Será Deus um Comunista?

Ana Sophie Salazar

Nas palavras da grande cantora e compositora Nina Simone, o dever do artista é refletir os tempos. Esta definição é certamente concretizada pelo artista angolano Kiluanji Kia Henda através de uma prática que observa de onde vimos e para onde vamos com uma precisão extrema, uma compreensão cálida e um humor aliciante. Tendo utilizado maioritariamente a fotografia no início da sua carreira, as preocupações conceptuais e a condição post-medium na arte levou-o a expandir a sua prática durante a última década, a qual agora inclui vídeo, performance, escultura e instalações de grande escala. Indagar a prática artística de Kiluanji é imergir num mundo de histórias fantásticas, onde se cruzam conjunturas históricas complexas, circunstâncias acidentais e episódios pessoais. Ele diz que as coincidências não existem.

Kiluanji, que se lembra de inúmeras letras de cor e conhece músicas adequadas para quase todas as ocasiões, começou como guitarrista e brinca que todos os artistas visuais são músicos frustrados. Foi através do seu envolvimento com a icónica companhia Elinga Teatro em Luanda como músico, produtor e desenhador de luz no início dos anos 2000, que se inseriu na cena das artes visuais da capital angolana. Tendo crescido numa casa onde a política fazia parte da vida familiar—o seu pai participou ativamente na luta pela independência e foi nomeado Ministro do Comércio Interno durante o governo Marxista-Leninista dos anos 1980—Kiluanji desenvolveu um pensamento crítico que permeia a sua arte de consciência política.

Duas figuras proeminentes que Kiluanji refere como grandes influências no seu trabalho faleceram este ano. Primeiramente, o fotojornalista sul-africano John Liebenberg: o seu lendário arquivo de imagens contém documentação do regime de apartheid na África do Sul, a Guerra de Independência da Namíbia, a ocupação sul-africana em Angola e a guerra civil em Angola durante os anos 1990. Kiluanji aprendeu muito sobre Angola através das imagens da guerra captadas pelo fotógrafo, ao viver em casa de John em Johannesburg durante dois anos no final dos anos 1990. O estudo do seu trabalho revelou a Kiluanji as implicações inerentes à produção de imagens e a forma como a arte pode servir como ferramenta de denúncia de realidades escondidas e injustas. Em segundo lugar, o artista angolano Paulo Kapela: nascido na República do Congo e radicado em Luanda desde 1989, Kapela era uma força de verdadeira liberdade e sabedoria na sua forma generosa de ser, viver e fazer arte. Kiluanji dedicou a série fotográfica Jardim de Imagens (2001) ao estúdio mítico de Kapela no centro de Luanda, um lugar de encontro e fonte de inspiração para muitos.

“Conhecer a obra de Kapela foi para mim uma verdadeira epifania. Fiquei impressionado com a sua capacidade de misturar suportes, de justapor diversos níveis da realidade. Ele colhia uma série de imagens da cidade – revistas, cartazes, posters, jornais – e com ela construía altares. […] Essa mistura de ritual religioso, política e pop, esse elemento vivo e a enorme liberdade na forma de mostrar o seu trabalho, tudo isso provocava em mim a vontade de abordar muitos temas sem me especializar em nada, sem me enquadrar em qualquer espécie de sistema. E não há tema que eu tenha abordado que não tenha já estado presente na obra de Kapela.”[1]

Ao longo dos anos, o trabalho de Kiluanji tem contribuído para discussões acerca de memória colectiva e reflexão histórica, as consequências da guerra, as heranças da opressão colonial, o ambiente urbano e o uso de espaço público, assim como as formas como as inúmeras influências culturais que coexistem em Angola são adaptadas, integradas e transformadas. O artista identifica uma lacuna na linha do tempo, um vácuo que resulta do que ele chama de “atropelamento histórico”. Significa que quando há questões do passado que se foram acumulando e ficaram por resolver, é difícil ‘estar’ no presente. Kiluanji considera a arte como veículo para abordar essas questões e criar pontes do passado ao futuro.

De vez em quando os poderosos de outras terras vieram roubar-nos o amanhã.[2]

A série Homem Novo (2009-13) inclui fotografias, performances e um vídeo que Kiluanji realizou em Luanda. Na serie fotográfica Balumuka (Ambush) (2010), as figuras emboscadas são heróis portugueses petrificados que outrora ocuparam espaço público na cidade. Tendo sido removidos dos seus pedestais imediatamente após a independência de Angola de Portugal em 1975, estavam a apanhar pó no pátio da Fortaleza de São Miguel, edificada há 400 anos. Devido a construções no Largo do Kinaxixi, a Rainha Njinga Mbandi, guerreira anticolonial, erguida no Largo em 2002, tinha sido temporariamente transferida para a Fortaleza de São Miguel.[3] No século XVI, a Rainha Njinga Mbandi foi prisioneira na mesma fortaleza por resistir a colonização. A sua irmã perdeu lá a vida. As 12 fotografias retratam o momento no qual a enorme Rainha de bronze regressa, como que à procura de vingança. Lá está ela, a ameaçar com o machado a D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, e ao poeta Luís Vaz de Camões. A seus pés, cortado em quatro, jaz Paulo Dias de Novais, seu contemporâneo, fundador de Luanda e quem mandou construir a Fortaleza. Armamento militar, incluindo canhões e veículos russos da Guerra Fria, rodeiam as figuras.

Kiluanji Kia Henda, Balumuka (Ambush), 2010, impressões fotográficas montadas em alumínio, n°12 fotografias, 30 x 40 cm cada

A questão sobre onde colocar estes monumentos coloniais que representam violência e opressão mantém-se. Removê-los foi uma forma de desmantelar e desconstruir a consciência colonial e um sinal de que estes monumentos já não representam a história de Angola. Para Kiluanji, é evidente que a melhor solução, e a mais justa, seria a restituição: enviá-los de volta para a Europa em troca de artefactos africanos roubados e guardados em museus europeus. “Todas as estátuas devem cair”, afirma o filósofo e curador Paul B. Preciado em resposta às estátuas derrubadas pelo mundo no contexto do movimento Vidas Negras Importam (BLM):

“Todas as estátuas monumentais que comemoram a modernidade patriarcal-colonial teriam de ser derrubadas—absolutamente todas: as figuras políticas, militares e eclesiásticas que compõem a sua maioria tal como as de traficantes de seres humanos, os médicos e cientistas que defenderam teorias raciais, os estupradores solenes e os génocidaires eminentes e, não menos importantes, os escritores e artistas que produziram a linguagem e as representações de poder […] Quando uma estátua cai, abre a possibilidade de um espaço de re-significação na paisagem saturada do poder […] É por isto que todas as estátuas devem cair.”[4]

O trabalho de Kiluanji Redefining the Power – 75 (Redefinindo o Poder – 75) (2011-12) surgiu como resposta aos pedestais que antes acolhiam as estátuas coloniais. Muitos permaneceram vazios durante todo o período da guerra civil, reflectindo outro vazio em termos de debate público e confrontação histórica. Numa entrevista sobre o trabalho, o artista afirma: “Tinham passado exactamente dez anos desde o fim da guerra em Angola. A cidade começava a presenciar um renascimento cultural que eu procurei expressar na forma de monumentos vivos. A ideia era convidar uns amigos loucos que vivem numa espécie de performance constante para subir aos pedestais que estiveram mais de trinta anos vazios e terem a liberdade de fazer o que quisessem.”[5] Heróis vivos da cultura local tal como o poeta e estilista Shunnuz Fiel, o performer Miguel Prince e o activista e estilista queer Didi Fernandes substituíram os heróis coloniais de pedra. Na visão de Kiluanji, deveria sempre ser possível alterar monumentos para que reflictam o momento no qual vivemos: “Eu penso que todas as cidades deveriam ter pedestais vazios que possam ser personalizados em conformidade com as nossas paixões, em vez de representações em pedra fria de pessoas mortas das quais já ninguém quer saber hoje em dia, a maioria delas ligadas a guerras e ao poder político.”[6]

Subir aos pedestais foi uma performance em si, parcialmente documentada no vídeo Reposição da Memória dos Pássaros (2013), o qual inclui uma camada de complexidade adicional com imagens de trabalhadores da Coreia do Norte a restaurar monumentos antigos na Fortaleza de São Miguel. As fotografias em Redefining the Power – 75 foram tiradas como o “depois” de cartões postais com os monumentos originais sendo o “antes”. Esta proposta ressoa com a conclusão de Preciado no ensaio citado acima: “Deixem os museus vazios e os pedestais vagos. Não permitam que nada seja erguido. É necessário abrir espaço para a utopia independentemente de algum dia chegar ou não. É necessário abrir espaço para corpos vivos. Menos metal e mais voz, menos pedra e mais carne. […] Não precisamos de mais estátuas. Não peçamos mármore ou metal para ocupar esses pedestais. Trepemos em cima e contemos as nossas próprias histórias de sobrevivência e liberação.”[7] É importante assinalar que as reflexões de Kiluanji precedem o movimento BLM e os relativos derrubamentos de estátuas por dez anos. Em várias ex-colónias, incluindo Angola, o desmantelamento de monumentos e o reconhecimento crítico do seu poder simbólico tiveram precedência, visto que desempenharam um papel essencial na reconstrução da identidade nacional.

Kiluanji Kia Henda, Redefining The Power I (Serie 75 com Shunnuz Fiel), 2011, impressão fotográfica impressa em alumínio, 80 x 120 cm cada.

O título da série Homem Novo é uma citação irónica do hino de Angola. O sentimento que acompanhou o nascimento da nação em 1975 ecoa a última frase do livro Os Condenados da Terra do psiquiatra e líder político anticolonialista Frantz Fanon: “Pela Europa, por nós e pela humanidade, camaradas, devemos virar uma nova página, devemos desenvolver novos conceitos, e tentar pôr em pé um homem novo.”[8] Foi uma longa luta pela independência que durou 14 anos. Portugal, cujo Estado Novo em 1951 declarou que as suas colónias de aí em diante se chamariam “províncias ultramarinas” numa tentativa de minimizar a crítica internacional, não queria sair. Ao invés, declaravam que os angolanos se sentiam portugueses. A extrema violência da Guerra Colonial Portuguesa (1961-74) deveria ter sido suficiente para denunciar o mito do “bom colono” que ainda prevalece em Portugal, onde os “Descobrimentos” são ensinados nas escolas com um sentimento de orgulho não dissimulado. Pouco ou nada é discutido acerca dos séculos de pilhagem e opressão racista de povos inteiros. Fanon condena a supremacia europeia: “Deixem essa Europa onde nunca terminam de falar do Homem, porém matam homens onde quer que os encontrem, nas esquinas de todas as suas próprias ruas, em todas as esquinas do planeta.”[9]

Agindo contra esta falta de reflexão em Portugal está a Djass – Associação de Afrodescendentes que submeteu o projecto Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas à Câmara Municipal de Lisboa em 2017 através de um Orçamento Participativo. O Memorial é um tributo aos milhões de africanos vítimas do tráfico de escravos transatlântico ou que foram escravizados por Portugal entre os séculos XV e XIX. O projecto foi aprovado mediante voto popular e será instalado no Largo José Saramago, no centro histórico de Lisboa, perto da Praça do Comércio, a qual com os seus 35000 metros quadrados servia de entrada principal da cidade pelo Rio Tejo. A Plantação (2021) de Kiluanji, a proposta seleccionada, contém quatrocentos troncos de cana de açúcar de 3 metros, em alumínio preto, imitando uma monocultura da matéria prima tão intrinsecamente ligada à história da escravatura. Um lugar de encontro na forma de um pequeno anfiteatro é colocado no centro. Este poderoso cenário imersivo cria um ambiente mental e físico dedicado ao trauma transcontinental de escravização e exploração de vida humana para poder considerar as heranças do presente e projectar possibilidades de futuros abundantes. Não há palavras para expressar a magnitude e relevância deste novo memorial na capital de Portugal, onde várias estátuas que celebram os “Descobrimentos” ainda esperam ser derrubadas.

Kiluanji Kia Henda, Esboço para Plantação

Carregando as marcas de toda a história de humilhação indígena no seu corpo.[10]

A seguir à independência alcançada por Angola em 1975, uma guerra civil devastadora dominou o país durante 27 anos. Esta guerra só terminou em 2002. Kiluanji tinha 23 anos. Inicialmente uma disputa entre dois movimentos independentistas, o Movimento Pela Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Total Independência de Angola (UNITA), o conflito rapidamente escalou numa guerra de procuração da Guerra Fria com intervenções da União Soviética, Cuba, África do Sul e os Estados Unidos. Para o artista, foi determinante: “Sempre tive um sentimento de ter vivido as consequências diretas da globalização das guerras. Desde miúdo aprendi que em Angola éramos parte ou vítimas de uma grande estratégia internacional, que o que acontecia não era só movido pela nossa vontade. E assim, és obrigado a posicionar-te. Acho que isso suscitou em mim a preocupação de abordar os temas numa escala mais abrangente.”[11]

O primeiro presidente de Angola, o marxista António Agostinho Neto, médico e poeta, deu o seu discurso inaugural em 1975 junto a um busto de Lenine, usando a frase que Kiluanji depois apropriou como título da instalação Sob o Olhar Silencioso de Lenine (2017). Há um paradoxo entre a idolatria demonstrada na frase citada, como se Lenine estivesse a observar desde algum lugar, e a rejeição categórica da religião por parte do comunismo. Ocorreu uma combinação parecida durante a Guerra Fria, durante a qual a ficção científica se tornou extremamente importante para criar imagens de invencibilidade, tanto na União Soviética como nos Estados Unidos. Em Angola, os soldados contavam histórias surreais sobre teletransportação, balas que não matavam e outras ficções sobre poderes sobrenaturais. Essas histórias eram companhias necessárias para combater o medo e sustentar a guerra. Para a instalação, o artista criou três bustos de Lenine em forma de Nkisi, i.e. esculturas habitadas por espíritos que são usadas em rituais de magia. Artesãos falsificadores de Nkisi produziram as estátuas de madeira, as quais foram depois instaladas numa espécie de altar ao comunismo, amplificando a contradição por três. Um vídeo documenta a produção das Nkisi falsas com um narrador russo a fazer de Lenine e a contar a sua experiência na primeira pessoa. A provocação satírica de Kiluanji indica como o Marxismo foi cegamente seguido como dogma, praticamente de forma análoga a crenças religiosas, mas também desdobra a intricada dimensão psicológica das condições impostas pela guerra.

Igualmente inspirada pelas palavras de Agostinho Neto é a obra Havemos de Voltar (2017), a qual faz parte da série In the Days of a Dark Safari (Nos Dias de um Safari Sombrio) (2017). A curta-metragem Havemos de Voltar toma o título do poema epónimo de Agostinho Neto que convoca para um regresso a Angola pré-colonial, à sua terra libertada e às práticas tradicionais. Infelizmente, um retorno completo requereria duas impossibilidades evidentes: o apagamento dos longos períodos de violência, e a existência fantasiada do tal lugar puro. A saudade de um passado idealizado é ilustrada através da história de Amélia Capomba, narrada da sua própria perspectiva. Amélia é uma Palanca Negra Gigante—um animal ameaçado de extinção e símbolo de Angola—que vive no Centro de Arquivo. Devido a um lapso do taxidermista, o seu cérebro não foi removido e ela ainda se lembra da floresta, a sua casa. Amélia fala sobre o seu anseio de voltar e rejeita veemente a sua condição presente de objecto histórico de decoração. Gradualmente, entendemos que as suas alegadas memórias ancestrais não passam dos dioramas estilizados do Museu de História Natural—uma completa ficção. O seu desejo de escapar torna-se realidade quando um negociante chinês, incapaz de convencer o director do Museu a lhe vender a Palanca como decoração para o seu clube nocturno, manda um grupo roubá-la. Amélia está feliz na rua, julgando que está finalmente a caminho da sua tão desejada floresta. Ela termina na discoteca, onde atravessa uma máquina do tempo aberta pela música. Lamentavelmente, ela não emerge na desejada era pré-colonial, mas sim no meio da invasão de Angola pela África do Sul.

Kiluanji Kia Henda, Havemos de Voltar, 2017, vídeo monocanal, 17 min 30 seg

No mundo que queremos, cabem todos. Queremos um mundo onde cabem vários mundos.[12]

A guerra civil em Angola gerou uma crise humanitária gravíssima que envolveu milhões de pessoas deslocadas internamente, muitas das quais procuraram refúgio em Luanda, a capital. Nas palavras de Kiluanji: “A guerra foi muito mais localizada do que parece, muito mais concreta, e ela não se deu apenas em escritórios e usinas, mas em casas, esquinas e matas. De forma que eu não quero abordar essa história e vê-la de forma totalizante, mas tratar dessa parte mais pormenorizada da guerra, do quanto nos ocupou as horas, os pensamentos, os sonhos. Trata-se de uma atmosfera. Uma vibração. É o ar que respiramos”[13]

Deslocamento forçado e migração são temas recorrentes na obra do artista, porém duas curtas-metragens recentes abordam as memórias da guerra de forma mais directa. Phantom Pain – A Letter to Henry A. Kissinger (Dor Fantasma – Uma Carta a Henry A. Kissinger) (2020), inteiramente filmada na rua onde o artista cresceu, é uma carta acusadora ao antigo Secretário de Estado dos Estados Unidos (1973-77), recordando-o de que foi directamente responsável por morte e desgraça em Angola. De acordo com o oficial da C.I.A. John Stockwell, citado no filme, Kissinger ordenou a C.I.A., profundamente envolvida no apoio da invasão de Angola pela África do Sul, de “manter o conflito aceso.” Kiluanji reconstrói as consequências reais de tais veredictos externos, brutais e revoltantes, através das suas recordações de infância, incluindo imagens do maior Centro Ortopédico em Luanda da altura, onde inumeráveis próteses de membros atestam sofrimentos recentes. Até hoje, as milhares de minas antipessoais e outras bombas não explodidas continuam a causar mortes e ferimentos. Outra obra, There is no Light Inside the Mirror (Não Existe Luz Dentro do Espelho) (2020) traça a angústia psicológica do trauma daqueles que experienciaram e escaparam à guerra. O edifício modernista no qual foi filmado fora ocupado ilegalmente depois da independência, maioritariamente por refugiados da guerra, encontrando-se perigosamente superlotado e degradado. No seu interior, funcionava todo o tipo de comércio, desde bordéis e igrejas a bares e mercados. Em 2018, os habitantes foram realojados, deixando o prédio vazio. O filme narra a história de Emanuel Tchisseke na primeira pessoa. Tchisseke escapou de Angola de leste e ocupou um apartamento no 14º piso. A sua sombra torna-se uma metáfora para as suas visões e pesadelos, enquanto vive os dias e as noites em profunda solidão, dor e aflição. Numa tentativa desesperada de terminar o seu sofrimento, Tchisseke atira a sua sombra para baixo desde o topo do edifício.

Os dois vídeos, Phantom Pain – A Letter to Henry A. Kissinger e There is no Light Inside the Mirror (ambos 2020), tocam com cuidado em feridas ainda abertas na sociedade angolana. Ao mesmo tempo, humanizam as vítimas, muitas vezes reduzidas a números, trazendo as suas condições para primeiro plano e assim facilitando uma renovada empatia. A mesma desumanização acontece hoje em dia. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados estima que há mais de 79 milhões de pessoas deslocadas à força no mundo, incluindo requerentes de asilo, refugiados e apátridas. Estes indivíduos e famílias, a fugir guerras, perseguição étnica, pobreza extrema e desastres climáticos, não só têm de suportar condições indignas durante extensos períodos de tempo, por vezes décadas, mas ainda têm a sua própria vida criminosamente tida como descartável.

As questões acerca de migração forçada devem ser enquadradas dentro de um contexto global mais amplo de racismo generalizado, o qual, em última instância, é o que permite as contínuas atrocidades. “Racismo é a produção e exploração sancionadas pelo estado e/ou extralegais de vulnerabilidades diferenciadas por grupos para a morte (social, civil e/ou corpórea) prematura.”[14] As causas de migração forçada, a necessidade de se submeter a travessias perigosas para escapar e a realidade impiedosa do outro lado no caso do destino pretendido ser mesmo alcançado, são tudo fruto da mesma podre raiz. O sofrimento de corpos racializados de pessoas da Síria, Afeganistão, Sul do Sudão, Somália, América Central, Colômbia, Venezuela, Myanmar, Burundi, e muitos outros países, é aterradoramente normalizado. O fundador de WikiLeaks Julian Assange referiu numa entrevista que todos nós só nos importamos com o nosso próprio quintal, mas que o tamanho deste varia de pessoa para pessoa—para alguém pode ser apenas um canteiro de 2 metros quadrados, para outro pode abranger o mundo inteiro.[15] A distância percebida em relação a tragédias que não ocorrem na nossa vizinhança imediata é o que permite que pessoas como Kissinger comandem golpes fatais remotamente. Essa distância é, porém, uma construção ilusória. Uma catástrofe certamente não será menos severa por ocorrer a milhares de quilómetros de minha casa ou por as vítimas não serem os meus amigos e familiares. Devemos reconhecer esta falácia e expandir o nosso ‘quintal’.

A instalação de técnica mista A Ilha de Vénus (2018) é uma continuação da pesquisa que Kiluanji iniciou em Veneza em 2010 e que examina o tema da migração de África para a Europa (Self-Portrait as a White Man (Auto-retrato como Homem Branco), 2010). A xenofobia dominante é contraditória ao facto de muitos dos palácios em Veneza e outras cidades terem sido construídos por homens africanos escravizados, referidos como Mouros Negros. Esta história é em grande parte omitida na maioria da arte e literatura europeias, perpetuando equívocos acerca da migração. Uma reflexão acerca de uma das maiores tragédias humanitárias de hoje, nomeadamente os naufrágios inaceitáveis no Mediterrâneo que acontecem sob o olhar atento da Fortaleza Europa, a instalação de Kiluanji traduz barcos afundados num arquipélago de ilhas ilusórias. Estas ilhas estão entre dois continentes: um continente não consegue abraçar os seus filhos, o outro continente tem um medo de morte de os adoptar. Símbolos “intocáveis” da herança do Ocidente em forma de esculturas Greco-Romanas em miniatura, tais como a Vénus de Milo ou David, são colocadas sobre plintos de cimento e cobertas com preservativos coloridos. Estão homenageadas para sempre, protegidas de agentes externos, assim como absolutamente estéreis, sem possibilidade de procriação. Um arquivo de imagens com barcos de migrantes a cruzar o Mediterrâneo encontra-se na parede. Os barcos estão tapados com quadrados pretos, e o quarto se enche com um lamento cantado em Kimbundu por Ngola Ritmos que conta a história de uma criança desaparecida.

Um dos principais argumentos não-económicos para a rejeição de refugiados por parte de países europeus prende-se com o desejo de “proteger” a sua própria cultura e formas de vida. Pensar que um grande número de estrangeiros vai “invadir” e trazer consigo as suas próprias culturas e tradições e sistemas de crenças é visto como uma ameaça à identidade nacional pela população local, particularmente em países onde esse medo é estimulado e inculcado por governos nacionalistas, como por exemplo na Hungria, Áustria ou Suíça. Como se poderá desconstruir essas emoções de territorialidade cultural e analisar com precisão a ansiedade associada? A separação criada pelo medo do “outro” deve ser transformada radicalmente em possibilidades de identificação que levem não só a solidariedade, mas também a processos saudáveis de hibridização.

Kiluanji Kia Henda, A Ilha de Vénus, 2018, instalação técnica mista, som, pequenas esculturas, preservativos, tijolos e 29 montagens fotográficas, dimensões variáveis

Estas preocupações estão igualmente no centro de Something Happened on the Way to Heaven (2019-20), uma exposição que inclui vários trabalhos desenvolvidos durante uma residência na ilha italiana da Sardenha. A ideia de paraíso idílico é completamente revertida, sendo o que surge um inferno militarizado com traços da Guerra Fria, bases militares Estadunidenses e um historial de teste militares nocivos. Sardenha é também uma ilha destino para muitos barcos de migrantes sem documentos. Mais uma vez, imagens idealizadas de liberdade, paz e uma nova vida na Europa são contrariadas por uma realidade brutal que está para além dos piores pesadelos. Relicário de um Sonho Naufragado (2019) é uma “homenagem à migração entendida como condição existencial de diáspora, forçada ou escolhida, mas sempre parte inelutável da vida humana.”[16] Uma cabeça de bronze repousa sobre uma coluna de sal do Mar Mediterrâneo, enjaulado dentro de uma estrutura de cerca metálica. As feições são as do actor angolano Orlando Sérgio, colaborador de longa data de Kiluanji, que foi o primeiro imigrante negro a interpretar Othello de Shakespeare numa produção portuguesa no Teatro Municipal de Almada em 1993.

Kiluanji Kia Henda, Relicário de um Sonho Naufragado, 2019-20, estrutura de metal 250 x170 cm, cabeça de bronze, plinto de sal 90 x 70 x 70 cm

Outra obra dedicada às vidas perdidas dentro e ao redor da Europa é This Is My Blood (2016), uma instalação de grande escala na região de Leibnitz na Áustria, perto da fronteira com a Eslovénia. Criando um paralelo entre as estruturas de madeira das vinhas serenas e omnipresentes e as violentas cercas metálicas que tinham sido recentemente erguidas na fronteira austríaca, esta obra consiste de 2000 barras de aço—as mesmas barras usadas para a cerca. Pintadas de vermelho escuro pelo artista, as barras perfuram uma paisagem que imita, e poderia tornar-se, uma vinha. O título da obra é uma referência às tradições católicas ubíquas na região. Kiluanji evoca as palavras de Jesus relativamente ao vinho que este partilha com os seus discípulos na Última Ceia. A obra evoca os seus ensinamentos e preces de compaixão, alertando para como o contrário é exercido actualmente. O sangue da tinta vermelha nas barras de 2 metros não simboliza o sangue sacrificado por Jesus que nos absolve de todos os nossos pecados, mas sim a morte trágica de refugiados que tentam chegar à Europa, o qual, pelo contrário, nos incrimina.

Kiluanji Kia Henda, This Is My Blood, 2016, obra de arte pública em Leibnitz, Austria, instalação com 2000 barras vermelho-sangue

O trabalho de Kiluanji cria pontes inventivas entre ‘quandos’ e ‘ondes’. A sua curiosidade incessante sobre o passado de Angola e os processos psicológicos colectivos de criação nacional resultam em contínuas interrogações de constelações geopolíticas complexas. Com a cidade híbrida de Luanda e ruínas contemporâneas como inspirações principais, o artistas traça as conexões entre a sua terra natal e Europa, Brasil, Cuba, a União Soviética, os Estados Unidos e mais além, “encurtando distâncias e melhorando o diálogo.”[17] O mais significativo porém é que as obras em si estão localizadas num espaço liminar de onde é possível ver os dois lados da mesma moeda em simultâneo. Não há paraíso sem inferno. Um implica inevitavelmente o outro. “O dinheiro de quem não dá é o trabalho de quem não tem.”[18] Com as infinitas contradições em mente que tão eloquentemente articula no seu trabalho, Kiluanji tem-se perguntado ultimamente “Será Deus um Comunista?”, um título adequado para este curto panorama geral da sua arte comovente e instigante. Então, Kiluanji, que música ouvimos agora?

 

 

 

Referências

Afonso, Lígia. “Entrevista a Kiluanji Kia Henda” in BES Photo 2011. Lisbon: Banco Espírito Santo / Museu Colecção Berardo, 2011.
Fanon, Frantz. The Wretched of the Earth. London: Penguin Books, 2014.
Harney, Stefano, and Fred Moten. The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study. Wivenhoe, New York, Port Watson: Minor Compositions, 2013.
Hossfeld, Johannes, ed. Kiluanji Kia Henda. Travelling to the Sun through the Night / Viajando ao Sol durante a Noite. Göttingen: Steidl; München: Goethe-Institut, 2016.
Knoppers, Kim. Interview with Kiluanji Kia Henda. 20 May 2015
https://www.foam.org/talent/spotlight/interview-with-kiluanji-kia-henda
Marcos, Subcomandante Insurgente. Our Word is Our Weapon: Selected Writings. New York, London, Sydney, Toronto: Seven Stories Press, 2001.
Moraes, Vinícius de. Berimbau. 1963.
Poitras, Laura. Risk. 2016.
Preciado, Paul B. “When Statues Fall” in Artforum December 2020.
https://www.artforum.com/print/202009/paul-b-preciado-84375
Ribeiro, Anabela Mota. “Kiluanji Kia Henda” in Público. 20 March 2011.
https://www.publico.pt/2011/03/20/jornal/kiluanji-kia-henda-se-acontecesse-alguma-coisa-em-angola-seria-mais-parecido-com-o-que-se-passa-na-libia-21553409

[1] Kiluanji Kia Henda in Hossfeld, 2016, p. 24.

[2] Marcos, 2001, p. 245.

[3] Kiluanji’s forthcoming performance piece Red Light Square tells the story of the metamorphosis of the public square Largo do Kinaxixi from pre-colonial times until today.
[4] Preciado, 2020.

[5] Knoppers, 2015.

[6] Idem.

[7] Preciado, 2020.

[8] Fanon, 2014, p. 255.

[9] Fanon, 2014, p. 251.

[10] Marcos, 2001, p. 5.

[11] Afonso, 2011.

[12] Marcos, 2001, p. 80.

[13] Kiluanji Kia Henda in Hossfeld, 2016, p. 146.

[14] Ruth Wilson Gilmore cited in Harney, 2013, p. 42.

[15] Poitras, 2016.

[16] Exhibition label at Galerias Municipais – Galeria Avenida da Índia, 2020.

[17] Ribeiro, 2011.

[18] Moraes, 1963.

Exposição

Data
Título
Artistas
Curadoria
Galeria
03.11.2020
– 10.01.2021
Something Happened on the Way to Heaven
Kiluanji Kia Henda
Luigi Fassi
Galeria Avenida da Índia