Entrevista no âmbito da exposição “Espelho”

Pedro Gonçalves (Galerias Municipais); Rui Sanches

[Pedro Gonçalves]

Em diversos momentos referiu que as obras de arte são construídas pela acumulação dos contextos em que são exibidas e dos discursos que sobre elas são escritos. Acha que exposições como a presente, em que são apresentadas obras que cobrem diversos períodos da sua carreira, inclusive do seu período de estudos em Inglaterra e nos EUA, podem ser encaradas como ocasiões de fomento à reflexão sobre o seu trabalho, e deste modo favorecem pontes para perceber novos caminhos para as obras que realizará nos próximos anos?

[Rui Sanches]
Sim, claro. Eu acho que a exposição monográfica é o momento ideal para se perceber a obra de um artista. Ainda por cima, se houver uma publicação que depois pode servir de memória dessa exposição e de continuidade no tempo. Acho que deveria ser uma das grandes missões dos espaços de exposições e museus focarem-se, de forma concentrada e com espaço suficiente, na obra dos artistas para se perceber essa continuidade e essa relação entre o antigo e recente. E para os artistas é importante, porque é um momento de balanço, em que se pode ter uma visão retrospetiva. Há muitas obras aqui que eu não via há vários anos e que vou olhar para elas de uma maneira diferente, sobretudo estando em contexto com coisas de outros períodos. Neste momento é possível ter aqui uma espécie de travelling sobre a minha vida como artista, e acho que isso é fundamental para mim, e para o público em geral.

[PG]
Tornam-se simultaneamente ocasiões em que há espaço para críticas na imprensa e são escritos textos de catálogo que abordam o seu percurso artístico. Reconhece que esta produção discursiva tem algum impacto no modo como entrevê a sua obra ou na produção artística que executa posteriormente?

[RS]
Sim, acho que hoje em dia há muito menos espaço crítico na imprensa. Já lá vai o tempo em que o Expresso e o Público tinham cadernos sobre exposições. A televisão praticamente também não tem nada, a rádio idem aspas. Isto não é só um fenómeno cá, é assim em toda a parte no mundo ocidental. E, portanto, acho que isso hoje em dia tem muito menos peso. O que há é algumas pessoas ligadas à crítica ou ligadas à curadoria, que fazem parte do meio artístico, com quem os artistas podem conversar, e através desses contactos informais há uma produção de pensamento. Eu acredito muito nas redes, contextos e relações entre as pessoas. Acho que é muito importante a formação de uma comunidade, e é a partir dessa comunidade de pessoas que produzem: os artistas, críticos, teóricos, as pessoas que trabalham nos museus, que trabalham nos museus e espaços de exposição, que as coisas ganham forma. Isso para os artistas é muito importante, não trabalharmos no vazio sozinhos no atelier. É importante para mim e para todos nós, essa possibilidade de trocar ideias e estar em contacto com outras pessoas.

[PG]
O papel do curador tem assumido um maior relevo nas últimas décadas. Atualmente são raras as exposições que prescindem da sua presença. Acha que esta realidade veio alterar o modo de funcionamento de uma exposição? Como encara a presença e o trabalho do curador em relação à sua obra?

[RS]
Eu acho que sim, houve uma mudança grande nesse aspeto nos últimos tempos. O curador ganhou um protagonismo, uma importância, que não tinha. Também acho que depende. Por exemplo, no caso de uma exposição como esta, o meu trabalho com o Delfim Sardo foi importante, a presença e olhar dele foram importantes. Sobretudo, quando se tem a sorte de ter um curador que já se conhece bem, que vem acompanhando o meu trabalho ao longo dos anos e, portanto, com quem o diálogo se torna muito produtivo. Foi muito fácil todo o processo de montagem da exposição e a seleção das obras. Há um manancial de experiência dos dois… A capacidade que ele tem de organizar as obras no espaço é muito importante e o trabalho correu muito bem. Acho que há um certo exagero na importância e na presença do curador. Por vezes, há pequenas exposições em galerias de um artista e depois aparece também o nome do curador, fica assim uma coisa um bocadinho inflacionada, digamos. Ou então há uma espécie de lavar as mãos da parte até dos próprios diretores das galerias comerciais. Acho que uma pessoa que dirige uma galeria deveria ter a obrigação também de fazer um certo trabalho de curadoria, para não ser preciso uma pessoa de fora. Se calhar é uma fase que estamos a passar e depois as coisas hão de equilibrar-se. Eu não sou muito a favor de exposições em que o curador tem um lado autoral muito grande. Já tenho visto algumas exposições em que eu acho que o curador abusa desse poder autoral, e trata as obras dos artistas de uma forma displicente, até colocando-as em contextos que não são muito interessantes. Mas os artistas que se sujeitam a esse tratamento é que sabem.

[PG]
Um outro fator que diz influenciar as obras é o espaço expositivo. Acha que o Torreão Nascente da Cordoaria exerceu alguma influência sobre as obras aqui exibidas? Fê-lo percecionar alguma das obras de modo diferente ao longo da montagem e na escolha dos locais em que foram inseridas?

[RS]
Acho que sim, que este espaço é magnífico para o meu trabalho. Aliás nem tinha bem a noção de quão bom ele era, acho que é perfeito. Nunca vi o meu trabalho tão bem instalado como aqui. A relação do cimento do chão com a madeira, o branco das paredes. Este lado um bocadinho displicente, não é uma galeria muito perfeitinha, com acabamentos luxuosos. As obras acabam por ganhar um protagonismo maior do que se o espaço estivesse todo ele imaculado. Este espaço tem essa vantagem, obviamente precisa de um certo trabalho de manutenção e de recuperação. Ontem em conversa com a minha mulher, ela disse que parecia um espaço nos Estados Unidos que é o Dia: Beacon e que é um bocadinho este tipo de lógica, um espaço industrial, uma antiga fábrica transformada, e quando fomos lá tivemos essa sensação de que aquilo era o sítio ideal para ver aquele tipo de obras dos anos sessenta, setenta, minimalistas, pós-minimalistas. Quem nunca tivesse visto aquelas obras e as visse ali pela primeira vez, acho que as entenderia de facto. É completamente diferente ver aquelas obras ali ou vê-las no meio de uma exposição coletiva, ou num museu mais white cube, banal. E aqui eu tive essa sensação também, as obras têm um protagonismo e vivem muito bem, a escala do espaço é ótima, o pé direito generoso. Acho que está muito bem.

[PG]
Referiu em outras ocasiões que lhe interessa sobretudo os intervalos que encontra entre as diversas linguagens artísticas, a fluidez gramatical que aí encontra e a abertura de novas possibilidades para as obras que realiza. Contudo o seu trabalho é arrumado continuamente em categorias disciplinares, não pode esta situação constituir um paradoxo? Como encara esta remissão disciplinar do seu trabalho?

[RS]
Quando me perguntam o que faço, normalmente digo que sou artista, às vezes digo que sou escultor quando me pressionam. Mas eu sempre fiz desenho paralelamente com a escultura, fiz pintura, trabalhei com vários media. Portanto, acho que não é muito crítica essa separação, e por vezes torna-se uma discussão académica, onde é que acaba o desenho e começa a escultura. Aquelas coisas que estão lá em baixo com corda na parede[1] são desenhos com corda ou são esculturas moles!? Obviamente que nos dá muito jeito falar de pintura, e de escultura e de desenho, acharmos que sabemos do que estamos a falar. De facto, sou normalmente conhecido como escultor apesar de fazer outras coisas. Sempre fiz paralelamente desenho e escultura, sempre foram dois campos em que desde cedo trabalhei em paralelo. Ou seja, os desenhos que faço nunca são desenhos para esculturas, pelo menos aqueles que apresento publicamente, nem são desenhos de esculturas, são desenhos que têm uma autonomia como linguagem, e que são próximos do que eu estou a trabalhar em escultura, mas de uma maneira diferente. Também já tenho feito pintura. Uso, por exemplo, a fotografia, incluída no desenho. Portanto, há várias linguagens que eu vou utilizando ao longo do tempo, e a separação entre elas muitas vezes não é fácil, e acho que, se calhar, não é um tema que me interesse muito preocupar-me com isso. São assuntos que podem ser interessantes como tema de discussão teórica, mas que não são muito importantes na minha prática. Uma das características dos tempos em que vivemos, e de alguns anos para cá, é não haver fronteiras muito claras. Eu tenho a noção muito nítida de que quando estava a estudar e a fazer pintura, e quando fui para Londres, estava numa espécie de beco sem saída na minha pintura. Tive a necessidade de sair para fora do plano da pintura e começar a trabalhar com as três dimensões. Foi um processo de ir a pouco e pouco, a pintura foi encontrando o plano da tela, chegou ali, parou, e depois tive de passar para as três dimensões para continuar a trabalhar. E essa relação entre as duas dimensões e as três dimensões é uma coisa que sempre me tem interessado. Como é que a escultura se relaciona com a parede e o chão, e como é que a pintura pode sair para fora das duas dimensões, ou criar uma ilusão dessa saída. Toda essa questão, entre a ilusão e a realidade, entre o factual e o virtual ou ficcional. Estas peças são simultaneamente coisas muito factuais, bocados de madeiras, formas em contraplacado, e em que temos a noção de que estamos perante uma coisa que é muito objetal, muito factual, e ao mesmo tempo remetem-nos para outras coisas que não estão lá. É esse diálogo entre o que está lá e o que não está lá que eu acho interessante na escultura.

[PG]
Na sua tese de doutoramento, Janela, Espelho, Mapa…, defende que o ponto de vista dos artistas deve ser revalorizado. De que modo pode esse programa ser levado a cabo? Acha que a realização de entrevistas de um modo mais recorrente pode ser uma abertura na sua concretização, ou ainda estão longe de promover um reequilíbrio que permita colocar a voz do artista num patamar de uma maior visibilidade na abordagem da sua obra?

[RS]
Eu acho que sim, que há muito trabalho que pode ser feito a nível historiográfico de testemunho dos próprios artistas. Tem acontecido artistas que morrem e que depois “ah, devia-se ter feito um documentário, devia-se ter feito uma gravação, devia-se ter feito uma entrevista longa com o fulano ou sicrano”. Há imensos casos de pessoas que estão numa idade avançada e que provavelmente não há muito material que dê voz aos artistas. Isto é discutível, há todo o género de opiniões: pessoas que acham que o artista é a última pessoa que se deve ouvir, porque já fez o que tinha a fazer, depois o resto são interpretações, são exegeses. Acho que o ponto de vista do artista é importante, como uma opinião balizada sobre o assunto, mesmo que depois mais tarde possa haver opiniões, ou interpretações, que dizem que ele achava que estava a fazer “isto” mas no fundo estava a fazer outra coisa. Mas acho que deve ser dada essa voz ao artista. Há imensos artistas, ao longo dos séculos, que têm escrito sobre o seu trabalho e que têm um lado teórico importante. Temos imensos casos, Robert Smithson, Donald Judd, tanta gente que escreveu de uma forma muito autoritária, até às vezes sobre o seu trabalho. Nós não temos muito essa tradição de falar sobre o nosso trabalho. Sou professor e vejo na escola que não há a prática dos jovens estudantes falarem sobre o seu trabalho. Agora começa a ser diferente, mas é uma coisa que acho boa, mesmo em situações públicas. Há pessoas que não gostam de fazer visitas guiadas às suas exposições ou de falar sobre o seu trabalho em momentos de exposição. Eu acho que, pela minha experiência, sempre que falo com pessoas sobre o meu trabalho, vejo que ficam mais interessadas. Há uma proximidade com o trabalho que se adquire, e às vezes a arte contemporânea não é fácil. Todos sabemos que as pessoas muitas vezes têm dificuldade em entrar, têm preconceitos, e o contacto com o artista muitas vezes facilita essa ponte.

[PG]
Ao longo dos anos 80 realizou um conjunto de trabalhos que parafraseiam pinturas, abordando a composição de diversos quadros datados dos séculos XVII e XVIII. Houve um trabalho de análise das obras e de abordagens historiográficas. Atualmente, que papel deveriam ter a História e a teoria da arte no ensino artístico?

[RS]
Se alguma coisa tenho a certeza que se deve ensinar num curso de arte é História da Arte. É das poucas coisas que eu tenho a certeza… Hoje em dia, quando estamos numa situação escolar, quando se cria um curso de artes visuais, ou como se lhe queira chamar, é muito debatido o que deve ser o currículo de um curso desses. O que podemos ensinar? A arte pode-se ensinar? Pode-se ensinar a ser artista? Todas essas questões estão constantemente a ser debatidas. Acho que as pessoas têm de saber, têm de organizar uma narrativa sobre o que é que foi feito, e depois a partir de aí poderem fazer as suas escolhas, fazerem as suas opções.
Eu gosto de cursos práticos, onde as pessoas vão para lá trabalhar, têm um espaço. Talvez porque a minha formação foi nesse âmbito anglo-saxónico, onde era “mãos na massa”. Cheguei a Inglaterra e no primeiro dia de aulas disseram-me: “olha, está aqui este espaço, e agora trabalha”. Ninguém me disse o que eu tinha de fazer. Isso pode, obviamente que levado a este extremo, ser radical e, sobretudo para miúdos mais novos, às vezes é bloqueador, fica-se sem saber o que fazer. Não acho que seja assim uma coisa tão radical, mas acho que deve haver o foco do trabalho, deve ser o trabalho do aluno, e tudo o resto deve organizar-se à volta, ou seja, devia haver um processo, uma espécie de leques de opções e que se vai escolhendo em função daquilo que lhe interessa. Mas a História da Arte, acho, devia estar sempre presente ao longo do currículo.

[PG]
Regressando à presente exposição, esta intitula-se Espelho. Uma das obras iniciais que realizou aquando do seu percurso estudantil em Londres foi a obra sem título, de 1979, exposta no piso térreo da Galeria do Torreão Nascente, na qual dispõe uma série de espelhos sobre uma grelha desenhada na parede. A sua disposição conduz a uma fragmentação do espaço e do próprio corpo do espectador. Poder-se-á dizer que este trabalho surgiu pelo interesse na obra do Bruce Nauman e na arte comportamental que desenvolveu nesses anos? Ou surgiu com outro foco?

[RS]
Bruce Nauman foi uma influência importante na minha formação, mas não sei se se pode fazer uma ligação direta entre aquela peça e o trabalho do Bruce Nauman. Nauman fazia parte de uma constelação de artistas que fui descobrindo, e que me interessavam. Esta peça em particular fez parte de uma série de obras e estas coisas às vezes também têm razões muito pragmáticas. Eu tinha um atelier na escola onde estava com outras pessoas, e de repente, a escola mudou para um novo edifício e foi-me atribuído um atelier individual. O facto de eu estar ali sozinho, e poder usar o espaço todo à minha vontade, permitiu-me este tipo de obra. Ou seja, eu comecei a confrontar-me com o próprio espaço de uma forma mais direta, já não tinha um cantinho numa sala, mas tinha uma sala só para mim. Portanto, a presença da arquitetura tornou-se muito mais evidente, e apeteceu-me fazer coisas que tivessem essa ligação com a arquitetura. Por acaso é engraçado tu agora falares do Bruce Nauman. Eu lembro-me de ler textos sobre o Bruce Nauman em que ele dizia, quando saiu da escola e foi para o atelier, “agora o que é que eu vou fazer? Estou aqui e agora sou artista, o que é que agora eu vou fazer com este espaço e com o meu corpo?”. E começa a fazer uma série de coisas que têm a ver com essa situação de o que é que um artista faz num atelier: “se tudo o que um artista faz é arte, o que é que eu vou fazer agora?”. E agora rememorando, de facto foi a mesma coisa. Tinha um espaço onde eu podia estar sozinho e, portanto, “como é que vou lidar agora com este espaço?”. Obrigou-me, de certa maneira, a pensar na relação do meu corpo com a arquitetura de uma maneira diferente, que se calhar noutro espaço eu não teria podido fazer. Foi um bocadinho esse o móbil que me levou àquele trabalho.

[PG]
A referida obra, assim como três outras que datam de 1978, é a primeira vez que são apresentadas desde o período de estudos que realizou em Londres. A que se deveu nunca terem sido exibidas novamente até à presente exposição?

[RS]
La está, isto tem a ver com a curadoria, foi o Delfim Sardo que achou interessante mostrar estas obras. Para mim eram obras escolares, que eu se calhar não teria lata para as mostrar. Mas ele fez-me olhar para elas com outros olhos. Podia ser interessante perceber-se esse ponto de partida para outras coisas que eu fui fazendo ao longo do tempo. E, portanto, resolvemos mostrá-las. Existiam apenas em documentação fotográfica, e essas fotografias foram usadas no convite e no save the date. E, pronto, resolvemos refazê-las. Fiquei muito contente com essa hipótese.

[Pedro Gonçalves]
O gesto e a ação estão muito presentes no seu trabalho. São os gestos iniciais que decidem como se desenvolve o seu trabalho escultórico. O corte que executa no primeiro disco de contraplacado, presente em algumas das suas obras aqui expostas, por exemplo, dita como procederá na sobreposição dos seguintes. Acha que esse lado mais processual, que confere uma grande importância ao gesto e à ação, constitui uma das componentes mais constantes da sua obra?

[Rui Sanches]
Sim, claramente. Todo o meu trabalho está ligado ao atelier, a uma certa confusão que existe no atelier. Há coisas que acontecem sem ser premeditadas, ou seja, há todo um processo em curso. É como, por exemplo, a pessoa está à noite a escrever na secretária e depois vai-se deitar, e no dia seguinte, quando chega, a caneta ficou numa posição, o livro ficou noutra posição. Há uma organização espacial que foi criada pela ação de escrever, e na maneira como a pessoa usa o espaço, que vai ficar plasmada naquela natureza-morta que se cria, mas que não é premeditada. Tem a ver com o facto de a pessoa estar a escrever de uma determinada maneira, posicionar-se na secretária. Isso acontece também no atelier. Por vezes entro no atelier de manhã e encontro configurações de coisas que não teria premeditadamente feito, mas que ficaram. Ou seja, as obras nunca começam do zero, vêm de coisas que já foram feitas antes. Há uma espécie de máquina que está em movimento, e que me vai sugerindo coisas novas. Já me aconteceu, mudar de atelier e ter que começar do zero, é horrível… Chegar ali e começar a atirar coisas para o chão, para haver um ambiente de trabalho. Não consigo trabalhar num espaço completamente limpo e, portanto, há esse processo de trabalho. Eu sou muito regular nos meus hábitos de trabalho, vou para o atelier todos os dias, não trabalho à noite, chega as seis/sete horas voltei para casa, e tenho assim uma rotina. Mesmo que não vá para lá fazer nada, vou pelo menos umas horas, olhar para as paredes, ler, ou estar um bocado a ouvir música. E, portanto, essa rotina vai criando esses ritmos processuais no atelier. O meu trabalho vive muito disso, vive desse processo constante do dia-a-dia.

[PG]
Considerando o título da exposição, e a utilização do espelho em diversas das suas obras, que simbolismos e conotações tem o espelho no seu trabalho?

[RS]
Isso é uma conversa interminável. O espelho é tanta coisa, não é!? E não é nada. É uma superfície que não tem nada, o espelho é só o que reflete. Nós não podemos saber o que é um espelho a não ser o que lá está refletido. É uma coisa camaleónica completamente, portanto vive do contexto. Uma pessoa muda a peça para outro sítio e vai ter outro efeito completamente diferente. E, portanto, é esse lado muito sedutor de ser uma coisa que nos vai surpreender sempre. E depois tem aquela magia de inverter as imagens, de nos projetar para lá do espelho, como a Alice. Portanto, é esse mundo que fica para lá, que cria efeitos de vazio, um buraco no espaço. Podem-se fazer, e já se fizeram, livros sobre os espelhos, exposições sobre espelhos, é todo um manancial e toda a representação de espelhos na pintura, a utilização dos espelhos na pintura, nunca mais acaba. Há imensos artistas a usar espelhos e há muitas maneiras de usar o espelho. É sempre possível encontrar uma nova maneira de usar este material.

[PG]
A sua utilização inicial, como já foi referido, situa-se em trabalhos que desenvolveu enquanto estudante em Inglaterra e nos EUA. Em diversos momentos relatou e descreveu as alterações que a produção artística que encontrou nesses locais exerceram sobre o seu percurso. No entanto, como foi o regresso e começar a expor em Portugal? O trabalho que então estava a desenvolver teve uma boa receção?

[RS]
Sim, quer dizer, o meio português na altura não tinha nada que ver com o que é hoje. Eu voltei para Portugal em 1982 e o meio português era muito mais pequenino, menos artistas, menos galerias, menos espaços expositivos, menos tudo. Era fácil as pessoas conhecerem-se rapidamente. Apesar de não ter andado na Escola de Belas Artes em Lisboa, rapidamente conheci meia dúzia de pessoas através de amigos. As pessoas acabam sempre por ir ter com pessoas que têm os mesmos interesses. Foi relativamente rápido. Eu tinha estado no Ar.Co como aluno durante alguns anos. Tinha uma boa relação com as pessoas que dirigiam a escola, o Manuel Costa Cabral, a Graça Costa Cabral. Quando voltei, eles propuseram-me ir para lá dar aulas, comecei mal regressei dos Estados Unidos. E também através do Ar.Co conheci outras pessoas, que eram meus colegas como professores, ou pessoas que estavam de alguma maneira ligadas à escola. Foi uma coisa relativamente rápida. Obviamente que eu vinha de um meio muito diferente, não é?! Estados Unidos, Lisboa, Portugal. Era uma maneira de ver arte e de trabalhar que demorei algum tempo a perceber o que estava a acontecer em Lisboa. Acho que não havia muita gente a trabalhar dentro do tipo de linguagem que eu trabalhava. Esta tradição mais construtiva, mais construída, não é uma coisa que exista muito na escultura em Portugal. Se nós formos a ver os artistas mais marcantes das gerações anteriores, a nível da escultura, um Alberto Carneiro, um ngelo de Sousa, que eram pessoas para quem eu olhava antes de ir para os Estados Unidos, era um outro tipo de tradição. Mas acho que rapidamente a coisa foi integrada.

[PG]
Esses anos são também a altura que ficou associada pela historiografia ao pós-modernismo. A literatura artística, que sobre esse período tem vindo a ser escrita desde então, foca-se maioritariamente sobre um suposto regresso à pintura, e também sobre a produção fotográfica ligada à “Pictures Generation”. Acha que as práticas escultóricas foram secundadas?

[RS]
Havia muitos pontos de vista. O que eu acho que há de equívoco nessa história do pós-modernismo é tentar fazer uma narrativa muito linear, como se, de repente, no final dos anos setenta, as pessoas estivessem fartas do conceptualismo, do minimalismo, de coisas muito secas e muito intelectuais e tal, e agora vamos voltar à pintura e à escultura. É evidente que isso também é verdade, mas não quer dizer que não tenha continuado a haver outras coisas, e a maneira como isso foi feito de muitas maneiras diferentes, por muitas pessoas. Portanto, aquelas figuras que apareceram de uma forma aparentemente com mais protagonismo no início dos anos oitenta não duraram muito tempo. Temos algumas pessoas que perduraram. Sei lá, por exemplo, o [Georg] Baselitz, que é uma pessoa típica desse momento, ele regressa à escultura “mesmo”, regressa ao objeto, começa a trabalhar em madeira, depois passada a bronze. Há esse regresso à escultura e à pintura. Mas, por exemplo, figuras como o [Julian] Schnabel, ou como o Sandro Chia, que eram assim grandes ícones na altura, tornaram-se muito menos importantes. Esse lado do pós-modernismo, por um lado vale tudo, por outro lado… O personagem do artista é encarado novamente de uma forma afim do romantismo, um ser especial, ungido pelos deuses, que pode fazer o que quer. Esse foi um momento relativamente de curta duração, uma coisa com que eu nunca me identifiquei e, portanto, não me senti confortável. Quando voltei a Portugal essa maneira de estar tinha uma presença forte. Houve logo a seguir aquela exposição Depois do Modernismo [1983], na Sociedade Nacional de Belas Artes, que era muito a tentar implantar em Lisboa esse tipo de situação. Mas depois eu acho que se abriu muito. Quer dizer, Lisboa e Portugal passaram por uma situação fechada e isolada, depois um período em que a política era o centro de tudo, o PREC [Processo Revolucionário em Curso], todo aquele período pós-revolucionário. E depois no início dos anos oitenta começou de facto a abertura a outros campos, a nível da cultura e das artes. No campo das artes visuais, isso começou por estar muito centrado nessa conceção do pós-modernismo. Também na arquitetura, parecia haver uma presença forte de uma arquitetura muito baseada em fórmulas, de que o exemplo mais visível era o Tomás Taveira. E depois a coisa foi abrindo. Começou a haver uma diversidade maior de atitudes que ultrapassavam isso.

[PG]
As suas obras tridimensionais são realizadas em escalas grandes. Mesmo esculturas de pequenas dimensões são elevadas ao nível do olhar do espectador, através da sua incorporação em plintos que faz especificamente para elas. Que importância atribui ao corpo e à posição do olhar em que o espectador se situa?

[RS]
A importância é enorme. As obras de arte funcionam como uma espécie de interlocutor ou de mediador. No fundo, uma das coisas que a escultura faz, ou que eu espero que a minha escultura faça, é tornar o espectador consciente do seu corpo, da sua presença no lugar onde está, a ideia de que é um momento único e irrepetível quando está a olhar para uma determinada escultura, a maneira como a pessoa se desloca no espaço, a noção que vai tendo do ambiente arquitetónico onde está, onde a escultura também está. Portanto, há uma espécie de diálogo que se cria, quase como uma coreografia que é criada no espaço, simultaneamente para a escultura e para o corpo do espectador. Uma escultura leva o espectador a fazer determinados movimentos, a mover-se no espaço de determinada maneira. E, portanto, a tornar-se mais consciente de que a noção de espacialidade que nós temos é uma noção que se vai construindo ao longo da vida, através das referências que vamos tendo, vamos construindo um espaço mental, uma noção de espacialidade. Tornamo-nos conscientes que temos dois pés, que estamos eretos no espaço, temos dois olhos numa determinada altura, temos umas costas, uma frente, uma esquerda, uma direita. Todo o nosso corpo determina a maneira como nós entendemos o espaço, e a escultura serve também para fazer essa mediação.

[PG]
Aconteceu também utilizar vários materiais do quotidiano, como candeeiros e aquários, nas suas obras no final da década de 1980. A que se deveu o seu progressivo abandono?

[RS]
Ah, não há um abandono. Não encaro assim como um abandono tão grande. Acho que há é a utilização de coisas que já existem, que têm uma outra função normalmente. O aquário normalmente serve para pôr um peixe lá dentro, o candeeiro para haver iluminação, mas também as portas servem para passar de um espaço para outro, ou um certo tipo de materiais servem para construir armários, ou para fazer aros arquitetónicos. Quer dizer, o que há mais constante é essa utilização de coisas que têm uma função normalmente noutros campos. Quando uma pessoa olha para um tubo de PVC associa a manilhas e a tubos de descarga de esgoto e coisas desse tipo, e eu uso para outra coisa, para outra função. E isso acho que se mantém mais ou menos constante.

[PG]
Durante os últimos anos utilizou diversas vezes bronze pintado de branco de modo a parecer-se com gesso, dissimulando um material tradicionalmente considerado nobre por um de associação mais pobre. Contudo, no trabalho mais recente que aqui apresenta, Os espaços em Volta, datado do presente ano [2019], utiliza gesso. A que se deve esta mudança?

[RS]
Utilizo gesso, e utilizo bronze que não é pintado na última peça também, naquela esfera suspensa[2]. O gesso é um material que eu tenho estado a redescobrir. Eu ainda não consegui trabalhar diretamente o gesso como gostaria, é uma das coisas que quero tentar explorar mais. Aquela peça de gesso foi a partir do barro, modelei em barro e depois pedi a uma pessoa especializada para passar a gesso. Eu gosto de utilizar esse tipo de técnicas tradicionais da escultura de vez em quando. Ainda há pessoas que fazem esses trabalhos. O formador[3] é um homem com oitenta anos que ainda faz esse trabalho. Trabalhou com o Leopoldo de Almeida durante anos, é assim uma espécie de relíquia da escultura portuguesa. Ora aí está uma pessoa que devia ser entrevistada e cuja memória devia ser preservada, porque tem uma experiência incrível. Mas, eu acho que se trata de ir variando. O bronze daquela esfera é o “bronze bronze”, porque eu queria que aquela esfera tivesse um lado quase espiritual, que vinha de cima, que nós podemos associar a uma situação quase litúrgica, mas ao mesmo tempo tivesse também uma conotação mais prosaica, o fio-de-prumo do carpinteiro ou do pedreiro, o pêndulo do relógio, coisas desse tipo, o pêndulo de Foucault, tudo coisas que são mais prosaicas. Portanto, o bronze aí tem a importância que fosse bronze e que se visse que é bronze.

[PG]
Na presente exposição, as primeiras obras do piso térreo da Galeria do Torreão Nascente correspondem às obras do final dos anos 1970 e a uma que realizou especificamente para esta exposição. A sua disposição, embora permita que cada uma seja contemplada individualmente, acaba por também colocá-las em dialética. Como experiencia o arco temporal que as separa? Que diálogo pode ser mantido entre ambas?

[RS]
Eu acho que elas vivem muito bem umas com as outras. Eu acho que é aquilo que falámos no início. Essa possibilidade de ver no mesmo espaço obras feitas em períodos completamente diferentes é muito interessante para mim, e para qualquer artista acho eu, e é bom vê-las assim… É uma coisa muito evidente. Acho que esta exposição é muito clara nesse aspeto, que é esta relação entre peças de períodos diferentes, e as coisas convivem bem umas com as outras, são da mesma família, não há aqui coisas estranhas. Uma pessoa percorre a exposição, e apesar de as coisas terem sido feitas com quarenta anos de diferença não há nada que uma pessoa diga “eh, que estranho! Não parece fazer sentido aqui, o que é que isto está aqui a fazer?”, e isso é bom.

[PG]
Para finalizar, e regressando à pergunta inicial, depois de ver as suas obras com este carácter antológico, desenvolveu ideias para os próximos trabalhos?

[RS]
Isso ainda é cedo para saber. Para já ainda estou debaixo de choque de ver as coisas todas aqui, e de termos acabado a montagem ontem e ter ficado tudo pronto. Ainda estou assim num período de clímax depois deste trabalho. E agora, a pouco e pouco, logo verei se isto abre portas para outras coisas ou se é apenas uma espécie de ponto da situação e depois a vida continua como antes.

 

[1] Referência às obras Triângulo (1978), Cubo (1978) e Círculo (1978)

[2] Referência ao trabalho Sem título (Espelho)/Untitled (Mirror), 2019

[3] Venâncio Neves


Exposição

Data
Título
Artistas
Curadoria
Galeria
29.09.2019
– 12.01.2020
Espelho
Rui Sanches
Delfim Sardo
Torreão Nascente da Cordoaria Nacional