Prospecto. Princípio, Meio e Ultimação

André Guedes

prospecto andre guedes galerias municipais capa
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No início, Prospecto começou pela intenção de pôr em cena a dimensão política do escritor, artista, designer e reformador social William Morris, cuja influência foi marcante no contexto britânico da segunda metade do século XIX. A partir de textos deste autor, e em particular de A Factory As It Might Be [Uma fábrica como poderia ser], André Guedes começou por configurar um espaço narrativo onde confluem os ecos do pensamento de Morris e os registos da cultura material que ele nos legou, e onde reflecte sobre certas noções universais como o trabalho, a liberdade, a justiça ou a igualdade. Não foi por acaso que Guedes recorreu precisamente a uma personalidade como a de Morris, indissociável da sua carga política, para falar da responsabilidade que os artistas podem exercer como pensadores activos do presente.

Etimologicamente, o vocábulo latino prospectus refere o colocar em perspetiva ou a expectativa positiva de que ocorra algo. Mais precisamente, refere-se a um exercício de projecção do futuro. A partir desta ideia matriz, André Guedes iniciou em finais de 2012 um projecto de investigação e realização artística que tomou forma e ganhou novos conteúdos através de diferentes projectos – cenas – e localizações: Uma Assembleia de Pórticos / Uma Fábrica Como Poderia Ser (Fundación Botín, Santander, Espanha, 2013); Os Tecidos Perguntam / Algumas Indicações para o Desenho de Padrões (Galerie Crèvecoeur, Paris, 2013); Prospecto: Cena III, Intervalo e Cena IV (CAM / Fundação Calouste Gulbenkian, 2013); todos eles reunidos agora, e pela primeira vez, na presente exposição do Pavilhão Branco sob uma nova re-elaboração com um carácter conclusivo: Prospecto. Princípio, Meio e Ultimação.

Cada uma destas “estações” foi incorporando diversos elementos concretos, performativos, documentais e discursivos até chegar à apresentação actual que os relaciona entre si, trazendo, ao mesmo tempo, uma nova cena em modo de epílogo. O espaço do pavilhão, a sua arquitectura particular, funciona como uma caixa compacta em cuja totalidade o artista interveio, de cima a baixo, da direita à esquerda, mas também no seu espaço exterior. Deste modo o carácter de prospecto, entendido agora como programa, adquire todo o seu sentido. O fio condutor e material do projecto articula-se em torno das manufacturas têxteis da região da Covilhã, que representam e simbolizam as transformações sociais, económicas e tecnológicas desta região portuguesa. Desde o século XVII que a Covilhã, situada no interior do país junto à Serra da Estrela, centra a sua actividade na indústria da lã. Com o passar do tempo, foi-se configurando um forte imaginário que se expandiu com a sua capacidade produtiva, passando a incorporar uma destacada tradição laboral, comunitária e associativa que a converteu, a pouco e pouco, numa cidade-fábrica – “a Manchester portuguesa” – até ao início do seu declínio em finais do século XX.

Guedes encontrou neste caso paradigmático uma oportunidade para retomar as ideias revolucionárias sobre a esfera produtiva, social e laboral desenvolvidas por Morris no seu tempo. A sua análise incita simultaneamente uma investigação académica e a prática artística propositiva, método habitual com que o artista vem desenvolvendo a sua obra através de outros trabalhos recentes como AIROTIV (2009), Diálogo Oblíquo – Alma M. Karlin (2011) ou Die Wiederherstellung des Geistes (2015).

O subtítulo do projecto –Princípio, Meio e Ultimação – faz alusão por um lado aos sucessivos desenvolvimentos deste projecto ao longo do tempo e, por outro, às diferentes fases da produção têxtil que serviu de leitmotiv para este trabalho. Os tecidos seleccionados cuidadosamente pelo artista a partir de várias fábricas da região da Covilhã, encerradas no final do séc. XX, actuam como elementos integrantes de algumas composições escultóricas e, ora se constituem como entidades activas, ora como simbólicas, susceptíveis de emitir um discurso sobre a memória e sobre as transformações sociais e identitárias no âmbito das dinâmicas do trabalho. Como no caso da performance Os Tecidos Perguntam (Cena II) em que estes dramatizam, junto dos seus actores produtivos, uma série de diálogos sobre as lutas políticas e reivindicações sociais da região de onde provêm.

Outros dispositivos – como textos, arquivos fotográficos, protocolos documentais, esculturas ou a instalação fílmica Planalto / Círculo Aberto Ritmo Liberto (Cena III) – inserem-se como entidades numa obra que pode ser lida como uma encenação teatral no espaço, simultânea e coral. Também a incorporação do vídeo-poema Poética dos Meios do poeta, artista visual e engenheiro têxtil E. M. de Melo e Castro – convocado anteriormente nas cenas III e IV – funciona como elemento de unificação entre as disciplinas da arte e a indústria juntamente com ideias de produção, utopia e progresso.

Prospecto. Princípio, Meio e Ultimação pretende estimular tensões poéticas ou experienciais que incitam os visitantes a partir das obras, mas também da gramática da própria exposição, por sua vez inscrita no espaço. O trabalho de André Guedes, ou melhor ainda, o modo como o artista concebe e inter-relaciona cada elemento – cada obra – permite leituras fluidas e abertas, insistindo nos processos dialógicos face às possíveis interpretações parciais de cada uma das suas peças. Daí essa visão crítica e despreconceituosa sobre o suposto status imutável destas, favorecendo antes novas configurações e narrativas que nos obrigam a tomar partido enquanto indivíduos activos no complexo presente.

– Juan de Nieves, curador

*Por opção expressa do autor, o texto não foi escrito segundo o Acordo Ortográfico de 1990.

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Programa Público

Data
Título
Com/de
Categoria
Local
20170311
11.03.2017
Intervalo – Parte I
Screening
Pavilhão Branco
20170318
18.03.2017
Intervalo – Parte II
Screening
Pavilhão Branco

Publicação

Título
Textos de
Prospecto
André Guedes, William Morris, Juan Nieves, E.M. de Melo e Castro, Fiama Hasse Pais Brandão, Domingos Vaz, Richard Sennet, Nathan Jones e Peter Jones, Rui Lopes e Emília Margarida Marques, Luísa Veloso e Fernando Matos Silva