Galeria Quadrum, 11 de janeiro de 2020.
[Tobi Maier]
A exposição Topografias Rurais surgiu de um processo já com alguma história. A Galeria Diferença, onde decorre uma segunda parte desta exposição, celebra os seus 40 anos este ano e iniciou este processo homenageando Alberto Carneiro, cuja obra conheci durante um processo de pesquisa para a edição da revista OEI # 80-81 – The Zero Alternative: Ernesto de Sousa and some other aesthetic operators in Portuguese art and poetry from the 1960s onwards, lançada em 2018. Durante esse processo de pesquisa, conheci as obras da série Haystacks (1989-) de Lala Meredith-Vula na Documenta 14 em Kassel e, na Tate Modern, o Solemn Process (1964-2008) de Ana Lupas. Um pouco mais tarde, quando cheguei às Galerias Municipais, conheci a obra de Claire de Santa Coloma. Decidi incluir as suas obras na exposição “Topografias Rurais”. Connosco está também Catarina Rosendo, historiadora de arte, que conhece a obra da Claire de Santa Coloma há mais tempo do que eu, tendo já publicado sobre a mesma.
Claire, uma das suas primeiras exposições individuais chamava-se A escassez nos salvará da catástrofre, de 2011. No último ano você passou muito tempo na Austrália, que agora está em chamas nalgumas partes. No meu texto para o catálogo desta exposição [Topografias Rurais] escrevo sobre o Antropoceno e os fogos que destruíram a floresta na Amazónia e em Portugal. Talvez você nos pudesse dar um pouco do seu contexto, da sua experiência da Austrália, de como você vê esse país agora sofrendo, onde você passou grande parte do ano passado.
[Claire de Santa Coloma]
Sim, passei lá 3 meses e os incêndios já tinham começado. Não sei o que posso dizer, é uma sensação de fim do mundo mesmo, de um céu avermelhado, nada límpido, ter de ficar dentro de casa. Estamos sempre a falar que estamos a destruir o mundo, que o mundo vai acabar e, de repente, estás confrontado com uma realidade assim.
[Tobi]
No meu texto, também lembrei o trabalho do Frans Krajcberg, artista brasileiro que viveu no norte do Brasil, na mata, e que buscou sempre árvores que sobraram dos fogos dos fazendeiros para construir a sua obra artística. É um artista que esteve presente na 32ª Bienal de São Paulo (2016) e que também esteve presente na 14a Bienal de São Paulo, em 1977, onde o Alberto Carneiro representou Portugal, juntamente com Clara Menéres. Lembrei-me de Krajcberg quando falámos sobre o seu processo de procura de materiais para as esculturas. Existe até um guia para tal busca. Talvez você nos possa contar um pouco como chega às suas matérias-primas, ou até como você chegou a Lisboa, pois essa chegada a Lisboa também tem a ver, de alguma forma, com Carneiro.
[Claire]
Vou só voltar um instante às catástrofes, agora que falaste deste artista brasileiro. Quando eu era estudante em Paris, fazia intervenções na floresta e sobre árvores que tinham caído, porque houve uma tempestade terrível, em 1999, que devastou grandes florestas, nomeadamente a de Versailles. Quando eu estava lá, no ano de 2004, já tinham limpado a maioria das florestas mais chiques, mas ainda havia algumas que continuavam a ser cemitérios de árvores caídas. Eu trabalhei muito com estas árvores caídas. A minha relação com a madeira vem da minha experiência europeia e não da minha experiência argentina. Porque pelo menos perto de Buenos Aires, onde eu cresci, não há florestas, não se conhecem as florestas como as que existem cá. É uma coisa muito europeia, a de florestas plantadas, de fazer crescer carvalho e aquelas árvores. Há toda uma cultura ligada à madeira que não é a mesma da América Latina, onde existem mais as selvas naturais. Digo sempre que as madeiras chegam ao meu atelier de uma maneira ou de outra e acabo sempre por trabalhar as madeiras nativas de onde estou. Têm uma relação com as pessoas que vou conhecendo e o país onde vivo. Foi assim que comecei a trabalhar muito com a azinheira: tinha decidido fazer toda uma exposição em madeira e, estando em casa de um amigo no Alentejo, fui buscar lenha para a lareira e vi um tronco pequenino. Levei-o para o meu atelier para experimentar se era uma madeira fixe para trabalhar e era. E assim descobri esta madeira incrível – a madeira das minhas obras aqui é de azinheira. As pessoas geralmente não reconhecem esta madeira porque não é uma madeira industrializada, não tem uma utilização em móveis e até está protegida; só os ramos que caem ou as árvores mortas são comercializadas. É autóctone de cá, do sul de Espanha e do sul de França. Escrevi este Guia Prático Para Fazer Uma Escultura Básica Em Madeira (2014) para responder a todas as perguntas técnicas, que são as perguntas que geralmente as pessoas me fazem em relação ao meu trabalho.
[Tobi]
Numa nota mais visceral, pode-se também considerar o seu trabalho semelhante aos órgãos do corpo, como os conhecemos a partir de velas religiosas que são apresentadas durante as peregrinações a Fátima e a outros santuários, órgãos que cuidamos ou com os quais estabelecemos uma relação mais táctil. O seu processo de esculpir também foi descrito como um ato de resistência. Embora situada na área urbana, as suas rotinas diárias de trabalho fazem alusão ao fazendeiro gaúcho ou ao artesão: a prática de cinzelar, de tirar madeira, de retirar volume ao bloco, parece ser quase terapêutica, mas certamente é algo espiritual.
[Catarina Rosendo]
Posso contextualizar um pouco como foi trabalhar com a Claire durante a preparação da obra Chuva (2018), apresentada na Galeria Appleton, e que tem alguma familiaridade com aquela obra que está ali ao fundo [Sem título, 2019]. A Claire convidou-me para escrever o texto para a brochura que foi feita a partir dessa exposição. E eu tive a oportunidade de encontrar-me com a Claire por duas vezes, pelo menos, no sítio onde ela estava a realizar a escultura, a mata do Jardim Botânico de Coimbra, numa residência artística durante a qual trabalhou cento e muitos elementos de azinheira. Foi muito importante para mim ver, não exatamente a Claire a trabalhar, mas o seu local de trabalho, as ferramentas, a mesa, os milhares de lascas de madeira que faziam um tapete pelo chão fora. Conversámos muito sobre o que significava aquela peça no trabalho da Claire. Eu fiquei curiosa com o Guia Prático para fazer uma Escultura Básica em Madeira. É um texto interessante, porque nos permite aceder ao processo do trabalho, àquilo que são as convicções da Claire quando aborda a sua matéria de eleição, que tem sido sempre a madeira. A Claire fala nesse texto no fazer da escultura como um “ato de resistência” e eu gosto dessa expressão porque, para além das ferramentas e das técnicas inerentes à escultura, ela evidencia uma relação temporal entre a Claire e a escultura no momento da feitura da obra, que assenta numa coisa que ela refere também nesse texto: a memória do corpo, uma espécie de confiança inconsciente na memória do corpo para a conduzir nos gestos do talho da madeira. E esta espécie de consciência é uma coisa que é obtida também através do tempo, do deixar fazer.
[Claire]
E da experiência.
[Catarina]
De certa forma, é como se a escultura da Claire não fosse só o seu resultado final, mas fosse também relevante tentarmos perceber ou intuirmos como é que o processo de trabalho conduz a estas formas finais.
[Claire]
Ultimamente decidi assumir que sou uma artista mais intuitiva e acho que tem a ver com isso que estás a dizer. No Guia Prático Para Fazer Uma Escultura Básica de Madeira estou a falar de como usar as ferramentas, e digo que não há que ter medo, que a mão vai saber porque é que deixa cair o peso do maço em cima do cabo da goiva e não da mão que está a manter a goiva. Quanto mais violento esse gesto é, quanto mais se deixa cair e não golpear, mais há confiança nesse gesto. Faço a relação com levar o garfo à boca: nós fazemos aquele gesto de maneira muito natural e sabemos que pode ser um gesto também violento. Mas nós fazemo-lo com confiança, o nosso corpo, basicamente, confia. Esse ato só se consegue com experiência. No fundo, o que estou a tentar dizer é que há que fazer as coisas. E o ato de resistência do qual estou a falar refere-se ao ato de fazer as coisas, mesmo se as coisas demoram tempo, implicam esforço físico, paciência – todo o processo de fazer uma escultura. Voltando àquilo que tu disseste e que tem a ver com a economia, eu tento sempre retirar a menor quantidade possível de madeira, de material, e fazer uma economia ali também, tirar o mínimo e indispensável. As formas dependem dos acidentes que a própria madeira tem.
[Tobi]
Nesse sentido, tem uma semelhança com Brancusi.
[Claire]
Não sei se é semelhança. Estive a estudar e a olhar muito para a obra do Brancusi e cheguei à conclusão de que ele fez umas 12 obras na sua vida e depois fez variações dessas mesmas 12 formas (estou a dizer 12, mas talvez sejam 15 ou 8). Mas são sempre variações da mesma forma em diferentes materiais. Isto de chegar a uma coisa, a uma maneira de sintetizar uma forma – acho que a sua grande pesquisa era essa. As minhas formas parecem-se todas um pouco entre si, mas isso depende do facto de partirem todas de troncos, os quais têm todos, mais ou menos, a mesma forma original.
[Tobi]
Mas, quando você fala de tirar o mínimo das esculturas, faz-me pensar na exposição A History of the Form que você fez no Rio de Janeiro em 2012, onde essas sobras também foram expostas, certo?
[Claire]
Sim.
[Tobi]
Nesse sentido, elas também podem tornar-se obra.
[Claire]
Sim.
[Tobi]
Como é que é essa decisão, como é que essas sobras são então apresentadas?
[Claire]
A History of the Form consistia numa prateleira de 20 metros de comprimento, que dava a volta à galeria.
[Tobi]
“Containers”, contentores nesse caso.
[Claire]
Queria falar da forma, de como formar uma coisa, de como se chega àquela forma, incluindo também todas as coisas que acontecem no processo de criar uma forma. Por isso estão lá coisas que faziam parte do meu estúdio, como as lascas de madeira que eu ia classificando, pensando que um dia as ia utilizar (o que ainda faço às vezes, por cores, por tamanhos), os lápis ou cunhas que usava para manter a escultura firme enquanto estava a trabalhar. Ao mesmo tempo, naquela classificação havia esculturas feitas à mão. Naquela altura algumas eram feitas diretamente com máquinas ou restos de coisas que eu reaproveitava, exercícios de equilíbrio.
[Tobi]
Nesse sentido, também são semelhantes aos “containers” no Solemn Process (1964-2008) da Ana Lupas, que ela aproveitou para criar as suas formas, ou aqui atrás de nós o Alberto Carneiro criando cones na Operação Estética em Vilar do Paraíso (1973).
[Claire]
Penso também nesta acumulação de imagens que ele decidiu guardar: enquanto estamos a fazer uma coisa, um objeto ou uma ação, temos esta possibilidade de acumular imensa informação e material e, quer isso se mostre ou não, estamos sempre a criar.
[Catarina]
Aquilo que vou dizer é válido para esta série fotográfica que está atrás de nós, a performance do Alberto feita em torno de um feixe de vimes encontrado na paisagem em Vilar do Paraíso, que é perto de Vila Nova de Gaia (Operação estética em Vilar do Paraíso, 1973). Este conjunto de feixes já lá estava – o Alberto encontrou-os e fez uma performance em que marcou com fitas os vários feixes e realizou uma série de percursos através deles. Nesse processo, transformou aquele campo numa obra de arte. Isso traz à tona a ideia, que é muito modernista e é muito contemporânea ainda, de trazer a experiência artística para a vida de todos os dias. Corresponde a um longo processo que a arte moderna e a contemporânea fazem: o de desvincular a arte das suas codificações mais elitistas, ligadas ao sistema das Belas Artes, recuperando uma ideia mais antiga de arte, até de contornos mais primitivistas, na qual o objeto artístico era, em si mesmo, o resíduo ou o resto de uma experiência tangível da vida comum de todos os dias, muitas vezes ligado a práticas ritualísticas e a processos de cura. No caso da Claire, parece-me que tu procuras fazer objetos artísticos para que a pessoa se aproxime da obra e se relacione com ela diretamente a partir do gosto, das sensações, etc., sem essa componente mais teorizante que complexifica o discurso artístico ao mesmo tempo que o subtrai à experiência quotidiana. De alguma maneira, quando fazes uma série de obras de escultura em madeira que agregas a mobiliário (a mesas, a cadeiras, etc.) não sei se também não é trazer mais ao quotidiano e à experiência direta aquilo que é a experiência mais reificada da arte.
[Claire]
A economia – o facto de retirar a menor quantidade possível – e o significado da obra relacionam-se, não sei se diria com o pesadelo, mas com a ameaça, com o medo de não saber o que fazer antes de começar a fazer uma obra de arte. A minha escolha de retirar a menor quantidade possível de material permite-me não ter de estar a pensar no que fazer. Essa decisão é tomada pelo próprio material. Talvez ali esteja o ato de resistência em voltar à experiência estética da obra de arte: que a obra viva por ela própria sem a intelectualização dela. Estou sempre a apelar à experiência da obra e acho que o ato de resistência passa pelos dois canais: o facto de fazer o objeto à mão e o facto de o experienciarem sem aquela informação ou código ou simbologia ao seu lado.
[Tobi]
As obras muitas vezes aparecem sem título e, nesse sentido, pergunto se você se deixa também guiar pela materialidade da madeira até à forma que a obra eventualmente tomar.
[Claire]
Sim.
[Tobi]
A obra que apresentamos no pedestal (Sem título, 2017) remete para Trajecto de um corpo (1976-77), na exposição individual de Alberto Carneiro na Galeria Quadrum em 1977. Mas não só.
[Claire]
Aquela explica-se muito bem: o tronco tinha uma racha muito grande e o que eu fiz foi integrar a racha dentro da forma; depois tinha um buraco feito por um bicho e eu integrei aquele buraco. Lembro-me de uma altura, quando a estava a fazer, sentir esse medo de fazer uma escultura fálica. E nesse momento disse: “Vou lá, não interessa, este pedaço me está a pedir, esta racha, este buraco, vou fazer e pronto, que seja, não é a minha responsabilidade, estou só a seguir”.
[Catarina]
A madeira oferece-te a forma.
[Claire]
Mas no final tenho sempre um aspeto de escultura abstrata, uma forma sintética, digamos. E geralmente aí vou ao encontro de Brancusi. Este ovo, as formas assim mais cheias, são as que procuro. São mais cheias porque tenho de tirar a menor quantidade possível de madeira, e então acabam sendo formas mais ovoides. Aquele foi o início do meu caminho pela sensualidade, digamos.
[Catarina]
Às vezes, no trabalho da madeira há uma sensualidade implícita pelas próprias qualidades que a madeira tem. É uma matéria inerte, mas simultaneamente quente, tátil – consoante as superfícies são trabalhadas, ela pode ser mais apelativa ou não. Nos teus trabalhos nos últimos tempos, trabalhas as superfícies de modo a elas ficarem lisas e táteis, podendo deste modo captar melhor a luz. Eu gostava de perceber como é que funciona a tua relação com essa dimensão erótica e sensual que às vezes a tua escultura tem. Há um texto muito conhecido do Georges Bataille em que ele refere que o erotismo é aquilo que nos liga ao que está fora de nós. É essa pulsão que existe sempre e que é inerente a todos os humanos, de querer ultrapassar a distância inultrapassável que existe entre nós e as coisas e os outros. No caso do Alberto Carneiro é muito óbvia essa ligação muito sensual à matéria, porque há ali um trânsito de energias que ele gostava muito; gostava, numa forma muito imaginária e simbólica, de se fundir com a própria matéria. Qual é a relação que estabeleces com essa dimensão mais sensual e erótica?
[Claire]
No meu trabalho, namorar com o erotismo ou com a sensualidade começou com aquela peça e com a outra que depois podem ver (está ali no meu atelier). Era um tronco e eu tirei o mínimo e indispensável; acabou sendo como uma curgete enorme ou o que vocês quiserem. Fazer arte, fazer obras, é uma pulsão de vida – e uma pulsão de vida, no fundo, também é sexo. São coisas primitivas e complexas. Acho que está inerente, que há um desejo ligado à obra de arte na experiência e eu sempre estou a defender a ideia de prazer no fazer e na experiência da obra.
[Catarina]
É um ato de resistência também.
[Claire]
Nunca sei qual vai ser o resultado, nunca. Eu vou fazendo e vai acontecendo, e depois vemos o que fazemos com aquilo que eu fiz.
[Tobi]
E o espectador pode interagir com essas sensibilidades fisicamente?
[Claire]
Sim, claro. Que o espectador toque ou não toque, no fundo, é um pouco mais irrelevante; o que me interessa é que o espectador sinta, que lhe surja quase a necessidade de querer tocar. Depois se o espectador toca ou não, é com ele, mas quero conseguir suscitar aquele desejo. Interessa-me ligar o desejo com a obra.
[Tobi]
Achei interessante a analogia entre as suas obras em papel de 2009 e os desenhos a lápis do Alberto Carneiro criados no final da sua carreira, por volta de 2015. Essas árvores, esses labirintos, são pouco conhecidos. Você pensa neles como desenhos preparatórios ou são obras independentes? Como se ligam as obras em papel com as esculturas?
[Claire]
Os desenhos nasceram da crise. Quando eu estava em Madrid, durante 2 anos tive uma crise com a escultura: o facto de fazer escultura e trazer mais objetos ao mundo não tinha sentido. Os meus desenhos são um pouco como as minhas esculturas: são abstratos. O que me interessava era fazer só um ponto ou uma linha que já podiam ser um desenho. Eram desenhos um pouco meditativos, abstrações de paisagens ou árvores. Já há uns anos que não faço, mas não eram desenhos preparatórios – os meus desenhos preparatórios sempre são eu a desenhar as minhas esculturas, são desenhos mais figurativos.
[Tobi]
Enquanto os desenhos preparatórios não são considerados obra.
[Claire]
Não, ainda não.
[Tobi]
Catarina, você que acompanhou o Alberto nessa época em que ele estava produzindo uma vasta quantidade de desenhos, se lembra como foram esses momentos em que o Alberto deixou de esculpir, de trabalhar a madeira?
[Catarina]
De forma muito pragmática, nos últimos anos da vida e por causa da doença que o acometeu, o Alberto teve de deixar de esculpir. Parte desses desenhos recentes estão expostos na Galeria Diferença. O Alberto sempre desenhou e a sua primeira exposição individual, em 1967, no Porto, incluiu desenhos, tal como muitas, se não todas, as suas exposições individuais. Aqui na Galeria Quadrum, onde o Alberto expôs várias vezes nos anos 70, mostrou umas das suas séries mais interessantes de desenho. Portanto, ele produziu muito desenho, sempre autónomo da escultura. Há alguns desenhos que são projetos para fazer instalações, outros que são instruções detalhadas para algumas esculturas suas, mas de resto tratou-se sempre de um desenho independente da escultura. Eu dizia-lhe a brincar que os desenhos dele eram surrealistas, o que à primeira vista é um pouco surpreendente, mas a verdade é que o seu processo de trabalho, no desenho, era todo proveniente das entranhas. Ele foi professor de desenho na atual Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e a grande ideia subjacente à maneira como ele ensinou desenho aos futuros arquitetos era justamente essa: o desenho como algo que reflita a experiência vivida, que reflita a maneira como nós estamos no mundo e nos relacionamos com as coisas, com os espaços. Os desenhos do Alberto partem das sensações mais fugazes, dos sentimentos mais díspares, dos sabores, das cores, do que quer que seja, e transformam-se em forma. Acontece o mesmo com estes mais recentes: são desenhos que misturam vários planos e não sabemos se estamos a olhar para coisas figurativas, se estamos a olhar para árvores, para nuvens, para rochas, para relevos de horizonte, para terra, para relvinhas, para frutos. É tudo isso ao mesmo tempo.
[Tobi]
E o performativo? Ele se considerou também como um performer? Eu estava pensando mais sobre isso em relação a Operação Estética em Vilar do Paraíso (1973). Esse momento de ação está também muito presente quando visito a Claire. Nesse sentido, a exposição na Galeria Quadrum é mais sobre esses atos performáticos, movimentais, relacionais. Também na Ana Lupas, que trabalhou com comunidades, algo que não está muito explícito quando se fala das obras em si destes artistas.
[Catarina]
Tanto no caso da Claire como no caso do Alberto, a ideia de um corpo performativo que dá origem àquelas obras é muito percetível. Acho que o espectador percebe isso ou, se não percebe ou se não consegue conceptualizar esta ideia, acho que a sente.
[Claire]
Porque existe o traço da ferramenta.
[Catarina]
Eu vi as ferramentas da Claire em Coimbra, há 2 anos, e vejo as ferramentas que existem ainda hoje no atelier do Alberto. Há este lado também muito interessante de ver as ferramentas com as quais os artistas trabalham e, por mais que nós sejamos todos contemporâneos e pós-medium, persiste uma associação da escultura à criação de formas. Podemos pensar em escopos e goivas, sim, mas vamos acrescentar serras elétricas, rebarbadoras, lixas elétricas. Trabalho pesado, na verdade. Portanto, há uma performatividade do corpo, claro que sim. Eu acho que ela é sugerida nesta escultura do Alberto, as Metáforas da água ou as naus a haver por mares nunca de antes navegados (1993-1994) e teve um momento muito importante em trabalhos como a Operação Estética em Vilar do Paraíso (1973) porque, aí, é manifesta a presença de um corpo que cria a obra. Nunca ouvi o Alberto dizer que era um performer, nem acho que ele alguma vez se tenha entendido como tal. Tratava-se antes de uma relação muito física dele próprio com a matéria, que é sobretudo evidente em outras séries fotográficas dos anos 70, em que o Alberto surge nu abraçado a árvores ou submerso num ribeiro, rodeado de água e rochas.
[Claire]
E a escolha de mostrar o seu corpo na obra.
[Catarina]
Sim, o corpo faz parte da obra.
[Claire]
A sua ação. Ele está sempre a querer mostrar que há ali uma ação por parte dele.
[Catarina]
No caso do Trajecto dum corpo (1976-77), por exemplo, do qual aquela fotografia ali faz parte. A pedra que ali é mostrada está perfurada no meio pelo próprio Alberto. É um grande seixo encontrado na praia onde o Alberto ia desde a infância. Ele fez uma ação performativa com aquela pedra, percorrendo com ela várias paisagens que lhe eram caras e às quais estava ligado por várias memórias. A seguir, expôs a pedra aqui na Galeria Quadrum – aquela fotografia é a vista da exposição, que consistiu unicamente na pedra pousada no chão. Quando a exposição terminou, o Alberto percorreu mais umas quantas paisagens com a mesma pedra, até que a deixou na Serra de Fafe, metida no meio de umas grandes rochas, e ela ficou lá até desaparecer. A obra que hoje existe, e que pertence à Fundação de Serralves, é constituída por várias fotografias que registam o que acabei de descrever. A obra não é a pedra, mas o registo fotográfico e a montagem de imagens que o Alberto fez no seu atelier. Vale a pena referir uma coisa: apesar desta componente performativa das obras do Alberto, eu não diria que elas resultam de performances, porque o sentido clássico do termo implica um público, uma audiência, um “ao vivo”, um corpo a corpo, um “estou aqui com uma audiência” que reage ao que estou a fazer. Neste caso nunca houve; o que há são esta espécie de rituais de um corpo com a paisagem e com as matérias naturais.