Num deslocamento que é tanto do olho (do visível, do que nos é dado a ver) como do olhar (do visual, de um visível ordenado pela visão humana[1]), os actos de ver parecem formar-se simultaneamente enquanto entidades biológico-orgânicas e agentes de subjectividade, sendo submetidos a um conjunto de possibilidades definidas pelos modos visuais mutáveis da cultura de cada período histórico. Trata-se daquilo que Martin Jay define por “regime escópico”[2]: o comportamento particular da percepção visual de uma sociedade, ocorrido das suas práticas e valores sociais, históricos e culturais, onde o observador é alguém que vê no âmbito de um conjunto de possibilidades domadas por um sistema de convenções.
Neste contexto, o desenvolvimento crescente dos meios tecnológicos tem originado novas formas de visibilidade que também se podem relacionar com conceitos como o antropoceno ou o tecnoceno, que referem um período terrestre em que as actividades humanas têm um impacto global no funcionamento dos ecossistemas do planeta – em que o tempo profundo geológico é corrompido pelo tempo da conveniência humana. A esta inextricável dependência entre o natural e o tecnológico, a ecologia e a economia, Jean-Luc Nancy deu a designação de eco-technology, onde as carências e representações da natureza parecem ser indivisíveis de um conjunto de condições tecnológicas. Nesta perspectiva, a tecnologia é hoje construída através da matéria-prima da natureza ao integrar materialidade mineral, rochosa e metálica nos seus dispositivos tecnológicos, ao mesmo tempo que essa mesma tecnologia esgota os recursos naturais para os seus próprios fins. A matéria geológica tornou-se assim pertinente para compreender a nossa circunstância tecnológica, mas também para visibilizar determinadas realidades e custos laborais, neocoloniais, sociais e ecológicos implícitos nestas práticas pretensamente virtuais e imateriais. Além desta questão temporal, sabemos hoje que esta imensa escala de tempo profundo da Terra se move não apenas para debaixo da terra, mas também para aquilo que está acima de nós, na medida em que a geologia e a astronomia estão relacionadas com as escalas do planetário e do extraplanetário, tanto em termos de distância espacial quanto temporal: “Telescopes are machines of time travel as of space travel; we could call them paleoscopes”[3]. Pensar portanto através do ponto de vista da Terra, e do seu tempo profundo, pode ser uma forma crítica de reflexão acerca das temporalidades fugazes e inquietantes dos tempos contemporâneos da economia e da tecnologia.
Partindo de uma outra condição dúplice, Jussi Parikka usa o termo medianatures para descrever o facto dos media contemporâneos serem formados através de material geofísico, e ao mesmo tempo, ser também através desses media que alguns dos conhecimentos e da imagética que formamos sobre a natureza se tornam perceptíveis, nomeadamente através de processos técnicos de visualização e sonificação: “while media lead to exploitation of raw-materials in order to bring them into being, they also give shape and a voice to earth”[4]. A este propósito, T. J. Demos fala de uma visualização própria do antropoceno, que é composta por uma refinada tecnologia representacional, constituída por complexos sistemas gráficos, tabelas e imagens de satélites, dado que a expansão espácio-temporal da geologia superou os próprios limites dos recursos fotográficos: “we have moved essentially beyond photography (historically and conventionally gauged to human perception) to remote sensing technology (scaled to global, even inter-planetary measurements). While visual imagery has been central, even integral to the process of conceptualizing the Anthropocene, scientific popularizes rarely evince awareness of, let alone educate their audience regarding, the use of such imagery”[5]. No entanto, o autor afirma que as imagens utilizadas no entendimento dos fenómenos de transformação ambiental carecem de transparência, na medida em que não somente auxiliam na ilustração de conceitos geológicos, como também os enquadram de modo político, apesar de serem raramente assumidos enquanto tal. Neste sentido, parece ser a cultura visual criada pelos artistas aquela que mais pode agir criticamente sobre esta situação ao “raising awareness of the impact, showing the environmental abuse and human costs, of fossil fuel’s everyday operations, mediating and encouraging a rebellious activist culture”[6].
O modo como esta circunstância tecnológica e ecológica contemporânea tem enquadrado determinados modos de visão e políticas de representação revê-se na afirmação de Amanda Boetzkes de que o antropoceno (e aqui, por apropriação, o tecnoceno) é primeiramente um fenómeno sensorial relacionado simultaneamente com a vivência e formas de visualidade, onde a arte é a forma como esta “ecological perspective is incorporated into vision and becomes a visuality. That is to say, art does not simply make ecological information and scale available to the eye, but, more forcefully, it consolidates a cultural orientation – a way of seeing”[7]. A autora denomina esta mobilização do visual de ecologicity, um conceito praticado numa constelação entre neurologia, ecologia e visualidade que tenta criar a formulação de um processo cognitivo que é encenado e elaborado através da arte. As capacidades tecnológicas dos novos media transformam-se assim numa parte integrante desta ecologicity que se inscreve, identicamente, na possível mobilização de uma nova capacidade visual. Este texto de Boetzkes convoca tanto a definição de visualidade de Whitney Davis, enquanto forma de ver moldada pela interacção com elementos da cultura visual (onde o que é visível se torna aculturado na visualidade, e a visualidade geralmente acultura o que se torna visível), como as teorias fisiologistas ligadas à ecologia visual de James J. Gibson, que podem ser definidas como a relação dos indivíduos com o ambiente que os rodeia através do seu sistema visual, isto é, a importância do sistema ocular nas interacções com o meio ambiente e na forma como os mecanismos visuais se envolvem no processamento da informação.
Neste novo paradigma tecnológico contemporâneo, as imagens parecem assim ter-se tornado formas de pensamento que, na perspectiva de Irmgard Emmelhainz, constituem um novo tipo de conhecimento fundamentado na comunicação visual e, portanto, dependente da percepção, exigindo o desenvolvimento da mente óptica, na medida em que o “Anthropocene has meant not a new image of the world, but rather a radical change in the conditions of visuality and the subsequent transformation of the world into images”[8].
– Sara Castelo Branco, 2020
[A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.]
[2] Ver: JAY, Martin. Scopic Regimes of Modernity, in FOSTER, Hal (ed.). Vision and Visuality. Seattle: Bay Press, 1988, p. 3-23.
[3] PETERS, John. The Marvelous Clouds. Toward a Philosophy of Elemental Media. Chicago: University of Chicago Press, 2015, p. 363.
[4] A Geology of Media and a New Materialism – Jussi Parikka in Conversation with Annika Richterich: http://digicults.org/files/2016/11/V.1-Parikka-Richterich_New-Materialism-interview.pdf [19/01/2020].
[5] DEMOS, T. J.. Against the Anthropocene: Visual Culture and Environment Today. Berlin: Sternberg Press, 2017, p. 14.
[6] Ibidem, p. 23.
[7] BOETZKES, Amanda. Ecologicity, Vision, and the Neurological System, in Art in the Anthropocene. Encounters Among Aesthetics, Politics, Environments and Epistemologies. Davis and Etienne Turpin (ed.). London: Open Humanities Press, 2015, p. 272.
[8] EMMELHEINZ, Irmgard. Images Do Not Show: The Desire to See in the Anthropocene, in Art in the Anthropocene. Encounters Among Aesthetics, Politics, Environments and Epistemologies. Davis and Etienne Turpin (ed.). London: Open Humanities Press, 2015, p. 131.