– 17.06.2018
Nas discussões em curso sobre a natureza da cidade africana, arquitetos, planeadores urbanos, sociólogos, antropólogos e demógrafos dedicam particular atenção às formas construídas e às infraestruturas materiais da cidade. A arquitetura tornou-se uma questão central no discurso ocidental e em reflexões mais abrangentes sobre como planear, construir, sanitizar e transformar o lugar urbano e os seus espaços públicos. Espelhando esse discurso, a arquitetura começou igualmente a desempenhar um papel cada vez mais importante nas tentativas de dar conta das especificidades da paisagem urbana africana, e de imaginar novos paradigmas urbanos para a cidade africana do futuro. Muito frequentemente, estes novos futuros urbanos manifestam-se sob a forma de painéis e anúncios publicitários. Através de uma exibição estética da modernização como espetáculo, inspirada nos modelos urbanos do Dubai e de outros efervescentes centros urbanos recentes do Sul Global, estas imagens alimentam novos sonhos e esperanças, apesar de as cidades que propõem invariavelmente originarem novas geografias de exclusão, assumindo frequentemente a forma de condomínios fechados e de cidades-satélite de luxo concebidas para uma (hipotética) classe média-alta local.
Em acentuado contraste com estas recodificações neoliberais das modernidades colonialistas mais antigas, a infraestrutura atual de Kinshasa, a capital da República Democrática do Congo (RDC), apresenta uma natureza muito diferente. O património edificado colonial encontra-se amplamente degradado. O seu funcionamento é pontuado por constantes colapsos, e a cidade encontra-se repleta de fragmentos desconexos de infraestruturas, promessas, lembranças e ecos de uma modernidade anterior que continua a existir numa forma estilhaçada, sem o seu conteúdo material e conceptual original. Estes fragmentos inscrevem-se noutros ritmos históricos e temporalidades, em estratos totalmente diferentes das redes de infraestruturas e sociais. Infraestruturas materiais em declínio e uma economia da escassez delimitam fisicamente, no presente, os limites do possível na cidade, mas, simultaneamente, geram também outras possibilidades e permitem a criação de novos espaços sociais, nos quais a rutura e a exclusão são contornadas e ultrapassadas.
A exposição reflete sobre estas diversas narrativas da construção do lugar urbano, oferecendo um estudo visual de algo que desafia a narração verbal: as paisagens afetivas e os estados de espírito da cidade. Como tal, a exposição tem em conta as mudanças na forma como as cidades e os territórios são imaginados por diferentes tipos de pessoas na atual RDC.
A exploração etnográfica, fotográfica e fílmica da paisagem citadina que o artista visual Sammy Baloji e o antropólogo Filip De Boeck propõem oferece uma investigação sobre as características do «buraco». Atualmente, a noção de buraco (libulu em Lingala, a língua franca de grandes áreas do Congo) pode ser entendida como capturando plenamente a essência da qualidade material da cidade congolesa, definindo a forma genérica da infraestrutura urbana pós-colonial do Congo. De facto, a superfície da cidade congolesa encontra-se marcada por inúmeras fissuras, ao mesmo tempo que imparáveis pontos de erosão engolem constantemente o tecido urbano. De igual modo, a superfície da paisagem congolesa encontra-se desfigurada pelos buracos das minas artesanais e pelas aberturas das (frequentemente não identificadas) sepulturas. Na verdade, o conceito de «buraco» tornou-se uma espécie de meta-conceito, utilizado para refletir sobre a degradação material das infraestruturas modernistas coloniais da cidade, e para retrabalhar os fechamentos e a qualidade frequentemente sombria da vida social que sucedeu à ruína material da cidade colonial.
Sendo as solidariedades da família, das relações e da vizinhança frequentemente esticadas até ao limite, e procurando as populações, por vezes desesperadamente, uma experiência viável de vida em conjunto, os autores desta exposição tentam identificar quais são as novas formas emergentes, e como podem essas novas formas ser compreendidas. Aquilo que é então investigado são os fechamentos e as aberturas através dos quais esta vida em comum na cidade é possibilitada ou tornada impossível. Neste sentido, a exposição pode ser lida como uma tentativa de descobrir onde e como as pessoas remedeiam em conjunto as suas faltas e perdas, e suturam as irregularidades, as falhas e os buracos da cidade. A utilização do verbo suturar sugere, neste contexto, a possibilidade de fechar feridas, de gerar realinhamentos e de abrir alternativas, apontando igualmente para a irrupção espacial e temporal de novos tipos de criatividade e de novas formas de interatividade e convivialidade.
Baloji e De Boeck investigam estas falhas e suturas através de um conjunto de pontos de acupuntura urbana, ou seja, de investigações de locais específicos no interior (e muitas vezes no exterior) da cidade de Kinshasa – edifícios particulares, locais e campos de horticultura na cidade, cemitérios específicos, montanhas, fissuras, novas extensões da cidade, entre outros –, nos quais espetam a sua agulha analítica, de modo a compreender o que está a acontecer em todos estes lugares que formam nós importantes no interior da cidade, embora por vezes apenas materialmente visíveis de uma forma muito ténue. Estes locais são aqueles onde a cidade se liga e se desliga, onde movimentos e espessamentos de bens, pessoas e públicos se geram, e as várias linhas e conexões entre eles se tornam visíveis.
A Torre
Um dos marcos inaugurais da arquitetura urbana colonial belga em Leopoldville (atualmente Kinshasa) foi a torre Forescom. Construída em 1946, foi o primeiro arranha-céus da cidade, e um dos primeiros edifícios altos da África Central. Apontando para o céu, apontava igualmente para o futuro. Ao materializar e tornar tangíveis novas ideias de futuros possíveis, a torre emblematicamente traduzia, de forma material e visual, as ideologias colonialistas do progresso e da modernidade.
Atualmente, um contraste gritante com a Torre Forescom pode ser encontrado no município de Limete. Concebida e realizada pelo «Docteur», o seu proprietário e um homem que se apresenta a si próprio como «doutor em aeronáutica e em medicina espacial», esta torre ainda inacabada encontra-se em construção desde 2003, sem a participação de quaisquer arquitetos profissionais. Esta torre pós-colonial desafia o edifício Forescom de 1946 e tudo aquilo que este representava na altura, ao mesmo tempo que ilustra as várias formas através das quais a herança colonialista continua atualmente a ser reformulada e reorganizada. O vídeo apresentado nesta exposição, intitulado A Torre: Uma Utopia Concreta, oferece uma visita guiada desta notável torre pelo «Docteur».
O Edifício OCPT
O Cielux OCPT (Office Congolais de Poste et Télécommunication), coloquialmente conhecido como «o Edifício» (le Bâtiment), localiza-se no bairro de Sans Fil («Wireless» ou «Sem fios»), no populoso município de Masina, a este do centro colonial da cidade. O local do Cielux foi construído em meados dos anos 1950 como um dos muitos ramos da estação de correios principal do centro da baixa do município de Gombe. Um grande edifício modernista, em forma de L, situado num vasto recinto murado, este acolhia uma secção da rádio nacional e funcionava como uma estação de transmissão de comunicações telefónicas internacionais e de telégrafo (daí o nome do bairro, «Wireless»). Quando cumpria esta finalidade, o Edifício ligava literalmente Leopoldville (atualmente Kinshasa) ao mundo exterior, apesar de o local se situar fora da cidade na altura da sua construção. Atualmente, o Edifício é ocupado por diversas famílias, totalizando mais de 300 pessoas, cuja maior parte se encontra ainda oficialmente empregada no OCPT. Na verdade, o Ministro das Telecomunicações autorizou alguns dos seus empregados a mudarem-se para o Edifício, como um adiantamento pelos salários em atraso ou como um tipo de provisão de pensão para empregados aposentados.
O Cemitério
O cemitério de Kintambo é um dos mais antigos e maiores cemitérios de Kinshasa. Ao longo dos anos, a cidade tem progressivamente invadido o cemitério, e aglomerados de construções informais têm proliferado à sua volta. Um desses aglomerados é Camp Luka, também conhecido como «o Estado», onde os vivos e os mortos convivem em grande proximidade. Apesar de o cemitério ter sido oficialmente encerrado pelas autoridades urbanas e abandonado no final da década de 1980, os habitantes de Camp Luka e de outras áreas de Kinshasa continuam a ir lá enterrar os seus mortos.
Cité du Fleuve e os Jardins Vegetais do Lago Malebo
Desde o fim do período colonial, o sul do lago Malebo – uma expansão da parte baixa do rio Congo entre a República Democrática do Congo e a República do Congo – tem vindo a transformar-se, de forma continuada, numa vasta zona agrícola. Nos anos 1980, uma empresa agrícola da Coreia do Sul começou aí a desenvolver culturas de arroz, porém, esse projeto foi abandonado na sequência da pilhagem generalizada que atingiu Kinshasa em 1991 e 1993. Após a empresa coreana ter abandonado a zona, os habitantes locais rapidamente ocuparam os campos de arroz, começando a expandi-los, frequentemente utilizando pás ou as próprias mãos para preencher e cultivar as margens do lago. Uma grande parte deste vasto espaço agrícola terá agora de dar lugar ao desenvolvimento de uma nova cidade-satélite, a Cité du Fleuve, um desenvolvimento privado iniciado em 2008. Construída sobre duas ilhas artificiais criadas no lago Malebo, a Cité du Fleuve terá uma área de 6 km2, e incluirá mais de 200 vivendas e 10 000 apartamentos de luxo, 10 000 escritórios, uma marina, escolas, cinemas, restaurantes, e salas de conferências. Será ligada ao resto de Kinshasa através de duas pontes e de uma estrada rodoviária. Autossuficiente ao nível do abastecimento de água e de eletricidade, a Cité du Fleuve é promovida pela oferta aos potenciais compradores de um estilo de vida luxuoso e títulos de propriedade seguros.
Maquete da Cidade de Kinkole
A cidade de Kinkole é uma das últimas zonas inteiramente planeadas de Kinshasa. O plano foi parcialmente implementado no final dos anos 1960 e no início da década de 1970. Atualmente, a maquete acumula pó num corredor da câmara municipal de Nsele.
Líderes Territoriais
Líderes territoriais controlam ainda amplas extensões de terreno, particularmente nas áreas mais rurais da província de Kinshasa, a sudoeste da cidade nos distritos urbanos de Lukunga, Funa e Mont Hamba, e a este no distrito urbano de Tshangu, bem como no Bateke Plateau. Na periferia este de Kinshasa, ao longo do lago Malebo – uma expansão da parte baixa do rio Congo entre a República Democrática do Congo e a República do Congo –, importantes líderes Teke e Banfunu têm reinado sobre as mesmas vastas áreas de território que os seus antepassados controlavam quando o jornalista e explorador colonial galês Henry Stanley chegou à região e a começou a explorar, na década de 1870. Não é por acaso que estas áreas da cidade são aquelas que se encontram atualmente em expansão. Neste processo de rápido crescimento urbano, estes líderes territoriais desempenham um papel decisivo, embora a sua função administrativa muitas vezes não seja reconhecida pelas instituições estatais. É simplesmente impossível para um indivíduo, para uma empresa imobiliária ou para um investidor industrial obter uma porção de terreno sem primeiro negociar com eles.
Fungurume / Pungulume
A cidade de Fungurume situa-se na província de Katanga, entre os vastos centros mineiros de Kolwezi e Likasi. Local de origem do povo Sanga, Fungurume encontra-se rodeada por colinas e montanhas que constituem um dos maiores depósitos mundiais de cobre e de cobalto. Estes recursos minerais continuam ainda em grande parte por explorar. As populações envolveram-se sempre na exploração mineira artesanal e, na época pré-colonial, a área era um centro muito importante na rede do comércio continental do cobre. A exploração mineira de superfície industrial e de larga escala é mais recente. Em meados da década de 1990, durante os últimos anos do reinado do Presidente Mobutu Sese Seko, o grupo canadiano-sueco Lundin obteve direitos de concessão do governo para a exploração da maior parte das montanhas ao redor de Fungurume, uma área de 1500 km2, mas foi só a partir de 2006, e de uma mudança importante na estrutura acionista da empresa, que o consórcio Tenke Fungurume Mining iniciou a atividade na mina a céu aberto e instalações de processamento de minério. Entre 2009 e 2015, o consórcio explorava múltiplos depósitos ao longo da área da concessão. A empresa começou igualmente a planear a construção de uma cidade inteiramente nova, um aeroporto, campos de trabalho para os empregados, vastas unidades de processamento, e um conjunto de outras instalações industriais. A construção desta nova infraestrutura implicaria ainda a relocalização de cerca de 15 000 habitantes Sanga, incluindo o chefe Sanga, Mpala Swanage Pascal Musenge. No entanto, em maio de 2016, o consórcio Tenke Fugurume Mining mudou inesperadamente de mãos, quando a China Molybdenum adquiriu as ações do grupo americano Freeport-McMoran por 2,6 mil milhões de dólares. Neste momento, não há garantia de que a China Molybdenum vá implementar este novo projeto de infraestrutura.
– Devrim Bayar, curadora
– 17.06.2018