– 30.01.2022
Flamboyanzinho, Flor-de-pavão, Flamboyant-mirim, Barba-de-barata, com curadoria de Julia Coelho e Renan Araujo, é uma exposição coletiva que toma como ponto de partida o caráter performativo da Caesalpinia pulcherrima dado por suas propriedades venenosas e curativas. Flamboyanzinho, Flor-de-pavão, Flamboyant-mirim, Barba-de-barata, são alguns dos nomes populares pelos quais a Caesalpinia pulcherrima é conhecida no Brasil. O veneno nos aproxima da morte, mas dependendo da dose, pode ser a cura.
Tais propriedades nos auxiliarão, junto às obras e artefatos reunidos na exposição, a refletir sobre trânsitos, sejam eles oceânicos, psíquicos, metabólicos, subterrâneos, hormonais, poéticos e culturais. A exposição conta com peças de artistas, acervos de museus e documentação de lugares sagrados: Andreia Santana, Candice Lin, Castiel Vitorino Brasileiro, Cecilia Bengolea, E. M. de Melo e Castro, Sarah Ancelle Schönfeld, Thiago Correia Gonçalves, artefactos dos séculos XVII e XVIII (Anel com compartimento secreto para conter venenos e Pedra de Bezoar, ambos pertencentes ao Museu da Farmácia de Lisboa), Pedra de Xangô (Salvador, Brasil), Farmácia Barreto e Jardim Botânico.
Como outras espécies vegetais originárias das Américas do Sul, Central e Caribe, a Flamboyanzinho foi incorporada na Europa a partir do século XVII devido aos seus valores comerciais e científicos. Em solo americano, a Flor-de-pavão integrava uma rede de trocas entre mulheres africanas e indígenas que, como estratégia de resistência ao regime colonial escravista, serviam-se do poder abortivo dado pelo potencial tóxico de suas sementes. Ao cruzar o oceano, a Flamboyant-mirim passava a integrar uma outra rede, onde era dissociada de seu histórico de alianças em movimentos de insurgência e considerada uma flor de alto valor econômico pela beleza de suas cores e formas flamejantes. As propriedades venenosas, curativas e performativas da Barba-de-barata, assim como de outras espécies vegetais migrantes, exerceram um papel ativo nas dinâmicas políticas e sociais do período colonial. Tais propriedades agora nos auxiliarão, junto às obras e artefatos reunidos na exposição, a refletir sobre trânsitos, sejam eles oceânicos, psíquicos, metabólicos, subterrâneos, hormonais, poéticos ou culturais.
Se podemos vincular substâncias tóxicas a estratégias de manutenção da vida através da morte, também podemos entendê-las a partir do seu poder regenerativo atuando em cicatrizações, em rituais, proporcionando prazer e nutrição ao corpo ou facilitando o contato com a esfera do divino. O manejo consciente de substâncias venenosas pode ser preservado por séculos por meio da tradição oral, em receitas culinárias, cantigas ou ditados. Essa transmissão intergeracional não se reduz apenas aos órgãos da boca e ouvidos, mas alcança a totalidade do corpo, que carrega em si uma memória ancestral dotada de experiências de prazer e dor. Tal memória, que também pode ser entendida como um espaço de preservação de saberes, é viva, e transforma-se na medida em que é socializada, podendo resultar ao mesmo tempo em processos terapêuticos e de produção de sentidos.
Dentro da exposição, os alcaloides derivados de plantas venenosas nos servem como guias e nos estimulam a pensar nas condições que mantiveram invisíveis seres vivos, fatos e objetos em contextos sociais. Um anel com um compartimento secreto para venenos que vestia as mãos de um homem da nobreza italiana ou jogos de azar ilegais de origem migrante amplamente difundidos entre classes trabalhadoras cubano-chinesas no Caribe. Por serem perceptíveis aos humanos apenas através de sua ingestão, tais alcaloides reagem no interior de nosso organismo em um ambiente escuro da mais alta complexidade. Esse trânsito exterior-interior da engolição se reverte quando pensamos na Pedra de Bezoar, um composto mineral formado no estômago e nas vias urinárias de animais ruminantes que era utilizado na Europa desde a Idade Média como um antídoto contra todos os venenos, carregado como um amuleto mágico e precioso. Trânsito semelhante estrutura a história da Pedra de Xangô, monumento natural sagrado afro-brasileiro localizado na cidade de Salvador-Bahia, no Brasil. O rochedo serviu como rota de fuga para pessoas escravizadas que, ao atravessarem sua passagem subaquática, acessavam o espaço exterior ao regime de controle senhorial.
As travessias oceânicas possibilitaram o desenvolvimento de apropriações e intercâmbios culturais nos quais a ação e o significado de substâncias migrantes se inseriram em novos contextos, ora participando da construção de culturas diaspóricas, ora gerando riqueza a grupos dominantes. A exposição se completa em outros dois espaços que materializam um pensamento e modo de operar potencializado pelo sistema extrativista colonial: o Jardim Botânico e a Farmácia. Esses dois espaços nos permitirão refletir, a partir do contexto específico da cidade de Lisboa, sobre as questões levantadas na Galeria da Boavista que relacionam-se aos processos de circulação, ritualização, transformação, comercialização e institucionalização de objetos e saberes relacionados ao mundo natural.
Descarregue aqui a Folha de Sala para Crianças.
– 30.01.2022