Now it is Light

Amélie Bouvier, Ana Manso, Ana Mazzei, Andreia Santana, Bernard Lyot, Davide Zucco, Elias Heuninck, Ester Fleckner, Haris Epaminonda, Jeronimo Voss, Pedro A.H. Paixão

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No âmbito do Open Call Jovens Curadores lançado pela EGEAC – Galerias Municipais em 2016, com o objetivo de acolher, divulgar e apoiar a produção e pensamento artístico contemporâneo na cidade de Lisboa, e reforçar a importância dos jovens curadores como agentes de mediação junto das novas gerações de artistas, a Galeria Boavista acolhe os quatro projetos curatoriais vencedores. As participações anteriores envolveram Alejandro Alonso Diaz, Sara De Chiara e Inês Geraldes Cardoso. A edição final acolhe Sofia Lemos. Envolvendo práticas artísticas que abordam o “geocosmos” como um agente em movimento, a exposição reúne trabalhos dos artistas Amélie Bouvier, Ana Manso, Ana Mazzei, Andreia Santana, Bernard Lyot, Davide Zucco, Elias Heuninck, Ester Fleckner, Haris Epaminonda, Jeronimo Voss e Pedro A.H. Paixão, muitos deles mostrados pela primeira vez em Portugal.

“Compreender a realidade física demanda não só a renúncia de uma cosmovisão antropocêntrica e geocêntrica, mas também uma eliminação radical de todos os elementos e princípios antropomórficos, à medida que emergem tanto do mundo até aos cinco sentidos humanos, como das categorias inerentes da mente humana”. [1]
– Hannah Arendt, A Conquista do Espaço e a Estatura do Homem, 1963

A 16 de outubro de 2017, a comunidade internacional astronómica testemunhou o colapso de duas estrelas de neutrões no vazio do espaço, irradiando grandes quantidades de ouro e de outros elementos pesados numa explosão elementar sem precedentes. Dividida pela modernidade colonial numa direção em que a força da gravidade atua sobre estes dois planos – o cósmico e o geológico – a lenta sedimentação destes elementos encontra-se codificada, por um lado, em formas terrenas de energia fossilizada e, por outro, em gasosos aglomerados de radiação expandida, circulando em forma de criação e troca de valor como modo de desapropriação. Hoje, enquanto as efusões cósmicas são progressivamente colocadas na vanguarda das radiantes promessas da “tecno-esfera“ e mediadas sob a forma de bens e ativos, os metais e os minerais permanecem capturados em delimitações políticas e corporativas. Ainda assim, encrostados na superfície planetária como registos sedimentares, estes elementos evidenciam-se como tendo uma linguagem própria.

A Estrela do Sul de Jules Verne (1884) situa este movimento de repartição e despojo numa modernização da alegoria da caverna. Michael Serres descreve a caverna de Verne como um campo de redes de comunicação entre agentes estratificados e minerais: “[esta] inverte a caverna platónica ao ser um modelo em pequena escala do próprio mundo exterior. Neste caso, ele é composto de cristais de pedra dura, de corindo ou berilo, bem como de brilhantes espelhos, luzes pulsantes, fogos-de-artifício incandescentes e vibrantes – cada um multiplicando as reflexões do outro, emitindo, recebendo e trocando milhões de informações sobre eles mesmos. Simultaneamente meio e mensagem, os diamantes devolvem o brilho das sardónicas ao lápis-lazúli, e os rubis refletem as chamas da água-marinha, enquanto as esmeraldas espelham-se a si mesmas no lustro do topázio. (…)”[2] Neste sentido, os raios de luz abstraem e refletem visões homogeneizadas, universais e unificadoras da forma. Cabe assim questionar, no contexto do direito da propriedade enraizado na história da escravidão, do colonialismo e da opressão de género, como se estabeleceram os limites normativos da extração? E como é que estes são úteis para examinar as memórias de saqueio mineral por agentes coloniais e pelas incursões do capital global?

Num conto de 1974 intitulado The Stars Below, Ursula K. Le Guin narra a história de um astrónomo acusado de heresia que encontra refúgio nos caminhos escuros e oblíquos de uma mina. No seu interior, as noites de vigília e de observação transformam-se numa incessante procura pela luz. Na escuridão da mina, a sua crescente obsessão conduziu os mineiros a que inevitavelmente cedessem à vontade do astrónomo. Ensinaram-lhe a balançar a picareta, a procurar as ramificações do metal e a como separar a rocha do mineral. Nesta narrativa de dissidência e exílio, o espaço da mina desdobra-se numa aparente continuidade astronómica entre a temporalidade humana, geológica e do capital.

Já no século XIX, Karl Marx reconheceu um problema de sustentabilidade nos processos dinâmicos e sistemas de fluxo de energia e matéria, quando se referiu às ruturas do metabolismo nos sistemas da Terra, ancoradas em torno da lógica da acumulação capitalista e do modo como o raciocínio neoliberal corrompe as suas operações básicas de renovação. Uma contribuição fundamental para esta formulação provém de um desconhecido astrónomo e geólogo belga, Jean-Charles Houzeau de Lehaie (1820-1888), cujo papel preponderante nas revoltas de 1848, em Bruxelas, o levou ao exílio. Não são conhecidas fontes que confirmem um possível encontro entre Houzeau, Marx e Friedrich Engels em Bruxelas durante os anos revolucionários em que escreveram o Manifesto do Partido Comunista (1847). Sabemos contudo que na biblioteca privada de Marx se preservou uma cópia de O Clima e o Solo (1861), de Houzeau, onde este inaugura as suas reflexões sobre as afinidades entre formas de relevo, eventos geológicos e ação antropogénica, posteriormente desenvolvidas por Marx no terceiro volume de O Capital, intitulado “O Processo de Produção Capitalista como um Todo.”

Em Now it is Light, a difração da luz opera num contínuo movimento gravitacional entre o substrato e o cósmico, como proposição para questionar o próprio planeta e as narrativas que nele convergem na forma de alegorias da caverna. Ancoradas em práticas de sucessão cronológica, comparação e medição que historicamente vêm determinar os limites modernos nos quais se conformam a identidade e a memória, Ester Fleckner e Pedro A.H. Paixão exploram os pontos de vista civilizacionais em que o universo observado, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, escapa à perceção dos sentidos humanos. Atuando em coreografia lenta, Paixão reposiciona o visitante face à história de cronometria terrestre, enquanto Fleckner ignora a humanidade como medida e binómio de género e raça, propondo, em alternativa, uma visão fragmentária e irreconciliável desses protocolos de representação.

Interlocutores de um universo luminoso, os olhares melancólicos de Bernard Lyot e Haris Epaminonda exploram a recusa da inevitabilidade do tempo linear. Com as primeiras imagens em movimento da coroa solar Lyot capta também uma crónica do sustento energético da Terra. Epaminonda, por outro lado, reflete sobre a própria prática de captura e catividade num relato pulsante sobre o progresso civilizacional. Num momento da história terrestre em que a ação antropogénica tem impactos fundamentais na geologia planetária, Ana Mazzei e Davide Zucco propõem uma leitura intercalada de como os tempos narrativos, pretérito, presente e futuro, constroem objetos de pesquisa. Enquanto Mazzei explora o substrato planetário intercalando narrativa entre a pedra dura, Zucco posiciona-se em torno de cenários cosmológicos explorando a própria materialidade da caverna. Andreia Santana propõe um testemunho da capitalização do trabalho ao desenterrar memórias materiais que confluem na construção da alegoria. Ao converter o trabalho de campo num evento de trabalho, a legitimação de narrativas civilizacionais fica aquém do impulso moderno que procura a mediação do tempo histórico.

Seguindo as múltiplas trajetórias de um meteorito de ferro que em 1947 se desintegra durante a sua rota no leste da Sibéria, Amélie Bouvier propõe uma “arqueologia do futuro”, onde as crateras espaciais se emprestam à compreensão de impactos na terra causados por levantamentos geológicos e militares. Elias Heuninck explora um dos mais notórios levantamentos astronómicos do século XX intitulado Carte du Ciel (1887-1970), numa meditação arlequinada sobre a emergência do céu noturno em si mesmo ou como consequência de uma relação exclusivamente ótica com o universo. Jeronimo Voss reúne desenhos a olho nu do astrónomo e socialista holandês Anton Pannekoek, realizados entre 1890 e 1927 a partir de relatos exatos de um grupo de astrónomos amadores. Informados pela história do socialismo e cosmopolitismo, Heuninck e Voss, em colaboração com o Real Observatório de Bruxelas e com o Instituto Anton Pannekoek de Astronomia da Universidade de Amsterdão, exploram as múltiplas escalas de reunião cósmica desde o planetário até ao plano cósmico.

Ana Manso convida a observar a terra desde o ponto de vista do universo, desestabilizando a relação entre fundo e figura e confundindo a literalidade com a abstração da forma. Posicionando estas múltiplas narrativas numa dramaturgia fronteiriça, Manso recontextualiza a circunferência repartindo-a, como se da própria modernidade se tratasse.

– Sofia Lemos, curadora

[1] Arendt, Hannah. 2007. “The Conquest Of Space And The Stature Of Man”. The New Atlantis 18: 43.

[2] Serres, Michel. 2014. “Matter and Information” in Textures of the Anthropocene: Ray. Cambridge, Massachussets: MIT Press. 327.

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Publicação

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Textos de
Now it is Light
Sara Antónia Matos, Sofia Lemos, Caroline (Coco) Picard