– 28.04.2019
O título desta exposição, escolhido pela artista e retirado de um texto de Cesare Pavese, revela-nos um programa artístico ancorado no real; ao mesmo tempo abre-nos uma via de interpretação poética da sua obra. Assim, a clareza com que esta exposição parece poder ser apresentada – pinturas de planos muito aproximados de arvoredos, caminhos cerrados, paisagens sem horizonte visível e desenhos de minuciosa observação – desaparece se olharmos as obras com olhos que não procurem um qualquer naturalismo.
Nenhuma explicação simples, portanto, pode descrever o mecanismo criativo que nos conduz a estas imagens. A obra da artista (a sua pintura, o seu desenho) desenvolve-se em permanente tensão – entre contemplação e acção, observação e memória… Nesse balanço, dificilmente (ou inutilmente) procuraremos a primazia do interior sobre o exterior, da imagem visual sobre a imagem mental (ou vice–versa). O trabalho de Maria Capelo resulta do cruzamento de todas essas diferentes atitudes e escolhas. Não necessariamente por esta ordem, uma árvore é observada, é pintada, é memorizada, é transformada, é repetida, é deslocada – forma, cor, gesto, pincelada participam nesses jogos de encenação, ou seja, de reorganização/reordenação do mundo. No desenho, o pormenor de uma árvore (de um tronco, de um ramo) é separado da unidade a que pertence – o grau de proximidade e intensidade dessa observação pode transformar o desenho desse fragmento de realidade tangível numa paisagem, alterando radicalmente as escalas quer da observação quer da significação.
A exposição ocupa os espaços dos dois pisos do Pavilhão Branco de forma diversa, criando realidades autónomas que a montagem, o tema da paisagem e os métodos de trabalho unificam. Os desenhos do piso térreo obrigam-nos a uma aproximação do olhar, distanciam-nos em relação às árvores reais do jardim que ameaçam invadir o nosso campo de visão. As pinturas do piso superior criam uma paisagem suspensa – campos de arvoredos densos nascem sobre as copas das árvores reais que, a partir do exterior, atravessam, se espelham e se multiplicam nos vastos planos de vidro das janelas.
Os desenhos são de duas naturezas diversas: ambas resultam da observação (por dissecação e separação e/ou por separação/agregação) dos elementos de uma unidade que nunca nos é revelada. Mesmo com a montagem adoptada (cinética, em bandas contínuas) mantém-se essa fragmentação, impedindo qualquer esboço de reconstituição de um todo; uma das séries pode, mesmo, iludir-nos sobre a sua origem, passando de um microcosmos a um macrocosmos, simulando grandes paisagens abertas, tomadas à vol d’oiseau.
As pinturas que, individualmente consideradas, sugerem imediatamente uma cenografia (um pano de cena), encadeiam-se, depois, numa montagem também contínua, apresentando-se como deslocações no espaço e no tempo. Presenças visuais e fisicamente muito poderosas, o espaço e o tempo dessas pinturas não nasce do percurso que efectuamos na galeria ao contemplá-las; é o tempo e o espaço de uma outra realidade: a realidade de uma Natureza olhada e conquistada (apropriada/reordenada) pela representação artística; a realidade de uma paisagem andada e pensada; de uma realidade física e mental; da realidade da sua execução (evolução das técnicas, diferença das matérias das telas, do cromatismo e luminosidade), percebida de obra para obra ao longo da série.
Em nenhum caso se trata de reconstituir um lugar ou de reproduzir uma imagem prévia. Tudo nasce da observação minuciosa da Natureza que Maria Capelo realiza; e também da leitura que faz de textos científicos e literários sobre o tema. Observação e leituras servem-lhe para confirmar que nada se vê fora do que existe. Mas, simultaneamente, que nada do que vemos existe se não em cada uma daquelas pinturas e desenhos. É esse compromisso duplo que Maria Capelo expõe: compromisso com o real, com a verdade da Natureza pensada/vista através da paisagem e com o que está para além do real (antes/depois).
Pelo primeiro e segundo pisos desta exposição perpassa o remoinho de um mesmo vento que volteia as folhas, inclina os troncos, atravessa os vidros, que apenas se detém nos muros mas que deles regressa em ricochete para nos levar pelos caminhos do mundo. Maria Capelo não nos oferece estas imagens. Obriga-nos a conquistá-las com a mesma perseverança com que ela as fez.
João Pinharanda, curador
– 28.04.2019