No Encalço de uma Revolução Sagrada

Leandro Nerefuh; Daniel Peres (Galerias Municipais)

Entrevista no âmbito de “Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti”, de Cecilia Eliceche & Leandro Nerefuh

 

Daniel Peres: Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti pesquisa o, chamemos-lhe assim, multiverso cultural de Abya Yala[1]. Enfoca especialmente o Haiti, onde historicamente se reiteram fortes relações entre política e espiritualidade, muito destacadas quando se aborda a revolução anticolonial e antiesclavagista de 1791–1804, tida como a primeira insurreição para uma independência abolicionista. Torna-se particularmente relevante pensar sobre os eventuais vínculos entre a resistência haitiana e cultos Vodou, incluindo as expressões artísticas que envolvem — visuais, musicais, performativas…

Tendo o contexto histórico-cultural do Haiti como pano de fundo, gostariam de comentar essas conjunções entre política, espiritualidade e arte e o modo como surgem neste vosso projeto? O que nos dizem sobre emancipações e empoderamentos que hoje urge levar a cabo?

Leandro Nerefuh: Bom dia, agradecemos muito essa oportunidade de expandir a conversa. Durante a pesquisa para o trabalho HAITI o AYITI, ficámos muito impactados com a história de Bwa Kayiman, que foi um evento múltiplo no espaço e no tempo, um misto de assembléia política, conselho de guerra, congresso de dança, cerimônia e oferendas rituais, planejado sistematicamente durante quatro anos, e levado a cabo em Agosto de 1791. Bwa Kayiman não só foi a gênese da vitoriosa revolução Haitiana, como também do Vodou Haitiano e do idioma Kreyol! Imagine a expansão de horizonte (filosófico, tecnológico, estético) que significou isso, num contexto de escravização e colonialismo como norma do mundo moderno. Até hoje, Bwa Kayiman é comemorado (revivido) todos os anos e carrega uma energia altamente afirmativa, criativa, abolicionista e inclusiva, cujo eixo central é a questão da liberdade universal como definição mesmo de humanidade. Tout Moun Se Moun. Toda gente é gente. Seja ela gente, pedra, planta, água, bicho… Humildemente, podemos dizer que nosso trabalho é uma ínfima contribuição para a manutenção desse programa ambiental que é Bwa Kayiman.

 

Vista parcial de Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti; Galeria da Boavista (Piso 1); 2022. ©Luciano Cieza

 

DP: O vetor ecológico é fundamental na vossa proposta, desde logo realçando como pontes entre natureza, religiosidade, sociedade e arte estão ancestralmente presentes em muitas das culturas que pesquisam. Vocês confrontam esses, digamos, ambientalismos primordiais com a contemporaneidade e adotam muitas vezes uma postura de protesto, bem patente no caderno publicado para distribuição gratuita nesta vossa apresentação em Lisboa. Lá delineia-se uma ordem global de dominação, assente em algo que, num texto para a revista Umbigo sobre este vosso projeto, José Pardal Pina apelidou de “os quatro cavaleiros do apocalipse moderno: as alterações climáticas; o colonialismo; o patriarcado e o capitalismo”[2].

Poderiam desenvolver um pouco a forma como o vosso projeto convida o público — cada sujeito — a sentir urgências ambientais que são também, simultaneamente, espirituais e políticas? São apelos ao pensamento por vezes bem distintos daqueles que surgem em contextos como a história, a etnologia, a antropologia… — o que destacariam dessa diferenciação?

LN: Emprestamos aqui uma reflexão da Weichafe Mapuche Moira Ivana Millan, ela diz: “em vez de pensarmos em que planeta vamos deixar para nossos filhes, devemos pensar em que filhes deixaremos para o planeta”. Esse chamado originário da Patagônia também ecoa no Vodou do Haiti, que tem como princípio “Bati moun nan pou n ka pwoteje plánet nou an”, traduzido aqui livremente “construir gente (construir bom caráter) capaz de proteger nosso planeta”. Isso diz muito sobre a diferença radical do que você chamou de ambientalismos primordiais, em comparação a crença ocidental no paradigma científico moderno. Esses ambientalismos primordiais que vibram por toda a Abya Yala (como no Vodou haitiano, por exemplo) são ao mesmo tempo ancestrais e atuais/contemporâneos. Ser humano significa construir uma relação de reciprocidade e parentesco mesmo com a terra. E a arte tem muito a ver com isso, com esse propósito de estabelecer o eterno retorno a terra. Aí está a função política, filosófica, espiritual, tecnológica, em suma, Ambiental da arte sagrada.

 

Libidiunga Commons; ALTAR AYITI e ALTAR CABOCLO [pormenor]; Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti; Galeria da Boavista (Piso 1); 2022. ©Luciano Cieza

 

DP: A cultura haitiana é também feita de migrações — fator cuja extrema relevância cultural, social, política e económica remonta ao tráfico transatlântico de escravos e à diáspora africana daí decorrente. Depois da libertação do jugo colonial, migrar manteve-se central noutros sentidos, perpassando pela modernidade, pela ditadura política e afirmando hoje a sua importância face à violenta conjuntura económica. A migração é, com efeito, um traço que o povo haitiano partilha com outros povos sujeitos aos domínios coloniais e aos marasmos geopolíticos que lhes sucederam. A escravatura e o colonialismo, impondo trânsitos forçados, suscitaram a miscigenação de culturas, muitas delas tendo em África os seus berços e que se foram misturando quer umas com as outras, quer com as culturas nativas, quer com as dos colonos. Geram-se assim realidades interculturais com sistemas de crenças, cosmologias e cosmogonias próprias, muitas vezes em sincretismo religioso. Esse manancial intercultural volta depois a ser potenciado por via de novas migrações, e assim sucessivamente. Embora muito diferentes entre si, os complexos socioculturais gerados nessa imensa mistura podem partilhar bases profundas entre si. Penso nas relações entre cultos Vodou e Candomblé, ambos abordados no vosso site haitioayiti.com (veja-se o testemunho de Egbomi Nancy de Souza em torno de Oxumarê, entre outros registos que lá encontramos), ou com outras realidades religiosas que poderíamos aqui convocar, como a Santería, por exemplo.

Gostariam de nos deixar alguns pensamentos sobre essas trocas interculturais (e intercultuais)? Que importância lhes atribuem e como se tornam presentes neste vosso projeto? Nas religiosidades e simbologias que têm investigado e vivido, que elos comuns e que diferenças destacariam nas expressões visuais, musicais, dança, objetos ritualizados, lugares sagrados, etc.?

LN: Com certeza nosso trabalho busca as conexões históricas que perpassam Abya Yala, mostrar que não se pode isolar os territórios, mesmo quando recortados e dilacerados por uma cartografia colonial-moderna, como tem sido o caso nesses últimos 500 e poucos anos (de 1492 até hoje em dia). A história não se resolve numa linearidade causal temporal, passado-presente-futuro, seja por uma via “científico-moderna” ou messiânica, dá na mesma. As cosmogonias afro-diaspóricas e indígenas de Abya Yala são diversas e extremamente específicas, ao mesmo tempo, podemos dizer que são organizadas por um entendimento muito sofisticado do tempo-espaço, das idas e vindas da história dos humanos na terra, da terra, e do universo, e da responsabilidade de cada ser frente a essa grande coletividade.

O ambiente que criámos em Lisboa tem múltiplas referências a essas conexões, a começar pelo POTO-MITAN, eixo vertical que atravessa o teto-chão e une os dois andares da galeria. É o eixo metafísico que une dimensões, as profundezas das águas (Piso 0 da galeria) com a dimensão dos invisíveis (Piso 1 da galeria). No Piso 1, temos uma mesa em L que é um duplo altar, para o Ayiti e para os Caboclos do Brasil, como uma forma de homenagear a força das populações originárias em geral. Para algumas antologias religiosas afro-brasileiras, os Caboclos são os donos originários da terra e das florestas. No Haiti, encontramos também essa referência (ou melhor, reverência) na própria escolha do nome do país. Enquanto colônia, o território era conhecido como São Domingos. Em seguida da independência, em 1804, o nome originário da ilha, AYITI, foi retomado e ressignificado como sinônimo de cidadania e liberdade universal.

 

Libidiunga Commons; POTO-MITAN (2019) e BANQUINHOS CAIÇARA (2019–22) [pormenores]; Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti; Galeria da Boavista (Piso 0); 2022. ©Luciano Cieza

 

Vista parcial de Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti; Galeria da Boavista (Piso 1); 2022. ©Luciano Cieza

 

DP: Como já foi realçado, a migração e a vida na diáspora mantêm-se prementes na atualidade de muitas pessoas e famílias haitianas. As comunidades no estrangeiro têm certamente papéis relevantes na divulgação da história e cultura do Haiti — nomeadamente a religiosidade Vodou, um dos seus traços estruturais, conduzindo inclusivamente a esclarecimentos quanto a projeções “ocidentais” que se massificaram. A comunidade haitiana e seus descendentes nos Estados Unidos da América, por exemplo, estará entre aquelas com que travamos mais facilmente conhecimento à distância — refira-se, por exemplo, a ida de La Troupe Makandal de Port-Au-Prince para Nova Iorque, onde seria dinamizada pelo mestre percussionista haitiano Frisner Augustin (1942–2012) e pelo ativo trabalho da etnomusicóloga nova-iorquina Lois Wilcken (1949) —, mas haverá muitos outros grupos pelo mundo com atividades substanciais.

Vocês mantêm relações com diversas comunidades da diáspora haitiana? Como se manifesta a importância da migração haitiana hoje em dia e como acontece em diferentes sociedades pelo mundo? O que mais permanece idêntico e o que mais se transforma, particularmente no que respeita às expressões rituais, artísticas, e às suas intersecções com a vida quotidiana?

LN: Desculpe mas não somos capazes de responder a essa questão tão complexa sobre a migração Haitiana de forma geral. No Piso 1 da Galeria da Boavista, montámos um pequeno altar para Mama Lola, no dia do aniversário de sua morte. Mama Lola foi uma Manbo (sacerdote do Vodou Haitiano) muito importante para a comunidade Haitiana de Nova Iorque e suas redes de relações na costa leste dos Estados Unidos e além. Recomendamos o seu livro, escrito em parceria com a antropóloga Karen McCarthy Brown, como um bom exemplo de atuação da diáspora Haitiana ligada ao Vodou. O livro se chama Mama Lola, a Vodou Priestess in Brooklyn.

 

 Libidiunga Commons; DANBALAH & AYIDA WEDO (2019); Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti; Galeria da Boavista (Escadas); 2022. ©Luciano Cieza

 

Altar para Mama Lola; Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti; Galeria da Boavista (Piso 1); 2022. ©Luciano Cieza

 

DP: A vossa proposta faz pensar sobre as unidades entre a arte e outras esferas da vida individual e coletiva — religiosidade, natureza, política, sociedade… No fundo, Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti coloca-nos novamente nas mãos o fundamental debate “Arte e Vida” (usando uma das fórmulas mais comuns para denominar esse campo infindável de questionamento), com especial atenção à espiritualidade e aos trilhos interculturais que foi tecendo e tece hoje.

Com os seus objetos ritualizados, os Ve-Ve (desenhos dedicados a um espírito específico, a um Iwa), as performances (oferendas de dança às entidades místicas Yene, Lanalèn, Lasiren), esta vossa iniciativa terá transformado os espaços da Galeria da Boavista e a sua vivência quase num ounfò (templo Vodou)? Nas matérias e imaterialidades desta vossa proposta, quando é que a poética se mescla definitivamente com a efetiva crença nas instâncias sobrenaturais invocadas?

LN: O ambiente que criamos na Galeria da Boavista não é um ambiente sagrado, assim como as três oferendas de dança que fizemos em maio e junho não foram cerimônias, apesar de terem sua própria carga ritualística. Tampouco são uma representação artística de algo autêntico que está separado de nós (Cecilia, Leandro, colaboradores). Com o trabalho apresentado em Lisboa, tratamos de estabelecer uma conexão energética-estética-espiritual com algumas das forças telúricas e cósmicas cultuadas no Vodou Haitiano, à nossa maneira, e ao mesmo tempo em diálogo e com a permissão de nossos mentores, o Houngan Jean-Daniel Lafontant do templo Na-Ri-véH em Port-au-Prince, e a Egbomi Nancy de Souza, pesquisadora sénior da fundação Pierre Verger em Salvador, Bahia. Aprendemos com eles sobre a dimensão sagrada da arte, arte que serve a vida em todas suas manifestações e diferenças radicais, arte que tem uma função concreta e material de alimentar as forças vitais. Aprendemos que a fé é uma coisa fundamental na criação, seja na estratégia de uma revolução abolicionista, seja numa coreografia de dança.

No nosso trabalho, a poética está intrinsecamente ligada a essa questão da fé e da função ritualística da arte. Mas não consideramos o Vodou Haitiano como uma crença no sobrenatural. Mesmo porque o sobrenatural é natural (vide a física quântica). O Vodou Haitiano é um método de construir e organizar sociedades a partir de princípios comunitários que não dependem de uma burocracia de controle estatal. Além disso, o Vodou é mesmo uma ciência, em que a “arte” tem um papel criador central.

 

Oferendas de dança; Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti; Galeria da Boavista (Entrada e Piso 0); 2022; dança (kulev yo) realizada por Cecilia Lisa Eliceche, Admila Cardoso, Emily da Silva. ©Luciano Cieza

 

DP: Muitas das peças são atribuídas a Libidiunga Commons, inclusive o caderno que acompanha o projeto.

Gostariam desenvolver aqui um pouco mais sobre esta entidade autoral?

LN: Libidiunga Commons é uma licença autoral específica que se aplica ao trabalho conjunto de Nerefuh com alguns colaboradores. Foi inspirada na Yvypora Commons, licença criada e difundida pelo poeta guarany-paraguayo Edgard Pou, dentro de um princípio anti-propriedade intelectual, que também vai além de atribuições creative commons ou copyleft, por exemplo. Libidiunga Commons é contextual, quer dizer, desenhada para cada contexto específico de circulação e difusão dos trabalhos, tendo como base comum a atribuição de fontes ancestrais, geográficas e históricas, a premissa de respeitar segredos e o sagrado, e a responsabilidade de verificar as fontes e pedir permissão aos guardiães do conhecimento. No caso do trabalho HAITI o AYITI, isso implicou trabalhar em proximidade com Egbomy Nancy de Souza e do Houngan Jean-Daniel Lafontant; compor e difundir uma narrativa autoral e anticolonial sobre o Haiti e o Vodou; colocar materiais à disposição e conversar com queira saber mais sobre o trabalho.

DP: Haiti o Ayiti apresenta-se como Ato 1 de Panamérica, lavro e dou fé!, o que faz perguntar:

Já têm mais atos em preparação? O que nos podem adiantar?

LN: Sim, ao Ato 1 – HAITI o AYITI, seguirão pelo menos o Ato 2 – THE CORE, que será sobre o interior da terra, os metais e a maldição da mineração e seu demônio — manifesto na danza diablada, e a fumaça xawara; e o Ato 3 – CRUZE DOS ANDES, EXHUMUS, que será sobre as montanhas sagradas dos Andes e seus anciões de pedra, assim como seus fosséis e cadáveres humanos. Ambos ainda estão para serem compostos, entre 2022 e 2025.

 

[1] Denominação originária do povo Kuna, indígena do atual Panamá, para nomear geografias que integram aquilo que, depois da colonização, se chama América. Significará “Terra de Sangue”, entre outras variações. Na década de 1970, o termo foi adotado ideologicamente por Takir Mamani — nome indígena de Constantino Lima Chávez (Bolívia, 1933) — para apelar à continuidade da descolonização. O nome terá chegado hoje ao estatuto de termo anticolonial para referir todo o continente e seus povos e culturas mais locais, sejam indígenas ou resultantes de processos de miscigenação.

[2] In https://umbigomagazine.com/pt/blog/2022/07/05/panamerica-lavro-e-dou-fe-ato-1-haiti-o-ayiti/ (acesso: 14/07/2022)

Exposição

Data
Título
Artistas
Curadoria
Galeria
21.05.2022
– 18.09.2022
Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti
Cecilia Lisa Eliceche e Leandro Nerefuh
Galeria da Boavista