Entrevista com Kiluanji Kia Henda
[Galerias Municipais]
A maioria das obras que integram Something Happened on the Way to Heaven foram realizadas no âmbito de residências artísticas em Arles [França] e na Sardenha [Itália], a primeira promovida pela Fundação LUMA, a segunda pelo Museu MAN, em Nuoro, com o apoio da Sardegna Film Comission. A crise dos migrantes que arriscam a vida no Mar Mediterrâneo é uma problemática central em vários desses trabalhos. Alguns deles sublinham como essa calamidade humana se situa entre a atualidade e raízes históricas profundas, relembrando como o fenómeno da migração, muitas vezes forçada e violenta, tem marcado diásporas desde tempos remotos. Em peças como Balada Geométrica do Medo (2019), Migrants Who Don’t Give a Fuck (2019), Cerca de Melhilha – Módulo 4 (Hotel Flamingo) (2019) ou Mare Nostrum (2019) perpassa o desejo de que seja invertida a realidade negativa do Mediterrâneo e que este algum dia concretize os seus mitos de troca intercultural e de reciprocidade, com base na igualdade e na liberdade de quem o transita. Há em tudo isto um alerta para sintomas de injustiça, quase imemoriais, que teimam em permanecer irresolutos? Além de problematizá-los, que agência pode a arte contemporânea levar a cabo para que mudanças efetivas e urgentes aconteçam?
[Kiluanji Kia Henda]
Bem, primeiro, não acredito que haja uma mudança efetiva que venha desde o universo da arte. Através da arte podemos é manter um debate aberto, dar continuidade a um debate sobre um tema que muitas vezes é omitido, mesmo pela grande media, ou noutros espaços de discussão. A arte tem essa possibilidade de poder trabalhar sobre certos fenómenos, trabalhar sobre certas tragédias, como nesse caso da crise da emigração no Mar Mediterrâneo, mas, no fundo, trazendo questionamentos que não se baseiam só na crise atual, mas também que haja uma certa reflexão das distintas temporalidades: desde uma perspetiva histórica e até mesmo sobre um futuro possível. E isso para mim é o mais importante, poder continuar a levantar certas questões; poder continuar a abrir espaços para que se reflita sobre esses temas; mas sabemos que para soluções mais efetivas, como perante uma crise como essa, é preciso mais do que a poesia.
[GM]
Claro. Talvez quando a arte se mescla com o campo do ativismo, talvez aí o seu poder de agência se torne mais “efetivo”, mais “prático”, mas “solucionar” dependerá sempre de algo que extravasa…
[Kiluanji]
Eu não sinto para nada que seja um ativista. Tenho plena consciência de que o trabalho de ativismo é um compromisso bastante sério, e que depende de outros mecanismos que são distintos daqueles que movem o mundo da arte. O meu compromisso é com a poesia, com a metáfora. É tentar encontrar diversas leituras através da linguagem, de distintas linguagens artísticas. E há temas que para mim é importante serem abordados, criam como que um certo incómodo. E no fundo, muito do que expresso são preocupações, são descontentamentos que sinto a um nível mais pessoal e íntimo. Mas não consideraria como algo do ativismo, se bem que pode prover alguns elementos que sejam por vezes até úteis para a luta dos ativistas.
[GM]
Mas aí também há uma questão muito importante, que é: a poesia, o facto de não ter essa ação “efetiva” que estávamos a falar, não faz com que ela deixe de ter um papel transformador, a nível subjetivo acima de tudo. O seu papel efetivo efetiva-se na subjetividade, na mentalidade inclusivamente. E isso também acaba por ser uma ação, uma agência da arte contemporânea.
[Kiluanji]
Existe essa influência também, isso que acabaste de dizer, esse momento transformativo na sociedade. Mas por vezes eu… Muito daquilo que eu vivi, desde a minha história pessoal, desde o lugar de onde venho, as ações para mudar a trágica realidade tinham de ser concretas. Claro que há-de estar sempre a poesia como algo que pode inspirar, que pode criar um espaço de pensamento muito mais amplo do que são às vezes os discursos práticos. Mas para mim, serão necessárias atitudes mais concretas, relacionadas também com a vontade política. Contudo, tenho consciência de que damos vazão muitas vezes a um sentimento coletivo no trabalho que fazemos como artistas, que pode ser visto como uma forma de ativar mentalidades, de levar em frente certas causas, mas vai ser preciso um bocado mais do que tudo isso…
[GM]
À semelhança de outros trabalhos teus, muitas das obras agora expostas na Galeria Avenida da Índia parecem preocupar-se com algo que é velado, com as falsas aparências da realidade e da história. Penetram diretamente no visível para nele descortinar “miragens” e verdades escamoteadas. Nesta exposição, várias peças focam como a Sardenha, território de paisagens idílicas mas ao mesmo tempo altamente militarizado, encerra uma história de disputas e confrontos bélicos e jogos geoestratégicos. Essa duplicidade está muito saliente em fotografias como Vidro à Prova de Bala – Mapa-Múndi (Ilha de Caprera) (2019) e Mapa Lúdico de Ilha (2019). Podemos assumir que essa vontade de “desmascarar” o real é uma tónica quase constante no teu trabalho?
[Kiluanji]
Sim, porque é importante esse questionamento sobre a realidade que vivemos, e sobre aquilo que nos foi ensinado como o que é a verdade, quando depois nos deparamos com várias omissões, vários silêncios, o que torna difícil termos ideia de alguma dimensão do que é real. Para mim, essa preocupação começa muito na ligação à história do meu país [Angola], porque é um país que viveu quase trinta anos de guerra civil, e mais quatorze anos de guerra colonial, e além disso vem de outros processos também extremamente violentos, como a escravatura e a própria colonização e o trabalho forçado. Então, penso que todos esses processos de violência criam certos silenciamentos e omissões, que por vezes é necessário nós termos de repensar sobre esses factos. E claro, isso muitas vezes acontece porque, se falamos hoje sobre o que se vive em Angola, por exemplo, dá-se conta de como vários ciclos de violência continuam abertos, que não se fecharam, porque houve sempre essa ausência desse debate. Toda essa história que estava a contar tem que ver, muitas vezes, com a forma como se entendia o conflito angolano. Olhava-se para uma “guerra tribal” quando havia mais de dez países internacionais envolvidos, incluindo as duas grandes potências, União Soviética e Estados Unidos, e mesmo assim havia quem lhe chamasse “conflito tribal”. Então, para mim a arte também serve como uma forma de poder abordar, poder confrontar certas narrativas que eram dadas como legítimas, e isso claro que é quase como uma missão nas várias obras que vou fazendo, ter esse compromisso. Mas como digo, eu não sou um historiador. Tenho um grande fascínio pela história, mas eu não sou um historiador, e gosto da ideia de poder desfrutar da liberdade que me dão os campos da ficção, a liberdade da ficção para mim é vital. Mais do que tentar ter uma narrativa fiel sobre os acontecimentos, para mim é importante também que haja como que uma forma de confrontar as pessoas com uma nova realidade, às vezes utópica que seja, confrontar as pessoas com a utopia é por vezes o único antídoto que nos resta para tolerar a dura realidade que pretendemos mudar. E acho isso sempre importante, porque é como criar essa ponte entre passado e futuro, quase como rejeitando o presente. No caso desta exposição e dessas obras, a questão central era não fazer uma abordagem simplista e figurativa da tragédia em si, sobre essas vidas que todas as semanas se perdem pelo Mediterrâneo, mas sim poder ter um pensamento à volta do que é que a provoca, as distintas causas por detrás da tragédia. E às vezes não temos essa disponibilidade de pensar muito mais a fundo, porque somos submetidos a informações que simplesmente não têm esse alcance de repensar toda a geoestratégia política global e as suas consequências. A arte também surge como um espaço que nos possibilita dissecar o tempo em que vivemos, no sentido de poder fazer essas ligações. Fala-se do Mediterrâneo como uma crise de emergência mas, vamos a ver, já acontece há décadas. Como é que vais tratar essa situação como uma crise emergente, algo que já tem sucedido há mais do que duas, três décadas? Agora tem-se evidenciado mais, há cada vez mais pessoas a tentarem cruzar o Mar… Mas são essas questões que para mim são de extrema relevância: criar essa relação com a história, pensar nas próprias políticas, ou na cultura belicista, na cultura de guerra ocidental, e até onde isso tudo também influencia essa tragédia que se tem vivido no Mediterrâneo.
[GM]
Tu falaste de ficção e a próxima pergunta prende-se com o lugar dela no teu trabalho. Tu questionas essas narrativas que são muito eurocêntricas, ou que têm discursos com o crivo de uma longa tradição historiográfica ocidental […]. Vários dos teus projetos interrogam narrativas históricas e culturais dominantes, especialmente em questões como o preconceito racial, o colonialismo e as suas consequências, a guerra, o poder político, acabando por desvelar o lado ficcional da historiografia e dos seus discursos. Na tua prática artística, que papel tem a própria ficção para denunciar e ironizar as quimeras da história e o modo como elas impactam na atualidade?
[Kiluanji]
Temos de questionar como é que a própria ficção foi usada por meios de comunicação que supostamente têm um compromisso com a realidade e com os factos. Já há algum tempo dizia que se existe maior concorrente para os artistas, nos dias de hoje, são os jornalistas, a forma como manipulam os factos — e como assistimos: como foi com a invasão do Iraque; inventar que o Iraque tinha armas de destruição maciça e depois encontrou-se uma kalashnikov dourada, não é? Todas essas narrativas, extremamente manipuladas pela comunicação social, pelos jornalistas, tornam ainda mais desafiante o trabalho de um artista. Já a ficção no trabalho artístico: é legítimo mentir, é legítimo fantasiar, isso é a liberdade que nos é conferida a nós como artistas. Temos de entender que muitas vezes o nosso compromisso não está diretamente ligado ao que é real, que são os factos. E isso por vezes abre certos caminhos que, no fundo, também ajudam a questionar, a usar a ficção como um meio para confrontar a própria realidade, confrontar certos conflitos que temos vivido. E para mim tem sido importante, por exemplo naquilo que se vive em África, porque há certos exercícios de temporalidade que são necessários para o progresso, e as pessoas, no seu dia-a-dia, não têm essa disponibilidade, essa possibilidade de projetar o futuro e de aceder ao legado do passado — isso ainda são questões vitais. Então também vejo na ficção essa possibilidade de poder inventar futuros possíveis, e claro, é sempre uma arma importante para a emancipação.
[GM]
E o interessante é que, com a ficção artística, desmascara-se as ficções da história. Há esse paradoxo: ser a ficção o promotor da verdade quando se encontra no campo da arte, ser promotora do questionamento da própria ficção dos discursos oficiais ― hegemónicos, históricos… É ficção a desmascarar ficção, e talvez seja assim desde sempre. A arte é problemática, sim, e é emancipadora, como disseste, justamente porque tem esse poder da “mentira a desvelar mentira”, da “ficção a desvelar ficção”. O teu trabalho acaba por ser animado por essa ideia. E sente-se também em vários projetos teus que a tua relação com o passado [não se esgota numa revisão crítica do “acontecido”], é uma relação com os olhos postos no futuro. Porque, por vezes, nós achamos que é preciso “reparar a história”, e quase que ficamos apenas nessa convulsão, ficamos fechados aí, denunciando ad aeternum, para tentar reparar, mas sempre numa dinâmica de passado, e esquecemo-nos do futuro, às vezes. O teu trabalho impele essa exigência de futuro e de atualidade, de dizer como esse exercício tem de ser feito hoje para o amanhã.
[Kiluanji]
É completamente isso. Às vezes existe uma certa resistência em trazermos de volta o passado para o debate, trazermos outra vez para cima da mesa. E isso tem provocado grandes problemas, no sentido de que, em qualquer questão ligada a reconciliação, a vários episódios históricos que foram extremamente violentos, há um primeiro passo que é reconhecer a sua existência. Só daí é que podemos partir para um momento de redenção e reconciliação. E temos vivido momentos perigosos em que até um episódio como o Holocausto já é questionado. Já existia fotografia, câmaras de filmar e tudo e, mesmo assim, é questionado se existiu ou não existiu ― eu vejo isso como algo extremamente perigoso. E claro que, trazendo, através da ficção, todos esses questionamentos sobre esses períodos, esses episódios trágicos da humanidade, com certeza que, mais do que estar a tentar incitar à violência, ao ódio, ou promover o ódio racial, ou… ― não!: é para que haja no futuro… quase para garantirmos que não repitamos as mesmas asneiras. Porque eu acho que existe um grande problema hoje de se pensar a história. Eu sinto isso em Angola: as pessoas estão muito revoltadas sobre o que aconteceu nos últimos dez anos e negam tudo aquilo que aconteceu na história, e que acaba por influenciar também os dias de hoje, mas que ninguém se quer dar ao trabalho de pensar nisso. Já ninguém tenta pensar sobre o quanto a própria escravatura e a colonização influenciam aquilo que o país é hoje. Claro, estamos mais do que conscientes de que os escândalos de corrupção que aconteceram foram bastante relevantes para a situação de hoje, houve ali uma oportunidade perdida. Mas ao mesmo tempo, isso não invalida pensarmos sobre esses períodos, que acabam por ser recentes ― estamos a falar de um país que está independente há quase meio século; de uma história da escravatura que acabou há um século atrás. E eu sinto que não existe essa abertura, não existe essa vontade de pensarmos como é que isso foi afetando a sociedade. Então essas narrativas todas, históricas, continuam a influenciar. De alguma forma, ainda não nos libertámos, nem nos libertaremos delas tão cedo.
[GM]
Remetendo agora de volta para a exposição na Galeria Avenida da Índia, e até para o facto de trazer de novo o teu trabalho a Lisboa. Uma das obras expostas é bem mais antiga do que as restantes: a série de cinco fotografias A Sina de Otelo (Act. I, II, III, IV e V), de 2013, integrante do projeto Autorretrato como Homem Branco. Tendo como referência a peça teatral Otelo (A Tragédia de Otelo, o Mouro de Veneza) [c. 1603/04] de William Shakespeare, estas fotografias são movidas por um incisivo sentido de crítica cultural e foram realizadas num dos icónicos salões de festas da Casa do Alentejo (Palácio Alverca), em Lisboa. No âmbito desta exposição, este trabalho expande-se no tecido citadino, em cartazes distribuídos pelas carruagens dos comboios da Linha de Sintra. Que alcances específicos perspetivas para estas imagens na cidade de Lisboa, local onde foram fotografadas e onde são agora expostas nesta sua individual e em contexto urbano?
[Kiluanji]
Essa série é um trabalho que comecei a fazer em 2010, em Veneza, na altura em que vivi seis meses lá para uma residência artística, e para mim foi muito impactante ver o que estava a acontecer com a presença da comunidade africana na Itália. E daí começou o meu interesse em fazer uma investigação sobre essa presença na história italiana e foi importante, por exemplo, descobrir como a construção da cidade de Veneza envolveu muitos africanos escravizados, a que chamavam os “mouros negros”. Houve essa preocupação em tentar interferir com essas narrativas do passado, para falar sobre a atual crise da emigração. E nessa investigação que fui fazendo havia muito poucas referências dessa presença nas artes plásticas, por exemplo. Havia algumas esculturas, como as populares esculturas do “mouro negro”, na pintura via-se menos, e na literatura ainda menos. E para mim era como pensar como uma presença de Africanos foi tão importante mas ao mesmo tempo era silenciada, era assim como que omitida. E recorri ao livro de Shakespeare, ao Otelo – O Mouro de Veneza, como fonte de inspiração de uma das séries na exposição.
Muito daquilo que eu queria representar passava por trazer indivíduos da comunidade africana nas cidades europeias para dentro de palácios ― edifícios que, em muitos casos, foram construídos com a mão-de-obra escravizada oriunda de África —, tal como fiz no Instituto de Ciência de Veneza, com a foto O Mercador de Veneza [2010].
[GM]
Que é outra obra de Shakespeare que citas.
[Kiluanji]
E também este conjunto na Casa do Alentejo, no fundo, é como legitimar a presença dessa comunidade no território europeu. E claro, para mim isso remetia muito, não só para a questão da presença física, mas também de uma influência cultural, religiosa, ocidental, que foi assim “injetada” noutros povos no hemisfério sul. É exemplo o Cristianismo, não é? No fundo, existe quase como que uma educação, toda uma influência cultural e religiosa, e daí surge esse título, o Autorretrato como Homem Branco. Que já não é bem uma questão do “colorismo”, mas também de falar sobre aspetos culturais que são elementos comuns na nossa educação. Daí surge a ideia de expor essa peça, A Sina de Otelo, e o que eu pedi à EGEAC-Galerias Municipais era que pudesse também ter essas imagens no espaço público. Acontece, em várias cidades europeias, que as comunidades africanas não acedem a esse discurso e ao trabalho que eu tenho feito e os demais artistas africanos. Se olharmos para os espaços de exposição, para os museus, para quem visita, há ainda um número muito reduzido de pessoas de origem africana nos espaços culturais. De alguma forma, não se sentem representadas nessas estruturas. Acho que seria importante as próprias instituições aqui criarem mecanismos para que haja uma maior interação com essas comunidades, com essas minorias. E por isso surgiu a ideia de fazer a intervenção nos comboios da Linha de Sintra, principalmente, onde há mais bairros onde vive a comunidade africana. E tudo isso tem a ver com a questão da representatividade, que já está na própria imagem em si ― trazer aquele indivíduo para um palácio e tudo o mais ―, mas também trazer a própria obra para um espaço em que existe pouca interação com o universo artístico.
[GM]
Tu acabaste por aflorar a questão da religião, da educação religiosa, e ela prende-se também com a última pergunta que temos. Várias das peças expostas na Galeria Avenida da Índia trazem consigo fortes premissas de espiritualidade que são chamadas a participar na reflexão sobre tópicos sociais e políticos. Isso é muito evidente na instalação Relicário de um Sonho Naufragado (2019)[1] e na obra inédita O Manto da Apresentação (a partir de Arthur Bispo do Rosário)[2], de 2020.
No teu entender, como é que os caudais mágico-religiosos das culturas se revelam centrais para o pensamento das questões políticas e sociais da história e da contemporaneidade? Porque, muitas vezes, parece que existem duas mãos: por um lado, a questão da espiritualidade e da cultura religiosa (e de todo esse sincretismo que, por exemplo, o colonialismo levou a cabo, com essa educação muitas vezes forçada etc.) e, por outro lado, noutra mão coloca-se o pensamento das questões políticas, sociais, ideológicas, quando, no fundo, a interpenetração é tão grande e é tão importante. São planos humanos tão unidos, que parece particularmente importante que tu os chames com alguma frequência para o teu trabalho.
[Kiluanji]
Estando a trabalhar na Itália, a questão da religiosidade, de alguma forma, não a poderia deixar de parte. Estamos a falar de um país onde existe outro país dentro, que é o Vaticano, o epicentro de toda a religião católica e do Cristianismo tal como o conhecemos em muitos países africanos. E quando estive na Sardenha, houve uma coisa que me chamou muito a atenção, relacionado com o aspeto mais paradisíaco da ilha, as vistas, as praias e as montanhas, e isso fez-me pensar muito sobre a questão da expectativa que existe na cabeça de muitos emigrantes. Dentro de todas as questões que tento debater na exposição, por vezes há essa tentativa de não me focar simplesmente na tragédia. Como já tinha dito antes, começam a surgir esses aspetos da política, da geoestratégia global, da questão militar, mas também algo de que é importante falar-se é a expectativa e a ideia que muitos africanos criam antes de começarem essa viagem. Porque ninguém cruza um deserto, e a seguir um mar, arriscando a sua própria vida e de quem ama, se não tiver uma alta expectativa sobre o lugar para onde pretende emigrar. E muitas vezes também tento questionar a forma como se lida com essa comunidade de emigrantes, uma vez chegada às portas do velho continente, um tratamento que choca completamente com certos valores religiosos, pregados pelos próprios missionários europeus durante o período da colonização como valores inalienáveis do cristianismo; a ideia de benevolência e altruísmo, de aceitar o outro, o amor ao próximo. Para mim são questões que não podiam estar de parte quando falamos do Mediterrâneo. A questão religiosa também se torna importante como fator cultural ― religioso, mas também cultural. E foi dessa ideia que surgiram essas peças, o Relicário, o Manto. O Manto da Apresentação, feito a partir do pêlo de ovelhas negras, é uma alusão ao sentido pejorativo e quase sempre negativo da palavra “negro”. E estando na Sardenha, onde a população de ovelhas é o dobro das pessoas ― são mais de três milhões ―, surgiu-me essa questão da paisagem paradisíaca, e ao ver entre aquelas ovelhas brancas algumas ovelhas negras, decidi então criar o manto. Usar essa ideia da “ovelha negra”, o lado negativo, o lado meio de rebeldia, de ira, e vestir esse Manto para entrar para o Paraíso como uma “ovelha negra”, tal como o artista Arthur Bispo do Rosário idealizou o seu momento de entrar no Paraíso, e conhecer Deus. O trabalho passou também pelo processo de fazer o próprio manto, desde as mãos de um artesão na Sardenha, e depois aqui em Lisboa, a seguir, com um grupo de mulheres angolanas que fizeram a decoração do Manto com mais de 10 000 missangas.
Eu não sinto que seja uma pessoa religiosa, mas tenho plena consciência de que a minha educação é de influência cristã. E é bom que isso também se torne parte da questão, para quando pensamos como é que a Europa lida com esta crise da emigração.
Kiluanji Kia Henda; O Manto da Apresentação (a partir de Arthur Bispo do Rosário); 2020; Capa de lã de ovelha negra e cabide. ©Teresa Santos
[2] Traje inspirado no Manto da Apresentação do artista afro-brasileiro Arthur Bispo do Rosário (c. 1909/11–1989), que este concebera para se apresentar perante Deus. Criou-o num hospital psiquiátrico onde viveu durante cerca de cinquenta anos, e onde fora internado, em parte, devido a juízos raciais. O manto desenvolvido por Kia Henda é composto de lã de ovelha negra, munindo-se da conotação associada a esse animal para refletir sobre a ostracização racial. A peça resulta da colaboração com artesãos da Sardenha e é decorada por mulheres angolanas.