I — Introdução
Num documento elaborado na capital baiana em 1965 (Salvador, no nordeste do território brasileiro), em três páginas datilografadas o filósofo, educador e editor português Agostinho da Silva introduz a sua ideia, de estabelecer uma nova instituição museológica numa fortaleza colonial no litoral da Bahia: “Com um material para exposição que não perturbe, mas sim enfatize o valor arquitetônico da fortaleza; com elementos de absoluta clareza didática, mas sem recusar a complexidade e o rigor da ciência, com objetos que, embora de valor intrínseco mínimo, o ganham em alto grau por sua integração no conjunto; compreenderá, o Museu do Atlântico Sul, instalado na fortaleza de São Marcelo, toda a área que vai do alto da Venezuela até à Antártida.”
Listadas na última página do documento, Agostinho aponta para todas as nações que deverão estar representadas nos espaços do futuro Museu do Atlântico Sul: “Guiné-Bissau, Senegal, Mali, Burkina Faso, Nigéria, Gana, Libéria, República da África Central, Congo, África do Sul, Benin, Costa do Marfim, Togo, Camarões, Territórios Ultramarinos Europeus, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Venezuela, Guiana, Uruguai, Argentina, Chile, Malvinas, Suriname, EUA (Antártida), União Soviética (a definir)”.
A nação brasileira, aos olhos de Agostinho, assumiria uma posição central nesse novo grupo geográfico, articulando todas as possibilidades desse museu dedicado a uma área específica do globo: “Se acrescentarmos a este breve esboço do que o museu será, está dentro do seu plano incentivar os estudos superiores na área e organizar uma política editorial de trabalhos para trazer informações sobre a área que de outra forma não obteriam apoio financeiro, se pensarmos que especialistas em economia, educação, ciência, filosofia se reunirão em torno do museu; ainda que mencionemos que este será o primeiro museu do mundo dedicado a uma área, não podemos deixar de nos sentir orgulhosos de que tal iniciativa se situe entre nós […] é nosso, e que tal oferta vem de nós aos irmãos da África e da América, e que todos nós temos o dever de contribuir, para que se possa, cada vez melhor, cada vez mais eficientemente, cumprir a sua gloriosa missão”. A missão que o museu enseja parte da negação de qualquer “interesse pelo poder”, porque o museu se sustenta na “flexibilidade de nossas normas de convivência, a nossa capacidade fraterna de entrelaçar o diverso”.
O homem que idealizou tal museu, Agostinho da Silva, chegou ao Brasil na década de 1940, fugindo do regime de Salazar em Portugal. Morou e trabalhou nos estados da Paraíba, Pernambuco e Bahia, e nas cidades de São Paulo, Florianópolis e Brasília, onde contribuiu para a fundação das universidades UFPB (Universidade Federal da Paraíba), UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e UnB (Universidade Nacional de Brasília). Em Salvador, foi o principal responsável pela fundação do Centro de Estudos Afro-Orientais, o CEAO, em 1959. Agostinho chegou à Bahia naquele mesmo ano, como participante do II Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros. Foi nessa ocasião que fez uma proposta ao reitor da Universidade da Bahia: organizar um centro de pesquisa para conexões políticas e culturais na região do Atlântico Sul.
De fato, o Museu do Atlântico Sul, como projeto, pertence a um conjunto de diferentes esforços políticos realizados por Agostinho da Silva no seu período de exílio no Brasil (1944–1969). Durante esses anos, os seus planos e posições foram guiados por uma profunda reflexão sobre a “Presença Portuguesa” (o passado e o presente da dinâmica colonial) e uma intensa especulação crítica sobre a reorganização das estruturas de poder em escala global. Tendo como contexto histórico o debate sobre os países não alinhados e as suas políticas, Agostinho faz da presença colonial portuguesa e as suas consequências o ponto de partida para investigar o que ele vislumbra ser outro processo de submissão por vir: um, no qual as nações capitalistas e socialistas no Ocidente encontrariam com o tempo um acordo, uma entente, em que novas formas de imperialismo e exploração determinariam as regras globais.
“Ele disse que a principal oposição política durante esse período (1960–61) foi ao longo de um eixo Leste-Oeste, o que gerou dois hemisférios — o que era óbvio —, mas isso teria mais ou menos uma curta duração — o que não era mais tão óbvio. Sem se iludir com as forças opostas e as tendências imperiais de ambos, afirmou que a União Soviética, os Estados Unidos e a Europa Ocidental se aproximariam cada vez mais, com as suas respetivas áreas de influência. Esse movimento provavelmente resultaria em uma entente, na qual os países mais ricos, industrializados e, em certo sentido, “brancos”, estariam unidos ou pelo menos tendo um entendimento para explorar os pobres, predominantemente agrícolas e de uma variedade de “cores”. Nesse momento, a situação viraria noventa graus e a oposição seria Norte-Sul, com os hemisférios correspondentes impondo àqueles abaixo do Novo Equador (mais do que geográfica, uma área económica e sociopolítica) a necessidade de se unir em sua própria defesa, em nome das transformações que Agostinho queria ver acontecendo no mundo.”
Os desdobramentos políticos no Brasil durante a década de 1960, e o período da Guerra Fria e os seus efeitos, impossibilitaram o progresso do Museu do Atlântico Sul; politicamente, essa nova instituição museológica tornou-se algo difícil de ser digerido; no contexto político e cultural em que foi elaborado, o museu procurava por um posicionamento radical e crítico em relação às esferas de poder e ao papel de uma instituição museológica — sob uma pretensa hierarquia de culturas e saberes.
Apesar da visão progressista proposta por Agostinho da Silva, muitas das questões levantadas no projeto do Museu do Atlântico Sul podem e devem ser problematizadas. Em todo o “documento de origem” do museu não há menção ao poder assimétrico que regula a dinâmica entre os parceiros da “área”; o discurso social e cultural elaborado por seu autor se mantém sob a forte influência do seu catolicismo; o diálogo intercultural proposto por Agostinho tem o esprit de charité como uma expectativa presente. O seu franco otimismo parece ignorar, em nome da possível conciliação de todas as diferenças, os processos históricos de exploração, violência e abuso sofridos pelos mesmos grupos aos quais agora se oferece o entrelaçamento do diverso. O que não está presente é precisamente o que não pode ser conciliado.
O programa original do Museu do Atlântico Sul nunca foi criticamente desafiado, pois, o projeto não foi jamais efetivamente materializado. Agostinho estava tentando organizar o acervo do MAS, utilizando os seus contactos com os diplomatas brasileiros para intermediar os seus pedidos de obras, e nesse período novos países foram integrados à lista original; por exemplo, o Japão, que enviou um barco de pesca para a Bahia como doação para a coleção. No entanto, todas as peças coletadas, do mesmo modo que o museu como ideia, desapareceram no tempo e em depósitos não identificados, com a crescente repressão iniciada após o golpe militar brasileiro em 1964.
De toda maneira, qualquer necessária posição crítica em relação ao programa original do museu não pode obliterar a sua poderosa missão. É justamente o seu contexto histórico que faz do Museu do Atlântico Sul uma instituição pautada por um potencial ainda a ser realizado. O Museu do Atlântico Sul anunciava, no passado, um conflito contemporâneo, informando que a ordem pós-colonial poderia se configurar num rearranjo das condições sociais, económicas e culturais ainda pautado por hierarquias raciais, sociais e políticas, apesar de todos os discursos afirmando o seu contrário.
Na progressiva posição crítica assumida pelo Museu do Atlântico Sul, o que foi antes definido como periférico precisa se tornar um centro. Assim, o Museu do Atlântico Sul deveria ser o espaço onde tal debate aconteceria, em razão de sua principal missão: ser uma instituição voltada para o futuro e os conflitos por vir.
II — Imaginando o Museu do Atlântico Sul
Desde a fundação do Centro de Estudos Afro-Orientais, o CEAO, Agostinho da Silva coloca a exposição no lugar de ferramenta necessária para materializar o seu processo de pesquisa — o que o obrigou a analisar as posições de uma instituição museológica quanto às suas missões e objetivos, tendo a exposição como um meio de transmissão. Durante o ano de 1959, a partir de Salvador, Agostinho inicia um intenso diálogo internacional por meio de cartas, solicitando livros, revistas ou documentos para apoiar o trabalho no CEAO. No arquivo daquela instituição, em carta datada de 12.09.1959, recebida da Companhia de Diamantes de Angola, o gerente da empresa comenta sobre a ideia de ter uma sala permanente no CEAO expondo o “Museu do Dundo”: um museu etnográfico criado em Angola em 1936 pela Companhia de Diamantes de Angola — uma empresa dedicada ao negócio das minas de diamantes, fundada em 1917 com investimentos portugueses, belgas, franceses e norte-americanos (Ryan-Guggenheim). “Os objetos cedidos vieram do nosso sítio em Lisboa, já que os do Museu do Dundo nunca devem sair da instituição. De todo o modo, os objetos são autênticos e do passado, e pelo menos uma vitrine poderia ser organizada”, a carta registra.
Outro momento em que a exposição está em destaque pode ser encontrado numa carta endereçada em 06.09.1959 à Embaixada da Espanha no Brasil: “Gostaria de ter todas as informações sobre os territórios espanhóis acima mencionados, e talvez também pudéssemos obter material para uma pequena exposição didática sobre o assunto […] fotografias, tabelas de produção estatística, trajes regionais, qualquer tipo de arte popular, selos, moedas, receitas culinárias, etc.”. Em 12.09.1959, escrevendo ao Cônsul do Brasil em Moçambique, Agostinho afirma: “Dedicaríamos uma sala a Moçambique. Aponto para o facto de poder ser da maior relevância numa sala deste género receitas para alguns pratos típicos de Moçambique que possam ser preparados com ingredientes brasileiros”. A ideia de um museu cresce em Agostinho. Em 1961, ele trabalha junto ao governo brasileiro para criar o que definiu como um centro cultural num navio transatlântico da Marinha do Brasil, navegando pela costa africana: um navio-escola, em formato de museu.
Nesse período, com o projeto do navio-escola-museu, ele aproxima-se da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914–1992), também presente em Salvador da Bahia no processo de implantação do Museu de Arte Moderna local. O período foi um momento muito particular na história de uma museologia progressista no Brasil. A ideia de um museu questionando o tempo presente, recusando modelos institucionais esgotados, começa a ser desenvolvida nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. O Museu do Atlântico Sul também esteve sob esse feitiço particular, como mostram os parceiros de Agostinho da Silva.
Um museu para representar o sub-representado, desafiando hierarquias culturais num processo interminável de transmissão do entrelaçamento do diverso. Imaginar o Museu do Atlântico Sul implica não ignorar a sua ambição política original. De que modo, então, essa instituição poderia tomar forma, encontrando a sua posição em correspondência com o tempo presente a partir de uma expectativa do futuro, como estabelecidos na sua origem?
Este projeto curatorial propõe materializar o Museu do Atlântico Sul (MAS) no formato de uma série de exposições. Em cada uma delas, um departamento do museu estará sendo exibido, orientando os discursos estabelecidos em cada espaço expositivo. Mesmo que os aspetos históricos do MAS estejam presentes, essas exposições não são articuladas a partir de uma perspetiva histórica. Não são exposições sobre a história do museu em si. O MAS, como um processo inacabado, deve existir de fato durante o seu período de atuação.
O Museu do Atlântico Sul abre as suas portas nas Galerias Municipais — Pavilhão Branco, em Lisboa, com o departamento do Estado do Mundo. As atividades do MAS inauguram no momento em que o bicentenário da independência do Brasil (1822) é celebrado, e sob um contexto de extrema turbulência em escala global que coloca em crise duas ordens de representação — a política e a estética. Assim, os departamentos do MAS estão organizados a partir de um entendimento geral: a luta política cria formas estéticas, que vão se desdobrando artisticamente. Essas formas persistem no tempo, sempre em processo, buscando diferentes maneiras de serem representadas ativamente.
Ao articular essas formas, o departamento do Estado do Mundo coloca o Museu do Atlântico Sul em direção a uma reflexão sobre a sua própria ausência, como o seu primeiro movimento. É preciso que o museu, no seu processo de atualização, indague sobre o novo contexto em que se encontra, observando de que modo se constituiu um aparato discursivo em nome de uma ordem pós-colonial — desde a ideia de Agostinho do Novo Equador até ao Sul como espaço político e um conceito cultural — e como problematizar esse mesmo aparato quando confrontado com:
Ambivalência: indivíduos no contexto da história da arte moderna e representantes de culturas desenvolvidas fora da narrativa da história da arte ocidental
b. O critério ideológico junto com os critérios estéticos no processo de exposição de um objeto
c. A contextualização necessária da função ideológica do objeto
d. O significado do inconsciente das práticas coletivas
e. A persistência do Ocidente como unidade unificadora
f. A construção do Sul
g. A marginalidade cultural, diversidade oculta e fluidez de identidade
h. O pós-colonial como projeto
i. O museu como espaço de sobrevivência criativa
III — O Estado do Mundo: organização do espaço
O museu como categoria ocidental parece intensamente limitado a uma série de contradições quanto à sua capacidade de articular o transcultural sem categorizações e hierarquias estáticas que definem um objeto: arte e não arte, moderno, primitivo ou contemporâneo, artístico ou etnográfico, apenas para mencionar poucos exemplos encontrados no discurso normativo do museu. Sendo a exposição o nobre instrumento para a transmissão de seu discurso, as contradições museológicas muitas vezes se materializam na forma em que a exposição é concebida: um aparato de reafirmação do canônico, tendendo a posicionar o público no lugar de observador passivo de identidades culturais estabelecidas.
O Museu do Atlântico Sul desde a sua concepção sugere ser a exposição casualmente enciclopédica, capaz de antologizar os discursos, formal e tematicamente, para alcançar uma rápida reviravolta de estilos e formas. O departamento do Estado do Mundo pretende concretizar essa perspetiva presente na origem do Museu do Atlântico Sul, orientando a exposição para um espaço mental onde as correlações entre as peças expostas (obras, arquivos ou material museológico) acontecem por conexões intermitentes, e mesmo em conflito, e as formas estéticas decorrentes da luta política são observadas como fantasmas que procuram por novas posições a serem ocupadas no tempo presente.
O artista israelense Assaf Gruber e o seu “Movement 6” podem ser um caso exemplar. No seu processo, Gruber justapõe dois momentos da história europeia: os protestos políticos em Berlim Ocidental durante as décadas de 1970 e 1980, sendo assombrados por uma figura inanimada, um precioso coral vermelho encontrado no acervo do Grünes Gewölbe, na cidade de Dresden, na Alemanha. Criada como “sala de tesouros”, Grüne Gewölbe foi imaginado por Frederico Augusto I no século XVIII para ser um museu público, exibindo o poder económico da monarquia em objetos que traduziam, por ouro, esmeraldas e outras pedras preciosas, o magnífico ambiente para o comércio entre os centros de poder europeus. Naquele museu, os corais vermelhos também representam as cabeças do Rei e da Rainha.
Essa política do objeto também pode ser vista ao longo de toda a exposição proposta pelo departamento do Estado do Mundo. Está nas esculturas da coleção Mário Teixeira (o caçador, a mãe, a figura sentada), formas alegóricas de poder e transcendência. E também pode ser encontrada nas bonecas Karajá, da Ilha do Bananal, no norte do Brasil — da coleção José Carlos Santana Pinto. Feitas pelas mãos das mulheres do povo Karajá, essas bonecas de cerâmica vêm registrando a experiência do contacto interétnico entre os Karajás e os colonizadores. É um documento sobre a resiliência.
A Ilha do Bananal está localizada na região amazônica, cercada pelo rio Araguaia. De 1967 a 1974, foi ainda o local onde a Guerrilha do Araguaia se abrigou. Organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e reunindo cerca de 60 combatentes (estudantes, trabalhadores, ativistas), a Guerrilha do Araguaia pretendia ser uma oposição armada contra a ditadura brasileira do período, mas foi eliminada pelas forças do Exército por meio de execuções à queima-roupa e tortura sistemática. A guerrilha na selva foi imaginada como um contraponto ao fracasso da guerrilha urbana nas cidades brasileiras, na estratégica batalha contra o regime. O ideólogo da guerrilha urbana, Carlos Marighella, foi assassinado pelas forças repressivas em 1969, mesmo ano em que escreve e divulga o seu “Mini-manual de Guerrilha Urbana”. Um manual traduzido na Alemanha no ano seguinte (e adotado pela Facção do Exército Vermelho, organização militante de extrema-esquerda da Alemanha Ocidental) para fomentar uma insurreição na sociedade alemã. Esta é precisamente a era de turbulência a que se refere Assaf Gruber em “Movement 6”.
Esse ritmo circular da exposição tem as suas raízes no projeto original do Museu do Atlântico Sul, que deveria ser implantado na fortaleza de São Marcelo (construída em 1623), assumindo a arquitetura circular do lugar, (pensada em nome da vigilância e da proteção). No Estado do Mundo, uma “leitura circular” se desenvolve de maneira intensiva. No entanto, as correlações no espaço expositivo não se limitam a essa possibilidade, e estão se desdobrando também em outras direções.
O artista Márcio Carvalho (com “Memória para 14 Bustos” e “12 placas”) pede uma reflexão profunda sobre as questões políticas envolvidas na ideia do monumento assumindo o papel de documento da História, questionando de que forma e por quem essa memória é representada. Em certos momentos, esse mesmo deslocamento da memória para o espaço da experiência coletiva e pessoal pode ser gravado no próprio corpo. O americano-tibetano Tenzin Phuntsog (“My Skins”) mostra o processo de mudança da pele durante a exposição prolongada ao sol. Os tibetanos evoluíram para prosperar em altitudes mais altas, vivendo mais perto do sol e dos raios UVB intensos, resultando numa rara anomalia genética chamada gene da “alta altitude”: “A minha pele absorve o sol e não queima com muita facilidade. Essa imagem de pele ‘solada’ conecta-me ao meu tio no Tibete que nunca tive a oportunidade de conhecer devido a restrições políticas para o ingresso no Tibete”, diz Tenzin.
Nas camadas geográficas das anomalias históricas, mas também no imaterial, é onde as formas estéticas desenvolvem a sua política. Nascido no período da guerra civil libanesa, o trabalho de Charbel-joseph H. Boutros traça de que maneira o contexto político molda a sensibilidade em momentos da vida quotidiana. No seu “Dead Drawing”, ele utiliza os procedimentos da Arte Conceitual histórica como uma linguagem, para traduzir uma experiência pessoal e cultural. A peça documenta uma ação que aconteceu no passado: o movimento de uma mão, o gesto invisível que anima o presente.
Essa mesma linguagem também é encontrada em “Somewhere Soon”, do artista britânico Jonathan Monk, que anuncia um futuro onde um encontro acontecerá, num momento indefinido. No entanto, para o brasileiro Tuti Minervino e a sua frase presente na exposição, a linguagem é um problema em si, e o encontro no futuro já está encerrado, com uma frase escrita em português do Brasil desafiando a sua tradução para outras línguas portuguesas. Qual seria então o significado de um mal-entendido cultural?
Juraci Dórea, da Bahia, trabalha há mais de quatro décadas no seu projeto “Terra”. Ao percorrer o interior da Bahia, Dórea recorre a uma arqueologia única em pequenas comunidades, onde as mitologias coloniais fazem parte do tecido social. Como forma de representar o vínculo entre o artista e a população local, é feita uma escultura com madeira e couro para desaparecer no tempo, sobrevivendo apenas na memória ou em documentos fotográficos tal qual o exposto no Estado do Mundo — elaborado por Dórea para a sua participação na 43a Bienal de Veneza em 1988. Maxim Malhado, também baiano, é um artista que veio de uma comunidade parecida. No início do novo século, Malhado desenvolveu um projeto artístico: uma galeria de arte no seu vilarejo, para que todos pudessem ser artistas; uma galeria imaginada por ele em três casas de madeira. Do mesmo modo que no trabalho de Charbel-joseph H. Boutros, o movimento da mão, no passado, cria uma nova possibilidade no presente.
O gesto está ainda na tapeçaria de Marcelino Santos, de Cabo Verde. Santos teve o seu aprendizado no Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design, criado em 1976 como Cooperativa de Resistência, com o objetivo de coletar, proteger e transmitir o conhecimento do artesanato na construção da identidade cultural após a independência do país. Em Cabo Verde, o algodão é uma fibra relacionada ao passado, quando os escravizados transformavam o algodão em artesanato; um saber que migrou para o Brasil devido ao tráfico de escravos. No século XIX, um grupo de mulheres negras de lá, tecelãs, comprou terras (graças ao comércio de produtos que faziam à mão) no estado de Pernambuco, no nordeste brasileiro, fundando um quilombo: Conceição das Crioulas. A forma estética realiza a sua política.
Para Jacira da Conceição, também de Cabo Verde, o quilombo brasileiro em sua experiência é Itamatatiua, no Maranhão, com 300 anos de tradição em cerâmica preservada pelas mulheres da comunidade local, onde Jacira decidiu ficar por um período, durante uma viagem pela América Latina. Jacira aprendeu as técnicas da olaria no seu país, com a comunidade de Trás di Munti, no Tarrafal. As formas escultóricas expostas no Estado do Mundo contrastam duas representações: um conjunto formado por quatro peças evoca os elementos da natureza (ar, água, terra, fogo), voltado para uma peça isolada, denominada “O Umbigo (centro) do Mundo”. Jacira sugere de que forma observar o imaterial.
Na obra da artista portuguesa Luisa Mota, o imaterial tem um sentido cósmico, nunca é neutro nos seus movimentos, porque encerra o poder, uma energia espiritual transfigurada num objeto ou num ato performativo. A série “Macumbinhas” foi desenvolvida por Luisa em 2014. As “Macumbinhas” não são representacionais, pois são objetos ativos de cura. “Uma ferramenta poderosa para curar e transmutar energia negativa em positiva”, diz Mota. As “Macumbinhas” podem dissipar os sentimentos de angústia.
No entanto, o que acontece quando a potência energética é neutralizada?
As bonecas Ashanti (Coleção José Carlos Santana Pinto) retratam o desejo por maternidade e o medo da infertilidade, e eles têm a sua própria história como objeto de desejo. O Império Ashanti foi um dos poucos Estados africanos a ter sucesso na resistência contra a colonização europeia e, entre 1823 e 1896, travou quatro guerras contra o Império Britânico, sendo derrotado apenas em 1903. Desde então, as bonecas tornaram-se um “souvenir da África”, e um fétiche etnográfico no Ocidente. O que não tinha preço torna-se um troféu cultural, e toda uma mitologia se dissipa.
O souvenir (de quê, exatamente?) é discutido pelos artistas Gisela Casimiro e ROD numa instalação (“Priceless”) que se vale de um elemento na “gramática” das instituições museológicas — a loja de presentes no museu —, para propor um comentário sobre o comércio de imagens que segue o comércio de corpos. As formas migram de um continente para outro, e o significado político embutido nelas deve ser desrecalcado para assim terem os seus sentidos e integral complexidade recuperados: uma revelação para a memória.
No momento em que o Museu do Atlântico Sul inicia as suas atividades, a instituição agradece a todos os artistas, coleções, centros de pesquisa e às Galerias Municipais de Lisboa pelo apoio ao diálogo institucional.
Museu do Atlântico Sul — MAS
Marcelo Rezende, Berlim, 25.08.2022