– 09.09.2018
Fundação Carmona e Costa; Biblioteca Nacional de Portugal.
Coincidência de opostos: recurso vital e motivo de conflitos mortais; lugar de viagem esperançosa e cemitério vergonhoso de abandonados; ameaça natural ao homem e irremediavelmente ameaçada por ele; símbolo de vida e de morte; imagem do tempo que passa, escapando-nos, e da eterna fonte original, útero maternal…
É sobre este estatuto paradoxal das águas que a exposição Escutar as Águas se debruça. Cruzam-se obras da Coleção François Schneider (França), que definiu a água como tema, com obras de artistas portugueses e com filmes, documentos, livros e objetos que nos permitem aproximar da complexidade do elemento e da atualidade do seu impacto político.
Esta exposição é uma proposta a que não permaneçamos na margem, num alheamento falsamente seguro, mas que nos lancemos na corrente, conscientes de que estamos já embarcados. Há uma sabedoria e força plástica na água que é preciso escutar. Na água, ou melhor, nas águas: porque é na pluralidade de formas e estados que ela se manifesta – e essa é já uma lição.
Na Galeria do Torreão Nascente da Cordoaria Nacional a exposição divide-se pelos dois pisos respetivamente. Apresentando-se por núcleos temáticos. No piso zero encontramos a exposição dividida pelos seguintes temas:
– Da origem:
Nos mitos fundadores de várias civilizações, a água surge como a origem da vida: como a causa ou o lugar do seu aparecimento, como sémen ou útero maternal.
Na mitologia grega, Afrodite – deusa do amor, da sexualidade, da beleza – nasceu quando Cronos cortou os órgãos genitais de Urano e arremessou-os no mar; da espuma (aphros) ergueu-se Afrodite.
Noutro mito, conta-se que Dânae foi enclausurada pelo pai num lugar escondido do mundo, para que não se cumprisse a profecia do oráculo que lhe revelou que ele seria morto pelo seu neto. Dânae, mesmo presa e solitária, será fecundada pela chuva dourada enviada por Zeus, que se apaixonou por ela.
Estes mitos revelam a relação ancestral entre a sexualidade, a fecundidade e a água: ela é fonte, o líquido amniótico, a origem do mundo.
– Da Plasticidade:
A rigidez e a inflexibilidade são o oposto da vida – que exige a plasticidade, o incessante movimento.
A água molda o mundo, e é moldada por ele. É essa dupla aceção de plasticidade, a capacidade de moldar e de ser moldado, que encontramos nestes núcleos, e que a água nos ensina – se a soubermos escutar. A água vai formando, com paciência e persistência, o território, alterando os leitos, as margens e a forma da costa marítima – água mole em pedra dura…
A água é informe. Flui: separa-se, irradia, bifurca, abre caminhos onde antes não existiam, forma imagens, cria desenhos e apaga outros. Dá origem a formas de vida inesperadas. É a potência, a vida que se dispersa e reúne e adapta, em perpétuo movimento.
A água sabe dançar.
O piso superior da galeria tem como tema:
– Do tempo:
“Ladrão cristalino” foi uma expressão usada na época barroca para definir o tempo, e compará-lo ao rio que corre, à vida que passa e nos é roubada.
Se o tempo é como o movimento permanente das ondas do mar, a suspensão desse movimento assume uma estranheza próxima daquilo que definimos como eternidade. Sem princípio nem fim.
Nestes núcleos, as obras permitem perceber o tempo de várias formas: o tempo como movimento universal, repetição e alteração; o tempo suspenso, que se assemelha à eternidade; e o tempo como viagem em direção ao futuro – futuro que é o tempo primordial, a partir do qual os outros, passado e presente, são compreendidos.
Estamos já embarcados!
– Paulo Pires do Vale, curador
A Fundação François Schneider
Fundação filantrópica, criada em 2000 e reconhecida como utilidade pública em 2005, a Fundação François Schneider persegue um compromisso duplo com a educação e a cultura. Através da distribuição de bolsas permite que jovens frequentem o ensino superior e apoia artistas contemporâneos no desenvolvimento de suas carreiras. Localizada na vila de Wattwiller, em França, incentiva a criação através de várias iniciativas dedicadas ao tema da água, incluindo um concurso internacional, a aquisição de obras para a sua coleção e a organização de exposições temáticas no seu centro de arte contemporânea. A sua atividade é ainda complementada por publicações, empréstimos, exposições itinerantes e um programa para jovens artistas de escolas ao longo do Reno.
– 09.09.2018
Fundação Carmona e Costa; Biblioteca Nacional de Portugal.