Ciclo Budapeste

Pedro Faria

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Uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, em parceria com o município de Budapeste. Este programa possibilita a dois artistas portugueses a realização de um trabalho artístico em Budapeste, durante um mês, e a dois artistas húngaros a realização de um trabalho artístico em Lisboa, com igual duração.
Desde 1992, data em que foi celebrado o acordo de geminação, o programa de residência artística já permitiu a cerca de 40 jovens artistas portugueses desenvolver um projeto de trabalho na cidade de Budapeste, e acolheu na cidade de Lisboa igual número de artistas húngaros com o mesmo propósito.
O intercâmbio é uma organização conjunta da Secretaria Geral – Divisão de Relações Internacionais e da Direção Municipal de Cultura.

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Os trabalhos de Pedro Faria (Porto, 1976) não têm qualquer relação com a residência realizada há dois anos em Budapeste. Constituem um momento seguinte, posterior, relativamente recente, no qual o artista explora a disposição e a significação dos objetos em relação com o corpo. Na galeria Quadrum, tal desígnio revela-se sem equívocos: deparamo-nos com duas finas colunas de cartão, uma pedra, esferas negras e brilhantes sobre madeira, ferro soldado e retorcido ou objetos informes feitos de gesso.

O espetador é convidado a deambular por entre as coisas, respondendo ou não às solicitações, aos apelos que exprimem. Nada é impositivo na presença dos trabalhos. O artista conhece bem os protocolos do cubo branco: a sacralização que comporta, mas também o horizonte interpretativo que abre. As ficções que possibilita e liberta quando animado pela soberania do gesto artístico. Não será despropositado afirmar que Pedro Faria aprecia intervir no espaço. Ver o que este faz aos objetos e vice-versa.

Pedro Faria estudou arquitetura e, depois de uma licenciatura em artes plásticas em Glasgow, abraçou a arte contemporânea, que considera mais flexível e abrangente, que lhe permite operar num campo menos condicionado. “Todo e qualquer projeto de arquitetura, até o mais utópico, tem como ponto de partida um dado programa espacial que, por sua vez, acarreta uma ideia de ocupação do mundo, ou de relação do ser humano com o mundo. É muito difícil pegar nesse programa e não estar desde logo dentro de um campo específico de significação, com uma carga simbólica e histórica daí emergente. Ao mesmo tempo, há sempre um lugar mesmo quando é negado, em suma, há vários pontos de partida para cada projeto que irão formatar em grande parte o seu desfecho. E isso tolhe-me o desejo de ação”.

Na arte, Pedro Faria não encontra este predomínio discreto dos fins, a mesma prescrição de princípios ou conceitos operatórios. Encontra, sim, “o estético” como definido por Kant: uma finalidade sem fins. “Como artista pude falar do que entendi por bem falar ou consegui ir falando. Pude explorar a agressividade de certas presenças, a leveza de outras, a solenidade algo falseada das colunas de papelão, o peso enganador das bolas pretas, a memória de uma planta seca. Tinha uma escolha muito maior e muito mais operativa do terreno onde me moveria a cada instante, sem jogar com um baralho onde certas cartas já tinham sido marcadas por outrem. A prática da arte está repleta de condicionantes, mas parece-me mais fácil manobrá-las de modo a não corromperem a liberdade de criar sentidos vários, e as referências pelas quais sou o principal responsável”.

Pedro Faria utiliza materiais de diferentes proveniências. Industriais, orgânicos, manufaturados, encontrados ou não. Cartão, barro, gesso, ferro. Plástico, madeira. Uma planta, lã mineral. Depois intervém neles, de modo nem sempre explícito, e procede a delicadas justaposições. Duas colunas de cartão são encimadas pelas metades ocas de uma esfera de gesso. Uma planta ressequida escorre da superfície negra de um plástico. Uma inusitada e pequena pata da sorte sobressai de um prato de gesso na parede. A primeira reação do espetador será examinar a origem e a forma das obras. Afastadas umas das outras, são interrogações no e do espaço. E “escultura”, “pintura” ou “tela” podiam ser respostas. Mas o artista esconde o jogo. Ou não fosse o seu fazer embalado pelo acaso, pela intuição e pelo humor.

“Vão permeando tudo o que faço (associados ao confronto, ao embuste, à delicadeza…) e destrinçar estas ferramentas é-me impossível, já que são ativadas subterraneamente e tento ser um seu espetador e não o seu operário. Mas direi que são formas de minar qualquer tentação programática. Aflige-me ficar preso a um campo de significação muito específico ou claro, razão, aliás, pela qual evito textos que contextualizem o trabalho ou peças com um sentido que me pareça bastante dirigido. Este arrepio perante clarezas de sentido faz-me apreciar os acasos que ocorrem em todos os processos de trabalho, procurar na intuição o modo de os deslindar ou simplesmente de perceber o que funciona ou não funciona numa peça, e o humor como forma de corroer alguma pompa que surja. Sou por natureza esquivo ou resguardado quando ponho algo no mundo, por preferir que o espetador construa as suas próprias opiniões e intenções sem que as minhas lhe ocupem grandemente a consciência. Sinto-me obrigado a lançar dados com clareza e parcimónia, para que o jogo possa ter lugar com alguma eficácia, mas a leitura – ou a cartomancia – desses dados ocorre idealmente do lado de lá, por quem os recebe quando eu, como autor, já me retirei”.

O ferro soldado é ferro soldado, as esferas são esferas, a pedra é uma pedra. Mas feito este reconhecimento, o encontro com o objeto artístico, em termos de perceção e pensamento, não conhece constrangimentos. “No fundo, acredito muito na capacidade e na riqueza de cada um escrever as suas próprias histórias e prefiro não me intrometer demasiado nelas. Assim sendo, intuição, humor, acaso são apenas formas de ultrapassar as minhas ideias iniciais e chegar, idealmente, a um lugar em que tanto eu como o espetador estejamos perdidos de nós próprios – para depois cada um por si encontrar um caminho através da obra. Sem estas ferramentas, as coisas que faço tendem a ser algo óbvias e aborrecidamente claras, fruto de uma mente em ação e não de um desejo de saída: saída de si, saída do rotineiro mundo, saída da armadilha da compreensão”.

Debaixo de uma pedra pisca uma luz. Sobre duas superfícies geométricas de lã de rocha estão duas massas informes de barro, compondo um contraste háptico e cromático. As esferas equilibradas sobre madeira são afinal de ferro. E há um inquietante ser de gesso e argamassa que, a qualquer momento, ameaça mover-se. Diante destes objetos, o espetador não encontra um programa, uma direção prévia. Resta-lhe ater-se à independência solitária da sua experiência. Ou à liberdade que existe dormente na sua capacidade de ver. “A vontade de compreender e dominar o mundo pela leitura do que se tem em redor parece-me demasiado presente e amedrontada, já que muitas vezes corresponde a um desejo de morte, a um desejo de controlo do que é por natureza fluido e inconstante. Com alguma imodéstia, gostaria de contribuir para que se perceba menos, se conclua menos e se veja por isso mesmo mais”.

No processo de trabalho de Pedro Faria não existe um espaço privilegiado, que se sobreponha a outros. Se o atelier é importante, nem por isso torna subalterno o envolvimento com a rua ou a casa. “Idealmente gostaria de trabalhar atravessando todos esses espaços, convertendo-os num só e largo espaço, em passagens fluidas e quase impercetíveis. Isto baseia-se numa vontade algo desmedida de criar um campo indiferenciado onde arte e vida se misturem e sejam uma coisa só”. Como tantos outros artistas, Pedro Faria deseja quebrar as distâncias que separam a arte do quotidiano, estando, de antemão, consciente das dificuldades, das aporias que essa tarefa implica: “ainda não o fiz nem me prometo consegui-lo, mas o desejo de unidade entre arte e vida, que é uma forma de dizer entre trabalho e descanso, entre consciência de si e dos outros, e entre quotidiano e aventura, é um desejo que me acompanha há anos, em paralelo com o desejo de liberdade significante que me afastou da arquitetura. No fundo, procuro operar num campo o mais expandido possível, tanto a nível simbólico como a nível da experiência de mim, dos outros e da vida. Esta vontade de misturar arte e vida afeta muitos criadores, e tenho procurado aprimorá-la dentro dos limites típicos das intenções megalómanas: um caminho que me faz desconfiar da ‘prática de atelier’ e me impele a procurar uma ‘prática de tudo’, onde o quotidiano na sua banalidade maravilhosa e terrível se possa fundir com esse movimento de fuga abstrata que a arte me parece sempre ser”.

Pedro Faria sabe que existe um paradoxo, mas abraça-o, pois é nele que a sua arte se manifesta. Fecundo, fértil, vital paradoxo. “A arte implica distância em relação ao mundo de modo a permitir a fundação de um campo simbólico preciso, e a vontade de mergulhar no mundo sem entraves é-lhe contrária. Mas é um paradoxo que faísca e dá origem a ansiedade e a passos em frente, a medo e a movimentos de conquista, tornando-se assim útil como impulso de arte e de vida”.

-José Marmeleira

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Publicação

Título
Textos de
Ciclo Budapeste – Pedro Faria 
José Marmeleira