– 05.07.2020
O projecto expositivo que Catarina Botelho apresenta no Pavilhão Branco é composto por uma série fotográfica e uma projecção de filme, ambas reflexões sobre a vivência contemporânea do tempo, a condição fluída do espaço urbano, o rompimento das lógicas organizacionais que o regulam e a proposta de uma contra-narrativa que compreenda o surgimento de possibilidades de existência esquecidas e invisíveis na cidade. O seu fulcro são, então, as resistências, humanas e paisagísticas, numa cidade e num tempo obcecados com o crescimento económico.
qualquer coisa de intermédio congrega vários núcleos de imagens, que nos colocam sobretudo perante paisagens marginais, incluindo composições identificadas como povoamentos das periferias e de centros urbanos. Num primeiro grupo de fotografias destacam-se terrenos baldios que funcionam como contra-imaginário da cidade neoliberal planeada para a maximização de uma certa ideia de actividade e eficácia. São espaços imprecisos, ocupados por árvores, arbustos, canaviais, onde se deixam observar amontoados de materiais e destroços de mobiliário abandonado, colagem de múltiplas texturas e cores, acrescentadas de coberturas e muros realizados com objectos encontrados aqui e ali – construções precárias de arquitectura informal, clandestina, de crescimento improvisado e orgânico. Maioritariamente constituem planos abertos sobre a paisagem, mas por vezes existe o seu contraponto, quando apenas vemos formações de objectos, restos de ocupações, apontamentos de gestos e acções passadas, através de presenças escultóricas improváveis, em planos fechados, estreitamento da memória.
Estes não são propriamente hiatos vazios, desabitados ou desocupados – embora não surpreendamos os seus habitantes ocasionais, sabemos que são locais de vida e de encontro –, mas espaços indefinidos ou indecisos, para recuperar a expressão de Gilles Clément, quando em Manifesto da Terceira Paisagem (2004) refere estes lugares desprovidos de utilidade e função. Seriam o negativo dos espaços sociais reconhecíveis e ordenados das cidades, com funções estabelecidas e marcas identitárias reconhecidas por todos, domínio da arquitectura que os distingue e valoriza, morada das estruturas produtivas. A margem, essa, assume-se como espaço ainda não constrangido, onde certa liberdade, flexibilidade e mobilidade são condição do real que não cabe nas coordenadas que a lógica da organização e produtividade impôs a fatias contínuas da cidade, sempre que possível apagando ou diluindo qualquer percepção alternativa desta. Talvez por isso essa margem cause estranheza. Mesmo que não represente qualquer perigo real, ela é capaz de instilar desconforto e receio, pois tende a ser esse o efeito da diferença e da alteridade quando uma cidade se oficializa esquecendo parte de si mesma e da sua história, parte da sua população e das suas virtualidades. Por isso, num período caracterizado pela normatividade e pela exploração e gestão obsessiva de valores económicos, estas áreas representam a pausa possível no andamento contemporâneo da cidade, o espaço da contradição e excepção enquanto forma de resistência, projecção de possibilidades incertas, expectantes, divergentes. Aí residem a sua força crítica e o potencial do seu imaginário.
A reflexão sobre outras formas de viver a cidade manifesta-se nestas obras de Catarina Botelho tanto na atenção fotográfica que lhe merecem as construções precárias e ocupações temporárias, como na análise que o filme O tempo das coisas opera sobre a condição do sujeito contemporâneo num regime produtivista cujos valores pragmáticos e utilitaristas tentam instrumentalizar e governar todos os planos da vida humana. Uma das questões essenciais de qualquer coisa de intermédio é o horizonte da nossa existência numa organização socio-económica voltada para a produção e o crescimento: como contornar a mentalidade que domina a vida no contexto da sociedade tardo- moderna do trabalho, a qual não deixa espaço relevante a outras formas de experiência vitais para o ser humano? Nesse regime de crescente aceleração do tempo, de abundância da comunicação informativa e de exposição intensiva a estímulos, o que Catarina Botelho propõe é um filme de intensidade reflexiva, poética e política, onde o tempo sequencial das imagens e o respectivo ritmo solicitam a atenção e a disponibilidade do espectador. Nesta peça, a artista investe fortemente em conexões simbólicas que se estabelecem entre o tempo e o espaço, as imagens e a voz, situando-nos no espaço da casa ao som de relatos de experiências que desenham uma paisagem interior. Num tal quadro, a manifestação do tempo lento e improdutivo, do carácter introspectivo da observação e do pensamento e a experiência de viver aqui e agora, apresentam-se essencialmente como figuras de recusa, que nos reconduzem à dimensão sensível da experiência e das tensões psicológicas e existenciais que lhe são inerentes. Essa dimensão nunca está longe da ideia de cidade enquanto espaço de valorização e acolhimento inclusivo dos seus habitantes – e testemunho vivo dos seus esforços e dos seus sonhos.
— Sandra Vieira Jürgens, Curadora
* Por opção expressa da autora, o texto não segue o Acordo Ortográfico de 1990.
– 05.07.2020