artistas, movimentos ou períodos no colecionismo nacional? O que nos poderão dizer quanto aos fatores eletivos dessas escolhas, quer da vossa parte, quer do lado das coleções?
S&A: O processo foi efetivamente esse, pedimos a cada colecionador que nos indicasse no mínimo 10 obras preferidas da sua coleção, das quais pelo menos uma fosse uma escultura e em seguida dávamos nota da nossa seleção de seis peças (havendo por vezes variações) antes de começarmos a pintar. A nossa seleção tinha a ver com questões de escala (regra geral as duas obras em baixo são maiores e as três em cima menores, sendo que — na série do Areal tal como a interpretamos — a escala da escultura não tinha que ser respeitada e nós mantivemos essa premissa), questões cromáticas e de harmonia do conjunto e finalmente, sempre que possível, a seleção de um leque maior de autores representados. Contudo o processo variou muito entre colecionadores, havendo alguns que escolheram ao pormenor as obras representadas e outros que nos confiaram totalmente ou quase essa tarefa.
Assim, consideramos que seria delicado fazer uma apreciação ou apresentar qualquer tipo de estatística efetiva a partir deste estudo já que, primeiro, não conseguimos a participação de “todos” os “grandes” colecionadores portugueses. Segundo, há uma distribuição etária um pouco desequilibrada, no sentido em que há uma maior representação de colecionadores mais velhos, refletindo, portanto, uma abordagem e mesmo um tempo de construção de cada coleção mais prolongado, por vezes já a entrar numa fase de menor atividade ou mesmo estagnação. A este respeito, tanto quanto entendemos, a maior parte dos colecionadores mais jovens são por natureza mais discretos, ou não tiveram ainda o tempo de se tornarem amplamente conhecidos no meio. Em terceiro e último lugar nós pedimos a cada colecionador que nos indicasse as obras das quais gostava mais e não aquelas que “valiam” mais (mesmo tendo em conta os vários tipos de valor que uma obra de arte pode assumir), e temos a sensação que este pedido foi bastante respeitado, pelo que estas escolhas revelam sempre mais afetividade do que outra coisa.
Ainda assim achámos que poderia ser interessante no contexto desta pergunta, fazer o exercício de contar o número de vezes que cada artista foi selecionado para cada uma das pinturas apresentadas na exposição. Dentro desta lógica a artista preferida dos colecionadores, representada em cinco pinturas, é Ana Jotta. Lourdes Castro e Julião Sarmento seguem-na de perto “aparecendo” em quatro pinturas. Em três pinturas figuram Almada Negreiros, Ângelo de Sousa, Eduardo Luiz, Joaquim Rodrigo, Nikias Skapinakis e Paula Rego. Finalmente repetidos em duas pinturas, Adriana Proganó, Amadeo de Sousa Cardoso, Ana Vidigal, António Palolo, Cabrita, Carlos Correia, Costa Pinheiro, Daisy Parris, Dominguez Alvarez, Fernando Calhau, João Maria Gusmão + Pedro Paiva, João Pedro Vale (há ainda uma obra de João Pedro Vale + Nuno Alexandre Ferreira), Joaquim Bravo, Jorge Martins, Jorge Molder, Jorge Pinheiro, Jorge Vieira, José Pedro Croft, Júlio Pomar, Lawrence Weiner, Paulo Nozolino, Rui Chafes e Sonia Delaunay. Do que nos foi dado a “escolher” e acabou por não entrar em mais do que uma pintura seria importante referir pelo menos Álvaro Lapa, Helena Almeida, Nadir Afonso e Vieira da Silva. Finalmente um artista que não conseguimos enquadrar em nenhuma composição, por diferentes motivos, mas foi referido por mais do que um colecionador — Noé Sendas. E há ainda vários e várias artistas que surpreendentemente para nós não foram referidas, pensamos imediatamente em duas artistas mulheres, contudo achamos que seria indelicado deixar aqui os seus nomes.
Vista de exposição; Sara & André, O Colecionador de Belas Artes; Galeria Quadrum; 2022. © Bruno Lopes
DP: É interessante pensar que, eventualmente, algumas das obras selecionadas poderão vir a integrar outras coleções no futuro. Deste ponto de vista, este vosso trabalho relacionar-se-á com a memória do colecionismo também como registo de um tempo e estado de coisas específicos.
Que caminhos preveem que resultem dessa faceta do trabalho, nomeadamente nos campos da crítica e da história da arte, e como acham que o projeto os problematiza?
S&A: É curioso, mas não tínhamos pensado ainda nessa possibilidade de as obras representadas trocarem de dono, já que se trata de obras preferidas dos colecionadores e, tanto quanto pudemos entender, estas pessoas não se desfazem com regularidade das obras, apenas o contrário, no sentido em que são compradores regulares. Assim, tentando fazer o exercício de pensar a mais longo prazo e assumindo que a generalidade das obras representadas será realmente importante no contexto da arte, sobretudo portuguesa, mas não só, é algo mágico imaginar que contribuímos para a historiografia de cada obra, ao atribuir-lhe um proprietário e/ou uma localização. Contudo, temos absoluta noção que é apenas um momento que fica cristalizado, nada mais do que isso, pelo que não arriscaríamos discorrer sobre a possível relevância histórica — seja num futuro mais ou menos distante — que este projeto poderá assumir.
O que podemos declarar é que sentimos estar num momento em que o colecionador está a assumir uma grande importância em termos do contexto nacional — já que internacionalmente esta já era uma tendência com alguns anos, assim como havia acontecido com o curador alguns anos antes. O único mérito que nos conseguiríamos atribuir, em termos da ambição ou relevo histórico destes nossos projetos, é termos conseguido (ou pelo menos tentado) acompanhar esses movimentos da forma mais abrangente e complexa que nos foi possível, no contexto específico em que estamos inseridos.
Em termos críticos, destacaríamos apenas o facto de ser um projeto desenvolvido por artistas, algo que é relativamente inusitado para projetos desta envergadura com este tipo de temáticas, considerando, claro, os méritos e deméritos que tal abordagem ou perspetiva pode trazer.
DP: A vossa pintura #15 é 20 cm mais larga que as restantes. Numa visita orientada por vocês à exposição, foi referido que o incremento de tamanho é algo que também se verifica numa das pinturas da série de Areal (justamente a 15.ª e última peça, segundo informaram). Revelaram ainda que, no caso da vossa série, este aumento na largura acabou por aliar-se ao facto de o colecionador em causa ter escolhido um maior número de obras que fez questão que integrassem a composição.
Poderiam comentar esta e outras vicissitudes do processo de trabalho e como elas se foram articulando com a vossa apropriação e interpretação da série de Areal?
S&A: Claro, começamos por referir dois ou três fatores previamente. Quando pegamos em obras de outros autores, como o caso da série original do Areal, podemos ter uma abordagem mais ou menos rígida no que toca ao respeito (formal, técnico, conceptual, etc.,) pelo original. Neste caso concreto a nossa abordagem foi bastante livre. Por exemplo se tivéssemos realizado apenas quinze pinturas teríamos deixado 12 colecionadores de fora, mas considerámos que esses doze, na verdade este número poderá ainda vir a crescer aquando da edição do livro, seriam fundamentais para revelar a complexidade e as diferentes formas que pode haver de constituir uma coleção. Um outro aspeto importante neste tipo de projetos é que quando convidamos pessoas para trabalhar connosco — isto é válido para muitas das nossas obras e/ou séries de obras — temos de saber ouvi-las e respeitá-las, caso contrário estaríamos apenas a tentar fazer valer um ponto de vista prévio, quando o que queremos é justamente poder aprender e descobrir com essas pessoas o próprio resultado de cada investigação.
Assim, revelando um pouco do processo de trabalho com cada colecionador, concordamos que esse caso é efetivamente interessante referir, trata-se de Pedro Álvares Ribeiro, do Porto, cuja coleção é conhecida por Coleção Peter Meeker, que nos referiu ser impossível escolher apenas seis obras para representar a sua coleção. Pôs-nos as coisas de forma muito clara, dizendo-nos que teriam que ser imperativamente doze as obras representadas, que sabia que seria difícil, mas que certamente iríamos conseguir pois era a única opção possível. Como já tentámos explicar, gostamos deste tipo de desafios e/ou contingências, pelo que depois de alguma reflexão, lembrámo-nos que a 15.ª pintura da série original era 20 cm mais larga e resolvemos adaptar este formato a esta coleção, sendo que assim conseguimos encaixar as doze obras de forma bastante aceitável (aos nossos olhos) em tão pouco espaço.
Há um outro caso, relativo à coleção Manuel de Brito, que é hoje em dia mantida por Arlete Alves da Silva e por Rui Brito, que têm participações fortes e distintas na coleção e como tal nos pediam que pintássemos um quadro com a seleção de cada um a partir da mesma coleção — nestes casos trata-se respetivamente dos quadros #16 e #22. Estas são as duas situações mais particulares, mas sem dúvida que haveria pelo menos outros dois ou três episódios interessantes a referir, não fosse temermos alongar-nos demasiado nas nossas respostas.
Sara & André; O Colecionador #15; 2022. © Bruno Lopes
DP: Tratando da questão do anonimato, ela aparece com algum élan no contexto deste projeto (principalmente durante a exposição), mas depois parece relativizar-se bastante — nomeadamente através do livro em preparação, que revelará quem está “por detrás das silhuetas negras” através de entrevistas. Apesar disso, a ideia de incógnito não deixa de ser um atributo poético, funcionando não apenas como uma espécie de potenciador de mistério, mas talvez até como uma variável mais “sociológica”, na medida em que o uso ou não uso do anonimato — com a miríade de motivos pelas quais se opta por ele ou não — é um traço característico do colecionismo.
O que diriam acerca da questão do anonimato neste projeto e de como a foram gerindo, antecipando e contextualizando durante a conceção da série e desta sua primeira apresentação pública?
S&A: Há dois aspetos importantes a referir. Primeiramente fomo-nos apercebendo que vários dos colecionadores, daqueles que não são “mediáticos”, não se sentiam muito confortáveis em revelar os seus nomes no contexto desta exposição e como tal concordámos que essa reserva ou discrição deveria ser a bitola da exposição. A isto acresceu o facto de considerarmos que seria mais interessante provocar a discussão entre visitantes, amigos e colegas, do que oferecer essa informação. Digamos que sentimos que o visitante deve participar de alguma forma na exposição. Como é sabido desde há muito, é o visitante que completa ou termina a obra e como tal esta foi a participação (ou uma das participações) que lhe reservámos para esta ocasião. Em paralelo percebemos que, no que dizia respeito ao livro, que estamos agora a começar a preparar, muitos desses colecionadores mais reservados já não teriam tanta relutância em assumir as suas identidades e foi por isso que resolvemos proceder desta forma, revelar apenas no livro o “quem é quem”. Contudo nas visitas guiadas à exposição essa informação foi disponibilizada, e na inauguração vários dos colecionadores estiveram junto dos seus quadros durante bastante tempo, alguns fotografaram-se com eles, etc.
Relativamente às razões pelas quais alguns colecionadores preferem manter-se anónimos, percebemos por exemplo que alguns não querem ser aliciados a vender as obras que possuem, alguns colecionam por razões verdadeiramente pessoais e não lhes faz sentido partilhar isso com pessoas de fora do seu círculo de relações, alguns preferiam não ter esse rótulo de colecionador e haverá certamente outras razões que desconhecemos ou nos estão a escapar neste momento.
Vista de exposição; Sara & André, O Colecionador de Belas Artes; Galeria Quadrum; 2022. © Bruno Lopes
DP: Quanto ao modo como este vosso trabalho poderá, ele próprio, ser colecionado — e brincando um pouco —, talvez fosse um desfecho curioso a série não se manter junta e as pinturas dispersarem-se por diferentes colecionadores. Metaforicamente, levaria a uma espécie de infiltração virtual de acervos uns nos outros, ou quiçá à materialização imaginária de desejos de aquisição incumpridos, quem sabe? Por outro lado, talvez haja quem queira adquirir apenas a pintura que se lhe refere… Enfim, várias dinâmicas se adivinham possíveis. O eventual desmembramento do conjunto até pode acontecer mais fortuitamente com o tempo (no caso da série de Areal, por exemplo, as pinturas estão dispersas).
Querem adiantar se vão pugnar por manter a série una ou optar pela sua desintegração? E, no vosso entender, que aspetos importantes resultariam, quer do lado da coesão, quer do lado da fragmentação?
S&A: É curiosa esta pergunta porque foi-nos feita por bastantes pessoas ao longo desta exposição e creio que tal nunca nos tinha acontecido anteriormente. Acresce que na nossa primeira exposição individual, em contexto galerístico, chamada Sara & André e realizada na galeria 3+1 em Lisboa em 2008 — uma exposição na qual todas as obras apresentadas eram realizadas pelos outros artistas representados por essa galeria, tendo como tema ou assunto, a nossa persona e prática artística — propusemos justamente aos envolvidos, e em particular ao galerista Jorge Viegas, vender apenas a exposição na sua totalidade. Contudo esta nossa intenção não foi minimamente levada a sério por ninguém e hoje em dia conseguimos compreender que seria muito complicado vender uma exposição inteira (a um único comprador) no mercado português, ainda mais em início de carreira. Não é que não tenha nunca acontecido, mas sabemos que acontece muito pontualmente, uma espécie de jackpot que pode calhar uma vez na vida — com sorte. Fazemos aqui um parêntesis para revelar que ao longo do nosso percurso desde que começámos em 2004, ouvimos contar três casos distintos ocorridos em Portugal. Todos eles nos foram contados de forma quase mitológica referindo-se a três exposições em museus ou instituições com algum peso e não galerias, que foram vendidas curiosamente a três colecionadores diferentes, todos eles — dizemo-lo agora com alguma vaidade — presentes nesta exposição. Assim, regressando agora à nossa obra e excetuando o caso de algumas séries completas (lembramo-nos em particular de duas: uma de 2010 composta por quatro obras e outra mais recente composta por treze) que apresentámos em exposições coletivas e que estão reservadas para serem vendidas em conjunto, nunca foi uma opção para nós pensar numa exposição individual como um produto comercial total, pois achamos que seria irrealista. E há vários casos, além dessa primeira exposição de 2008, em que sentimos que isso faria todo o sentido, como por exemplo o da exposição Exercício de Estilo, “dedicada a” Julião Sarmento, no MNAC em 2014, no qual fizemos uma falsa retrospetiva com cerca de trinta obras em gravura, serigrafia, pintura, escultura, fotografia, vídeo, etc., percorrendo quatro ou cinco décadas da carreira deste artista.
O que considerámos que poderia ser engraçado a dada altura foi que nesta exposição o “próprio” não pudesse comprar a “sua” pintura. Contudo desistimos dessa ideia pois achámos que poderia ser um pouco maldosa no caso de algum colecionador gostar mesmo da “sua” obra. É engraçado que um dos poucos (até à data) que adquiriu a pintura relativa à sua coleção, revelou-nos que a sua pintura preferida na exposição era a “de” outro colecionador, mas não conseguia não ficar com a “dele”.
Não vamos dizer que não nos importa qual o destino das obras, pois não seria verdade, mas regra geral nós tentamos não ser rígidos ou “controladores” com nada, pelo que a nossa única preocupação é apenas que o destino das peças seja alguém que as estime — poderemos ser nós próprios claro 🙂 — e que as empreste caso as queiramos tornar a mostrar um dia. Importa dizer antes de terminar que é possível que a série cresça um pouco, já que até à conclusão do livro iremos ainda tentar a participação de alguns colecionadores que consideramos relevantes e não conseguimos incluir antes. Há uma 28ª pintura já em processo e estimamos que poderão ainda vir a existir mais algumas ao longo dos próximos meses.
Terminamos com uma pequena anedota ou história pessoal. Quando já estávamos em pleno processo para esta exposição, no verão passado, durante uma das nossas visitas regulares a exposições, passámos na Galeria Nuno Centeno no Porto, onde vimos algumas pinturas soberbas do Ângelo de Sousa, cuja proveniência era o Ângelo de Sousa Estate. Perguntámos o preço por mera curiosidade, além, claro, de considerarmos as pinturas realmente boas, e o Nuno disse-nos, a esse propósito, que o Ângelo reservava sempre aquela que considerava a melhor pintura de cada série para si ou para a sua família. Passados alguns meses e atendendo a que esta nossa série foi maioritariamente pintada na nossa sala e o principal espectador nesse período de cerca de um ano foi o nosso filho, perguntámos qual seria a pintura que gostaria de guardar para si. E prontamente nos respondeu: não é preciso, já tenho muitas coisas no meu quarto. Durante a exposição, contudo, mudou de opinião e disse-nos que gostava de ficar com a que tem a bola de ténis — O Colecionador #4 — ou, se não fosse possível, com a que tem a bola de basket — O Colecionador #12.
Sara & André; O Colecionador #4 e O Colecionador #12; 2022. © Bruno Lopes