No final de Fevereiro de 2020, e pela 3.ª vez consecutiva, as Galerias Municipais de Lisboa participaram na feira de arte contemporânea ARCOmadrid 2020, onde apresentaram, no seu stand, a obra Lisbonne (1991), de Marc Blondeau. A fotografia a cores, parte de uma série de 8 fotografias assinadas por Blondeau, apresenta um cenário comum e habitual da cidade que o nome da mesma invoca. Uma mesa de esplanada ao sol com alguns objectos na sua superfície, como uma garrafa de uma bebida meio consumida, um copo vazio, um suporte de guardanapos e um pires com dinheiro e um recibo de pagamento, elementos que parecem indicar que esta teria estado ocupada pouco antes do registo. O que à primeira vista poderia parecer uma imagem genérica de uma esplanada de café deixa também desvelar nalguns pormenores a especificidade do que é um registo mais particular da cidade de Lisboa: o pavimento em calçada portuguesa; a nota de cem escudos com a efígie de Fernando Pessoa; e o recibo onde se entrevê o nome “Confeitaria Valbom”, um café a pouco mais de 100 metros dos jardins da Gulbenkian, e que ainda hoje se encontra no mesmo local onde, em 1991, esta fotografia foi feita, na Av. Conde de Valbom. Todos estes pontos podem passar despercebidos numa primeira observação da obra, mas são elementos que permitem perceber mais concretamente que, naquela imagem, as dimensões de tempo e espaço estão bem definidas. “Esta é uma representação arquetípica da cidade que evoca um sentimento de nostalgia relativamente a uma era passada (…)”[1]. Um claro registo, quase publicitário, de uma passagem pela capital portuguesa. Um registo deste acontecimento e um registo enquanto acontecimento.
Desprovido de qualquer aparato que pudesse fomentar um chamariz de atenção, na parede branca deste stand encontrava-se apenas essa única fotografia. Talvez, e exactamente, por confrontar o visitante com um stand tão “despido”, era perceptível que esta fotografia causava alguma estranheza nos visitantes da feira que por ali passavam. Juntamente com a fotografia encontrava-se na mesa do stand um conjunto de convites alusivos a este projecto, e também três folhas de sala que esclareciam em português, inglês e espanhol, respectivamente, que obra era aquela que ali estava exposta; respondiam também à questão sobre quem era Marc Blondeau, um colecionador e art dealer, nome que surgia na tabela identificativa da obra como sendo autor da mesma; e contextualizavam o trabalho de Philippe Thomas, artista plástico e autor original da obra presente no stand.
Philippe Thomas não é um nome mainstream no discurso artístico internacional. Elisabeth Lebovici, crítica e historiadora de arte, refere que este desconhecimento se deve maioritariamente a dois motivos: a prática artística conceptual de Thomas e a crítica que emprega aos mecanismos de formação de discurso no campo artístico europeu e norte-americano[2]. Desde o final dos anos 1970 que o seu trabalho se começou a aproximar de práticas como a crítica institucional, numa tentativa de visualização conceptual da sua rede artística e profissional enquanto meio e prática criativa contra-hegemónica. Estas questões tornaram-se mais claras quando, já nos anos 1980, Philippe Thomas começou aos poucos a fazer desaparecer o seu próprio nome e a sua identidade (Daniel Bosser, Philippe Thomas décline son identité, 1987). Através da sua agência de comunicação readymades belong to everyone®, fundada em 1987, na exposição do artista na Cable Gallery em Nova York, Thomas oferecia aos colecionadores a possibilidade de se inscreverem e fazerem parte da história de arte; de “se tornarem grandes artistas sem terem de passar pela dor, desgosto e pobreza” (“become great artists without the pain, anguish and poverty”). Este processo dava-se através da aquisição e simultânea assinatura de uma obra do artista por parte de um colecionador, ou seja, Thomas cedia a autoria do seu trabalho a colecionadores que lhe compravam as suas obras, substituindo o seu nome pelos nomes destes nas obras que adquiriam. Os colecionadores passavam não só a ser detentores das obras de Philippe Thomas a partir do momento em que as compravam, como também passavam a ser os autores das mesmas. Assim, nas obras de Thomas, o nome que surge no lugar da autoria é raramente o seu, tendo este dado lugar a outros tantos que agora surgem nas tabelas identificativas e nos registos e bases de dados de museus e colecções.
No meio do grande boom do mercado da arte, do surgimento em força das medidas e políticas económicas neoliberais e da restruturação do universo museológico e institucional, o acto de desaparecimento de Philippe Thomas fez frente aos processos de historicização e aos modelos através dos quais a História se escreve e desenvolve, apagando o seu nome do discurso e do meio artístico. Thomas apontou a forma como o objecto artístico, a crítica aos modelos institucionais, e a persona artística confluíam de forma antagónica e, através da agência criada pelo artista e do processo de (des)construção da sua identidade, evidenciou e questionou o próprio modelo e sistema artístico, expondo os enredos paradoxais da arte, da autoria, da produção, do mercado e do capital.
Voltando de novo ao convite que se encontrava no stand das Galerias Municipais, juntamente com uma única obra apresentada, pode ler-se na última linha a frase: “Organizado em colaboração com Claire Burrus, Paris; Jan Mot, Bruxelas; MAMCO, Genebra; e Ricardo Valentim”. Importa talvez esclarecer estes nomes, começando por Claire Burrus, antiga galerista e executora testamentária de Philippe Thomas, que se dedica a essa tarefa desde o encerramento de sua galeria em 1998. Desde 2013, Claire Burrus colabora na representação do artista em conjunto com Jan Mot, galerista e actual representante da obra de Philippe Thomas e da sua agência readymades belong to everyone®. Na tabela identificativa da fotografia exposta era possível também perceber que a referência ao MAMCO Genève (Museu de Arte Contemporânea de Genebra) no convite e na folha de sala se prendia com o facto de ser este o museu e a colecção onde a obra se encontra depositada. Por último, a referência a Ricardo Valentim, o artista convidado pelas Galerias Municipais a desenvolver e apresentar o projecto do stand das mesmas na ARCOmadrid 2020. À semelhança de Philippe Thomas, que desapareceu do seu próprio trabalho, por trás do nome dos coleccionadores que adquiriram as suas obras, Ricardo Valentim parece estar também “desaparecido” deste projecto. Aquilo que pode à primeira vista parecer uma apresentação singela de uma fotografia de uma esplanada de Lisboa revela o enredo e o aparato em que Ricardo Valentim toma parte.
A convite de Tobi Maier, Ricardo Valentim propôs apresentar esta obra como “representação” das Galerias Municipais de Lisboa, e por sua vez, pelo que nela está retratado, como “representação” da cidade de Lisboa em Madrid. Lisbonne (1991), obra de Philippe Thomas, foi comprada por Marc Blondeau, e consequentemente passou a ser da sua autoria, através do modelo implementado pela agência readymades belong to everyone®. Mais tarde, Blondeau depositou a obra no MAMCO Genève, museu no qual esta faz agora parte da coleção. Com Lisbonne (1991) de Marc Blondeau, Ricardo Valentim decide apresentar uma obra que é da autoria de um coleccionador, da qual o autor original parece estar ausente e alienado (não fosse a representação de Fernando Pessoa na nota de 100 escudos, a invocar a heteronímia do poeta, que se sabe ter sido base de inspiração para o trabalho de Thomas); obra essa que faz parte da coleção de um museu e como tal a sua apresentação numa feira de arte é de algum modo antagónica, uma vez que se espera que um obra inserida neste contexto seja comercializável. Aquilo que é apresentado neste projecto por Ricardo Valentim é o registo de todo este enredo e aparato, cunhado no tempo de exposição na feira e através dos materiais gráficos, nomeadamente, o convite (ephemera) desenhado pelo artista.
Poucas semanas depois da feira ARCOmadrid 2020 ter terminado, o espaço do IFEMA que dá lugar à mesma foi transformado num mega-hospital de campanha, uma instalação massiva de cerca de 5.000 camas distribuídas pelos 35 mil metros quadrados dos pavilhões multiusos. As paredes e divisões que definiam os stands da feira davam então lugar a um espaço amplo e agora despido, que viria a acolher pacientes infectados com o novo coronavírus (SARS-CoV-2), os quais não podiam ter assistência nos hospitais da capital espanhola que se encontravam sobrecarregados e sobrelotados, e que estavam sem conseguir dar resposta à crescente rapidez do contágio deste vírus e das suas consequências em termos sanitários e sociais. A imagem deste hospital temporário instalado nos pavilhões vazios traz à luz a dimensão do impacto da pandemia — pandemia que, enquanto estado de subversão da “normalidade”, traz por sua vez à luz a agudização das discrepâncias no domínio social.
Este mesmo vírus, e pela sua dimensão pandémica, revela e evidencia as desigualdades sociais e económicas já presentes nos modelos do estado de “normalidade”, desigualdades essas que, num estado de emergência global como aquele que temos estado a atravessar, continuarão a descriminar, aliadas e através dos poderes entrelaçados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo.[3]
Antonin Artaud, na sua obra Le Theatre et son Double (1938) aponta algumas relações entre o teatro e a praga, que lidas no contexto das actuais circunstâncias pandémicas, se fazem ressoar: “The plague takes images that are dormant, a latent disorder, and suddenly extends them into the most extreme gestures; the theater also takes gestures and pushes them as far as they will go: like the plague it reforges the chain between what is and what is not, between the virtuality of the possible and what already exists in materialized nature.”[4]
Importando a ideia de “teatro” de Artaud, e expandindo o seu valor semântico para uma noção de “aparato”, é possível estabelecer algumas relações com o projecto de Ricardo Valentim. Tal como Thomas fez através da sua agência, Ricardo Valentim faz agora através deste projecto: os papéis são invertidos e estes actos, descritos anteriormente (autor, coleccionador, obra, instituição, etc.), formam uma peça que, por encenar todo este processo e enredo antagónico, subverte as noções e construções culturais associadas à autoria, ao objecto artístico e aos modelos institucionais, e também as noções associadas às questões mercantis de reificação. Ricardo Valentim “encena” esta peça que, por subverter as noções básicas dos modelos de apresentação artística no contexto de uma feira de arte, coloca exactamente em evidência, e questiona por sua vez, os meios hegemónicos materiais, virtuais e culturais em jogo nessa matriz. Para a posteridade fica o convite como registo do, e enquanto, acontecimento.
[Este texto foi redigido segundo o antigo Acordo Ortográfico.]
[2] Lebovici, Elisabeth (2018), The Name of Philippe Thomas, Kusthalle Bern: Bern, Sternberg Press: Berlin
[3] Butler, Judith (2020), Capitalism Has its Limits, Verso Books, https://www.versobooks.com/blogs/4603-capitalism-has-its-limits (acedido em: 19.01.2021).
[4] Artaud, Antonin (1938), The Theater and Its Double, Grove Weidenfeld: New York, Ed. 1958, p. 27.