De todas as artes ditas modernas, o cinema é, provavelmente, aquela que mais consegue aproximar-se da versatilidade da tradição oral africana, onde existe a possibilidade, tal como fazem o Griot ou o ancião, de falar com horizontalidade com e para todos ou, pelo menos, para uma grande maioria. Esta horizontalidade do discurso do cinema permite apresentar, narrar, representar e recriar imaginários e realidades que, mesmo estando longe do país, nos teletransportam para dentro dele e das suas vivências. Dizia Ousmane Sembène que “o cinema é para falar para um africano que vive no estrangeiro como para um agricultor que está na mais recôndita das aldeias do continente africano”. Este jogo de espelho-retrovisor permite manter uma ligação afetiva umbilical com o país de origem. Na diáspora, os filmes condensam o passado no presente e são um refúgio contra o fantasma de desenraizamento. No cinema africano em geral, e no de Manthia Diawara em particular, o exilio, mais do que afastamento territorial, é também encontro e desencontro do presente com a memória e a História. Ver no espelho do presente é espreitar pelo retrovisor do passado em busca de raízes e sentidos da nossa condição diaspórica e a sua ligação com as dinâmicas presentes herdadas dos processos históricos da construção das identidades que confluem na constituição do sujeito político africano. Em “Conakry Kas” e “Bamako Sigi-Kan”, esta busca de reconciliação do presente com a memória e a História é uma metáfora do que sobrou e ainda está por concretizar do sonho pan-africanista. E, por incrível que pareça, o sentimento pan-africanista está mais vivo e tem maior significado na diáspora do que no continente. Ao fim e ao cabo, nesta palestra pretende-se discutir, por um lado, entre outros aspetos que abordam os filmes de Manthia Diawara, como o cinema é para a diáspora uma forma de se olhar a si própria e como a nostalgia no “exílio pode restituir a África” as comunidades diaspóricas, através da reconstrução de imaginários sonhados e/ou vividos. E, por outro lado, como o cinema pode ser um lugar de refúgio face às agruras do exílio, do desenraizamento, muitas vezes do isolamento e como, sobretudo, o retrovisor do tempo que passou e o espelho do presente que nos liga ao passado são a esconjura da distopia que sobreviveu das utopias passadas e por vir.
Filmes:
Conakry Kas (2003, Mali, 82’)
Realizador: Manthia Diawara; Produção: Lydie Diakhaté, Moussa Diakité; Montagem: Harry Kafka, Sikay Tang; Imagem: Arthur Jaffa, Racine Harouna Keita; Som: Jean-Paul Colleyn; Com: Harry Belafonte, Stokely Carmichael, Telivel Diallo, Danny Glover, Kouyaté Sory ‘Douga’ Kandia, entre outros; Legendado em inglês.
Em 2003, Manthia Diawara visitou a Guiné-Conacri para ver o que restava dos artistas e intelectuais da Revolução Cultural guineense e como é que os cidadãos de Conacri estavam a lidar com a globalização. O filme lança um olhar nostálgico sobre o pan-africanismo da década de 1960 e pergunta-se sobre qual é a utopia da juventude guineense de hoje.
Bamako Sigi-Kan (2002, Mali, 76’)
Realizador: Manthia Diawara; Produção: Lydie Diakhaté, K’a Yéléma Productions; Montagem: France Langlois; Imagem: Arthur Jaffa; Som: Magatte Salla; Com: Jules Allen, Malick Sidibé, Ali Farka Touré, Aminata Traoré, entre outros; Legendado em inglês.
Situado em Bamako, capital do Mali, este documentário não convencional conta a história do retorno de Manthia Diawara à sua cidade natal. O realizador fica surpreendido ao constatar que os seus amigos de infância têm opiniões diferentes, muitas vezes contraditórias das dele, sobre a globalização. Este documentário oferece uma nova perspetiva da cidade africana moderna e discute como se enraíza a democracia no Mali.