Tobi Maier: João, queria pedir-te para começares a falar sobre a exposição e introduzir o título Eternally Collapsing Objects.
João Ferro Martins: Bom, queria dizer algumas coisas antes, para se perceber… Porque vou falar de muitas coisas diferentes, que são coisas que justaponho no meu processo de trabalho. As salas não são só sobre um assunto ou nenhuma das salas desenvolve apenas um assunto, normalmente há quase sempre uma sobreposição, um conjunto de ideias, algumas políticas, outras sociais, outras económicas, outras artísticas… São muitos layers e o título também já reflete isso, de certa forma. Este título — Eternally Collapsing Objects — vem de uma expressão que é “eternally collapsing object”, que é uma teoria que já não está a uso, portanto, que não vingou […]. Era uma teoria sobre buracos negros, que caiu por terra, entretanto já há teorias novas, mas isto era o nome de uma dessas teorias. Partes dessa teoria ainda são usadas nas novas teorias mas, como um todo, a teoria já não existe, e também me interessa essa não utilidade, um pouco como estes objetos que estão aqui ao lado, que também, de certa forma, já não têm utilidade. E isso é uma coisa que eu trabalho muito, a perda de utilidade ou a reformulação da utilidade de um certo objeto.
João Ferro Martins; Studio Eloise; Instalação site-specific; 2020. © João Ferro Martins
Então interessou-me muito esta expressão “eternally collapsing object” porque o acrónimo, ECO, também poderia remeter para uma questão ambiental. E essa questão ambiental foi precisamente um dos layers da primeira sala lá em baixo à esquerda, quando entramos, em que há uma evocação, para mim dupla, que pode remeter tanto para uma zona devastada (por uma tempestade, um furacão) como para um espaço que foi deixado à pressa, abandonado. E, no caso, interessava-me que toda esta exposição, mais uma vez reforçando a linha do meu trabalho, […] falasse sobre música e sobre som, que os discutisse — não necessariamente que fosse uma exposição sonora, mas, mais uma vez, uma exposição on music, sobre música. E ali as evocações são muitas. Obviamente que eu não quero fechar a leitura, mas pode ir desde o escritório ou a empresa que foi à falência, o estúdio de som que deixou de produzir e fechou…
Usei esse ambiente de destruição, de abandono, para depois colocar algumas obras que estão mais evidentemente expostas e ainda de pé. No fundo, funciona como uma instalação total, depois é pontuado por pequenos eventos escultóricos, e aí é mais visível o meu trabalho plástico. Há partes que se podem quase tirar daquele puzzle e formar obras individuais mas, para o caso, aqui interessava-me mais fazer uma instalação total. E o título da sala, que vem precisamente chamar esta questão climatérica, é Studio Eloise. “Eloise” foi o nome dado a uma tempestade. Eu andei a fazer uma investigação (não muito profunda, mas uma investigação) sobre como se começou a nomear as tempestades ― os nomes, quando é que se começou a dar-lhes nomes. E acabei por escolher o nome de uma tempestade de 1975, que foi nesse ano a tempestade mais forte nos Estados Unidos, na costa da Flórida, e que foi nomeada de “Eloise”. Em ’75, porquê? Fui precisamente a este ano porque, na segunda sala, existe uma réplica de um objeto que é um sintetizador analógico, que foi inventado na década de ’60 e que foi tendo vários desenvolvimentos. E a réplica que eu faço é de uma versão deste objeto — que é o Moog system 55 ―, precisamente de 1975, o mesmo ano dessa tempestade.
Só para terminar aqui esta primeira sala: é uma sala onde se pode ver com muita clareza os meus jogos formais mais típicos, a minha estrutura mental mais rígida, mais retórica e, por outro lado, também alguns rasgos de sentido de humor, um humor que é muito próprio do meu trabalho. Portanto, permite ter essa imersão quase total. Como instalação, é uma peça que tem muito que ver com a minha forma de expor que, normalmente, é mais para encher e menos para esvaziar. Mas depois eu tentei aqui também, no Pavilhão Branco, fazer o exercício contrário, que foi precisamente fazer contrapontos entre ruído e depois salas mais simples e mais vazias, mais depuradas.
Isso leva-nos aqui à sala n.º2, a segunda sala lá em baixo, que, repescando outra vez o título, Eternally Collapsing Objects, tem uma representação metafórica daquilo que poderia ser um buraco negro, aquele vidro negro a que se chamei Trapped Surface ― “trapped surface” é o nome que se dá ao interior de um buraco negro, é a superfície de captura. Tudo o que é absorvido entra naquele círculo. Completando isto, a publicação da exposição vai ser um LP, um disco de música feita por mim. Eu depois falarei mais sobre isso mas, muito rapidamente, só para dizer que um dos temas relaciona-se diretamente com este vidro. Chama-se Infinite Density, que é basicamente aquilo que acontece a um objeto quando entra nesta trapped surface: segundo esta teoria, altera a sua massa e fica com massa infinita, portanto, passa a ter densidade infinita.
João Ferro Martins; Moog System 55; Aço inox, cabos e fichas áudio; 2020 | Untitled; Fita de poliéster e moldura; 2020 | Trapped Surface; Esmalte sobre vidro; 2020. © João Ferro Martins
Eu estou aqui a brincar com as várias fases do próprio dispositivo “buraco negro”. Ao lado, temos esse objeto que é uma réplica de um sintetizador analógico. A Moog é uma marca americana, e este objecto serve para fazer música, gera ondas sonoras e depois, ligando e desligando cabos, essa onda sonora vai sendo alterada e vai criando texturas e ritmos. Este tipo de objectos foram largamente explorados no final dos anos ’60 e nos anos ’70. Estes Moog, particularmente, tornaram-se muito famosos com o trabalho de exploração sonora feito em Inglaterra pela BBC nessa época. Portanto, é engraçado que o objeto seja americano mas é na Europa que ele depois vem a ter muita utilização, por grupos de música de rock progressivo e em muita da publicidade para rádio, mais no início, e depois para televisão: por exemplo na BBC, onde começaram a usar este objeto porque era, de certa forma, uma orquestra. E como era muito dispendioso estar sempre a contratar orquestras para fazer os anúncios, a publicidade, etc., começaram a contratar a música eletrónica porque ficava muito barato fazer jingles para a rádio e para a televisão desta forma. Mas depois havia todo um submundo de experimentalismo com estas máquinas. Então, entre o jingle e a experimentação, estes artistas que eram pagos para fazer musica comercial, depois tinham tempo para experimentar e fazer música avant-garde no seu tempo livre e com o material do estúdio.
Existe mais um objeto [S/título, 2020] naquela sala, que é uma espécie de rabisco tridimensional — é um exercício de desenho que foi escolhido para equilibrar formalmente a sala. Há uma comunicação do gesto deste desenho com a disposição dos cabos áudio da outra obra. Obviamente que não é um desenho, é uma cinta plástica emoldurada, uma tira de poliéster comprimida dentro de uma moldura, mas que tem uma qualidade de desenho que me interessa e que pode remeter também para a qualidade de desenho que os cabos fazem quando saem da máquina.
Edições LP da coleção do AdA – Archiv der Avantgarden, Dresden; Múltiplos títulos; Múltiplos editores; Sala preparada com pintura mural, cortina verde e uma coleção de copos distintos. © João Ferro Martins
Subimos aqui a escada para a esquerda e chegamos então a esta sala que tem 20 de 23 discos que vão estando espalhados pela exposição. Em ambas as salas lá em baixo, já se podem ver dois discos; aqui um terceiro neste corredor; e ali estão mais vinte — portanto, acho que são 23 ao todo. Discos que vêm de uma proposta que o Tobi me fez de me relacionar com o arquivo de avant-garde de Dresden. O arquivo é muito vasto, tem muitos materiais, posters, correspondência, fotografias, etc. E também discos e outros objetos. Não é tanto um arquivo de obras de arte, mas sim de objetos que rondam a cena artística do avant-garde. E eu fui muito rapidamente direto aos discos, porque [o disco] é um item com que eu trabalho muito — eu trabalho muito com discos e particularmente com o objeto circular em vinil. E selecionei de um grupo de cerca de quinhentas obras, quinhentas e qualquer coisa… Eu não conseguia ver as imagens das capas, selecionei pelos títulos, e escolhi títulos de obras e autores com que eu de certa forma empatizo e com os quais eu podia fazer relações com esta exposição. Ora são coisas cósmicas, ora são álbuns que discutem a própria música conceptualmente e questões da música por si, ora são títulos que podem promover um certo humor, como aqui no caso do Cheap Imitation [1977] [de John Cage], que eu coloco ao pé da minha imitação de um gira-discos feita em 3D [Pioneer PL-100, 2020].
Depois foi muito bom perceber que, embora escolhendo os discos às escuras, quando comecei a ver as capas percebi que quase todos os discos eram bonitos.
Interveniente 1: Mas os discos vieram de Dresden?
JFM: Os discos vieram de Dresden, sim.
Interveniente 1: Podiam ter vindo de minha casa…
JFM: Temos de fazer uma exposição com os teus… [risos] O que acabámos por trabalhar aqui, nesta sala que eu fiz sempre em conjunto com o Tobi, foi aliar a necessidade à estética. Havia a necessidade de os discos não apanharem luz, e havia a necessidade de a sala não ficar demasiado vazia e dos discos não ficarem perdidos na parede. É um objeto pequeno, delicado, e precisávamos também de trabalhar como é que a sala ia absorver estes objetos. E, de uma sugestão do Tobi de fazer uma pintura na parede, decidimos fazê-la desta forma e, aliada à pintura, escolhi esta coleção de copos ― uma espécie de frase escultórico-melódica, que faz um remate na base da parede, de forma a tornar toda a sala um objeto e não deixar os elementos muito dispersos.
TM: O copo de vidro é um elemento recorrente na tua obra. Podes falar um pouco mais sobre isso? Ele aparece na Composição conjugal – Coda, com o piano, em 2013, também [na série] Compêndio, e depois como objeto singular na obra 90 Mulheres (2014). Aqui, eu acho que muita gente talvez associe com o som de quando se toca a borda dos vidros, mas talvez possas falar um pouco mais sobre isso?
JFM: Ontem eu fiz uma pequena visita com uns amigos e houve uma pessoa que disse imediatamente “Ah, isto é uma onda sonora! É uma wave”, e tinha um pouco que ver com isso, mas a qualidade estética de cada um daqueles copos também… Qualquer objeto tridimensional tem uma musicalidade, podemos dizer que todos os objetos têm uma musicalidade, aquela cadeira tem uma musicalidade…
TM: E tem mesmo. Quando fizemos o concerto aqui com o Mattin, em 21 de outubro de 2020, essas mesmas cadeiras foram aproveitadas como instrumento aqui dentro e, quando raspam pelo piso, ele faz um som.
JFM: Mas também falo da musicalidade como a linha do próprio objeto, quase que podemos dizer que o styling tem uma musicalidade e alguns objetos de design têm uma musicalidade, um objeto mais quadrado tem uma musicalidade e um objeto sinuoso tem outra musicalidade. E dessa forma é um compêndio também de musicalidades visuais nessa diferença ― a diferença entre cada copo, ou dos copos do princípio com os do fim. Não é à toa que alguns cocktails que são mais delicados têm um certo tipo de copo e depois, por exemplo, um vodka bebe-se num copo muito simples. Mas esta coisa dos copos vem de vários sítios. Esta coisa por exemplo do Robert Wyatt, estas músicas sobre drunkenness. E, no caso do piano, fazia uma brincadeira com o pianocktail do Boris Vian. Tanto que depois os pedais desse piano são ratoeiras, e existe sempre esta recorrência aos ratos n’A Espuma dos Dias do Boris Vian. Portanto havia uma brincadeira com o livro nessa altura. Mas depois eu fui criando uma relação com este objeto. Neste momento, já não é tanto por questões conceptuais, é mesmo por questões estéticas: é um objeto com o qual eu já me relacionei de tal forma que tem já só que ver com a presença do próprio objeto, não tem que ver com nenhuma espécie de simbologia ou narrativa.
TM: Um outro objeto que é muito recorrente é a bola.
JFM: O círculo e as bolas, sim.
TM: …que também surge em Compêndio #2, de 2010, como bola de vidro, bola de ténis, bola de ping-pong.
JFM: E depois uma noz.
TM: …e uma noz, uma walnut. E aqui na instalação, em baixo, essas pequenas bolinhas também ressurgem como elementos de brincadeira ou como um substituto para outra coisa.
JFM: Isto vem de vários sítios — o círculo, e a esfera por consequência, são formas que eu tenho trabalhado desde sempre ― e está presente aqui nestas colunas [Mute Speakers, 2020]; muita da minha obra feita precisamente com vinil parte do círculo… Isto começa com uma exploração pictórica que eu fiz ainda na universidade, que tinha que ver com o trabalho do Delaunay. Depois de entrar naquele jogo estético do Delaunay fiquei fascinado com o círculo, o círculo interrompido, o semicírculo. Interessava-me muito a dinâmica interrompida — meio-círculo é quase como algo que vai rodar e depois para! É dinâmica/antidinâmica e esta coisa de meio-dinâmico, meio-estático ― porque um meio círculo só pode rodar metade e depois vai parar. E comecei a trabalhar muito esta forma porque é uma forma muito completa, é a forma do movimento, é a forma dos planetas. Os seixos na praia vão sendo arredondados, vão sendo limados, limados, limados, e é quase como se a última fase fosse tornarem-se esferas perfeitas, de tanto rebolar e… portanto tem que ver com isso. E quando eu faço aquele pequeno despejar de objetos ali em baixo, tem que ver com uma ideia também cósmica de criar uma espécie de microcosmos, uma espécie de zoom out ao universo, ou a um pequeno universo, quase como se pudéssemos ver aquele cantinho como uma pequena via láctea, uma zona, uma coisa galáctica, espacial. Mas acima de tudo tem que ver com o dinamismo da forma. O círculo é quase tão importante simbolicamente como o fogo. Quando se descobre o fogo, o Homem começa a cozinhar e a ter uma vida mais confortável; e quando se encontra o círculo, quando se descobre o círculo, quando se percebe a forma-círculo, há uma espécie de arranque evolutivo muito grande, porque é a forma do dinamismo, da dinâmica, é a forma do fast forward. [risos]
João Ferro Martins; Mute Speakers; 2020; 77 colunas áudio; Medidas variáveis. © João Ferro Martins
TM: Um último ponto que eu queria levantar, antes de abrir para o público também, é este momento ainda mais escultórico na tua obra. Alguém me falou, na inauguração, que parecem as pedras tumulares num cemitério. Tal como as pedras tumulares, também remetem para um aspeto mudo. E são mudas mesmo, pois todas as colunas que encontraste foram abandonadas, ou apropriadas, enfim, são tiradas de circulação. É um momento de frustração que também permeia a exposição: as colunas não tocam, e o gira-discos também é uma réplica de plástico.
JFM: Lá em baixo, o pequeno auditório está derrubado…
TM: Sim, o Moog também é só apenas um modelo disfuncional. E isso também é um tema recorrente. Que te interessa nessa posição, nessa tua postura de apresentar os objetos, as esculturas, desse jeito?
JFM: Sempre foi uma coisa que aconteceu naturalmente. Aliás isso começa, ou melhor, é mais visível pela primeira vez, numas obras muito iniciais como, por exemplo, o microfone que está a gravar uma pedra, e tem a fita a gravar, e o microfone está à espera que haja uma reação daquela pedra, mas essa reação nunca vai acontecer [Soundpiece #1, 2007]. Num trabalho mais à frente, há uma cadeira e um microfone e podemos tentar falar com a pedra e tentar uma reação, e a pedra nunca vai responder [Soundpiece #3, 2009]. E depois isso tornou-se muito recorrente, o puro displacement… Como eu trabalho muito com objetos do quotidiano (eu não sou propriamente um escultor, o meu trabalho é mais de justaposição, de assemblage, não é um trabalho de modelação, é um trabalho de escolha, de configuração, e de reapresentação), o que acaba muito por acontecer, porque são objetos do quotidiano, é que eles perdem a sua função, a sua função quotidiana, e tornam-se puro usufruto estético, são só deslocados. É uma atitude que, no fundo, tem que ver com a lógica do readymade ― a deslocação do objeto do quotidiano para a galeria carrega o objeto de novos códigos e novas formas de olhar.
TM: Nesse sentido, separas o teu trabalho mais performativo em teatro ou em banda — onde as coisas são mais dinâmicas, ou vivas, ou relacionais ― e o trabalho de artista plástico, que é realmente mais colocado no momento de escultura, que é mais estático, que não está tanto em movimento.
JFM: Sim, as dinâmicas são muito diferentes. No trabalho em artes visuais, em artes plásticas, a dinâmica é muito diferente do trabalho feito com a música e com a performance, porque o trabalho final em performance e em música está a acontecer no momento em que está a ser produzido. Obviamente há ensaios e há preparações, mas o momento da apresentação é o momento da execução também. Nas artes visuais não funciona tanto assim, o momento da apresentação já é um momento pós execução. Explorando todas estas áreas, o que acaba por acontecer é que as artes visuais são sempre o sítio onde todas essas influências vêm ter o seu desaguar. Portanto a música, a performance, o teatro, todas as coisas que eu vou fazendo no exterior, e para as quais eu não tive formação académica (porque eu só tive formação académica para as artes visuais, em todas as outras áreas eu sou um experimentalista, um autodidata), depois tudo vai influenciar as artes visuais — essa experiência no exterior. Mas a minha relação com as pessoas que trabalham no meio da música, e no meio do teatro e da performance, o interesse delas em trabalhar comigo também é porque eu sou um artista visual e também levo a coisa para lá, portanto é uma contaminação. Mas é verdade que as artes visuais são mesmo uma forma de pensar, de trabalhar e de funcionar ligeiramente diferente da música e das artes cénicas.
TM: Talvez vocês ainda tenham alguns comentários, questões que gostariam de levantar, observações. Já comentaste os discos, parecem-te “vanguardistas”, as capas?
Interveniente 1: Ah sim, sim, parece-me uma escolha muito boa.
Interveniente 2: Eu pesquisei na Internet, porque pensei ― por causa de Eloise, da tempestade — numa pioneer woman in the electronic arts que se chamava Éliane Radigue…
JFM: Éliane Radigue, sim. Sim, havia muitas, precisamente a usar aquele Moog. Aliás, talvez mais mulheres do que homens. Havia muito trabalho pioneiro da eletrónica a ser feito por mulheres.
Interveniente 2: Não tem nenhuma sala de Éliane e Eloise…
JFM: Éliane e Eloise, podia ser… [risos] E aliás muito do trabalho mais interessante feito nessa altura era precisamente feito por mulheres. Assim como, por exemplo, também o theremin, que é um objeto muito high-tech, foi muito apropriado por mulheres, mais do que por homens. Não se percebe bem porquê, mas foi uma apropriação feminina, e é muito engraçado. É um objeto também muito delicado, tem uma forma de tocar que é muito coreográfica… e é inventado pelo Theremin, pois, exatamente.
TM: João, sobre o gira-discos surgiu a dúvida, em conversa, se ele foi pintado ou se ele vem assim dessa cor da impressora. Poderias falar um pouco mais sobre essa tua sugestão de escolher este plinto, que sugere uma cor, uma temperatura mais quente versus aquela impressão que é mais “ártica”?
João Ferro Martins; Pioneer PL-100; Impressão 3D e plinto de madeira; 2020 | John Cage; Cheap Imitation (1969); Edição LP, Nova Musicha, n.º 17; 1977; Coleção do AdA – Archiv der Avantgarden, Dresden. © João Ferro Martins
JFM: Eu escolhi fazer esta impressão 3D num jogo, numa brincadeira. Eu tenho vindo a fazer alguns modelos em bronze e, entretanto, começou a aborrecer-me o bronze. É uma coisa muito clássica, é super deslumbrante, é muito bonito o bronze, mas começou a ser um bocadinho retórico para mim fazer objetos em bronze, dignificar o objeto — passa-se o copo a bronze e passa a ser “Uau!”… E de repente eu pensei: qual seria o material do século XXI para fazer moldes, para fazer uma réplica? E ocorreu-me o 3D. É muito “antropocénico”, é muito o material do século XXI ― plástico derretido para fazer uma cópia. O que vemos ali é a cor original do plástico, que se pode escolher. Pode-se escolher o fio plástico que se põe na máquina e eu escolhi aquela cor, precisamente. Mas, no fundo, aquilo é uma réplica exata do objeto original, em plástico. E mais uma vez, replicando o que acontece lá em baixo [na instalação Studio Eloise, 2020] com os plintos de mármore e uma cadeira de plástico, eu queria inverter os códigos dos materiais. Portanto, o plinto é que é feito num material digno e nobre, e o objeto que está exposto é praticamente lixo, é plástico, é velho. E aqui foi uma tentativa de trabalhar também esse trejeito que tenho lá em baixo, em que o plinto é mais luxuoso que o próprio objeto que comporta, e criar este displacement, também estético, de certa forma, deste código que normalmente temos de que o plinto não existe, não é para se ver, e só serve para dignificar o objeto. Mas, no caso, o plinto é quase mais atraente visualmente do que o próprio objeto. O objeto, por ser um verde assim fluorescente, tenta combater com isso. E lá em baixo acontece o mesmo: nós só damos mais atenção à cadeira porque ela está por cima, mas depois começamos a perceber que aqueles plintos em mármore, aqueles pés em mármore, realmente criam uma disfunção com o objeto em plástico que é muito pouco luxuoso.
TM: No piso de baixo, também escolheste um plinto que está mais ligado à indústria do espetáculo.
JFM: Sim, é uma caixa que eles chamam uma crate de transporte de material de som, quando há concertos de estrada, para transporte do material, e usei-o, exatamente como plinto, para depois ter réplicas em cimento de colunas que vieram neste rol.
TM: Olhando para a instalação lá em baixo, fico sempre a pensar também em Fischli & Weiss e no Der Lauf der Dinge [“The Way Things Go” / “O percurso das coisas”] [1987], em que uma coisa toca na outra que depois coloca em movimento. É como se fosse um frozen still daquilo.
JFM: Sim, sim. O Eternally Collapsing Objects… Quando se chega à exposição e se lê o título, imediatamente olhamos para as cadeiras caídas, e parece que estou a fazer uma brincadeira literal, “Ah, o objeto está mesmo a colapsar”. Obviamente que não é sobre as cadeiras estarem caídas. Mas sim, há esse the way things go […] nesta exposição, não é? [risos] Interessa-me muito que o meu trabalho comunique com o quotidiano das pessoas, interessa-me que as pessoas reconheçam os objetos. Eu não crio propriamente uma linguagem abstrata, ou um objeto disforme ou informe, que as pessoas não reconhecem. O meu jogo é mais “tirar o tapete”, usando coisas que as pessoas conhecem, mas virando-as ao contrário, só. O que é que se há de dizer? É uma coisa “duchampiana”, pronto… Mas o que eu acho é que esse legado tem muito para explorar, não é um legado… não é um rio que secou para mim. Embora o meu trabalho tenha muito esse aspeto de um trabalho já out of time… seventies… [risos] Mas pronto, eu posso também ser curador do meu próprio trabalho, uma espécie de curador de um trabalho sem tempo. Mas eu tenho noção de que faço um trabalho “antiquado”, mas depois as linguagens e as narrativas são narrativas que são atuais e que se relacionam com a atualidade. Eu acho que, de facto, zonas de pesquisa como o Fluxus e o dadaísmo não são fontes que se esgotaram, acho que ainda há coisas a dizer sobre isso. Não é que eu ache que seja um representante dessas vagas, mas percebo que haja ligações estéticas a essas vagas, assim como se continua a pintar a óleo. As pessoas continuam a pintar a óleo, e é muito “arcaico”, não é? [risos]
TM: E então dirias que o teu trabalho tem uma certa nostalgia pelo passado?
JFM: Eu acho que isto abre aquela discussão — é uma discussão muito antiga , muitos artistas falam disto — de que os artistas estão sempre atrás da sua infância, estão sempre a tentar recuperar a sua infância e que há recorrências constantes a questões de infância. E eu acho que a minha atração por um conjunto de objetos, no caso, aqui por exemplo destas colunas, isto são objetos do meu tempo de infância. Eu não me relaciono, se calhar, com uma coluna mais moderna, eu só me consigo relacionar com estas, que são precisamente do meu tempo de infância. Eu acho que há uma constante recorrência às estéticas de quando éramos mais novos. Acho que quando somos novos criamos a nossa substância estética e, depois, passamos o resto da vida a trabalhar à volta disso. [risos] Acho que é quando somos novos que se cria o enquadramento que vamos ter depois daí para a frente, que vai ficando cada vez mais intelectualizado, mas os fundamentos estéticos…
TM: O cerne…
JFM: O cerne acho que vem de muito… Esta coisa de eu usar as bolas, esta recorrência às bolas de ténis, por exemplo, que eu tenho muito no meu trabalho, usar uma bola de ténis: havia um campo de ténis, lá em baixo, na minha casa… Eu acho que são sempre recorrências a memórias de infância, e nós queremos estar sempre perto daqueles objetos, ou daquelas referências, porque são “micro-elixires”, são “elixires”. E eu acho que todos os artistas… É difícil um artista dizer que não está sempre a recorrer ou que não recorre muito às imagéticas da infância.