Uma conversa dentro de “Camera Lucida”

Ramiro Guerreiro; Thierry Simões, Daniel Peres, João Gaspar, Luísa Cardoso e Tobi Maier (Galerias Municipais)

Galerias Municipais: Camera Lucida, título desta exposição, é também o nome dado a um aparelho ótico usado como auxiliar do desenho e da pintura, na captação do real. Embora não seja adequado entendermos o título de modo ilustrativo, o vosso projeto parece problematizar noções associadas a esse dispositivo, transpondo-as para a própria arquitetura da Galeria Quadrum. Há reflexos e refrações de luz pelas fachadas envidraçadas. As próprias portas abertas, de um lado e de outro, surgem quase como ecrãs a intensificar jogos de perspetiva, tudo materiais sensoriais que vão sendo ritmados com o passar do dia e as variações de luz. Com o entardecer, a galeria (sem iluminação artificial) escurece e a iluminação pública do exterior inunda-a com novos matizes de cor e elementos refletidos. Também os sons e outras presenças sensoriais da vida lá fora se tornam alvo de uma atenção redobrada no interior da galeria. Gostariam de comentar mais a fundo a relação desta vossa ação na galeria com a ideia de camera lucida que o título enuncia?

Ramiro Guerreiro: Há esta dualidade entre o aparelho ótico da camera lucida, de permitir ver, e este espaço que é, também, uma espécie de “máquina transparente”, de atravessamento, que a visão permite atravessar mesmo não entrando no espaço. E portanto, trata-se de entender o espaço precisamente como uma câmara, que vale para vários significados.

Thierry Simões: Mas é também a manifestação da arte. Camera lucida, no desenho, é um artifício, é uma imagem composta por uma projeção e uma representação. Nesta medida, tem um valor interpretativo e também tem um valor subjetivo. É o objeto que a arte costuma recriar. Como é óbvio, a experiência estética tem que ver com o corpo que é o meu e que é ativado por uma imagem, ou pela ausência de uma imagem. A experiência artística é muitas vezes ativada pela ausência de uma imagem mais do que pela presença de uma imagem, que se afirme na realidade, como representação. E depois, essa projeção de uma imagem, que é uma imagem interior ― interior ao outro, ou que tem dois tempos. Interior ao outro porque uma é indireta, a outra é projetada (tem um percurso mais longo no espaço temporal). São tempos, é uma situação completamente artificial ― ou artística.

Ramiro: Como toda a arquitetura, é artificial, não é?

Thierry: E uma coisa que podíamos desenvolver, é a relação com a camera obscura. […] Em oposição à “câmara clara”, podemos encontrar a camera obscura. Cada um de nós é uma espécie de camera obscura, na verdade ― a imagem invertida. E falta um espelho, que é um espelho, digamos, cognitivo, que inverte a imagem de novo, e que é a linguagem, na verdade. A capacidade da linguagem inverter a imagem projetada no córtex.

Ramiro: Vem antes da linguagem, a ótica entendida pelo cérebro. Vem ainda antes da linguagem.

Thierry: A ótica projeta ao contrário, a linguagem inverte a imagem de novo. E é uma coisa inconsciente, mas é uma linguagem.

GM: Uma linguagem quase biológica? É quase um automatismo biológico, a nossa retina ter as imagens projetadas tal qual uma camera obscura e depois o córtex fazer essa inversão […].

Thierry:experiências com óculos que invertem as imagens e então tu vês tudo ao contrário durante um tempo. São experiências neurológicas. Depois de um certo tempo, invertes a imagem que te chega no sentido correto que tu costumas inverter, invertes outra vez, e começas a ver direito outra vez e, a seguir a tirar o aparelho, levas umas horas… Começas a ver tudo ao contrário… E só depois é que voltas, passado um certo tempo… É preciso tempo para a aprendizagem desta imagem através da linguagem.

GM: Ainda relativamente ao facto de camera lucida ser o nome dado também a esse dispositivo ótico: nós podíamos cavalgar estes paralelismos quase infinitamente e, lá está, sem querer tornar a coisa muito ilustrativa, há, no entanto, algo que parece crucial quando entendemos poeticamente a vossa Camera Lucida em confronto com a “camera lucida-aparelho”. A “camera lucida-aparelho” é algo que nos auxilia a fazer qualquer coisa, mas de um modo francamente “bloqueado”, digamos assim… É um auxiliar quase para uma cópia do real. Enquanto que esta vossa proposta se foca muito mais na camera lucida aberta, verdadeiramente. Ou seja, não há esse vínculo que a ideia de camera lucida enquanto aparelho ótico tem, de ser uma práxis de concisão e de “bloqueio”, quase manual até…

Ramiro: Sim, no aparelho ótico para auxiliar o desenho, ele está entre o objeto retratado e o retratante. E portanto, faz uma espécie de filtro que auxilia, como dizias, a execução, a representação daquilo que está a ser visto. Aqui o filtro, ao contrário, é aberto, no sentido em que as pessoas são convidadas a atravessar o aparelho, em vez de o aparelho bloquear essa vista e essa experiência.

Thierry: Mas a camera lucida, o conceito existe muito anteriormente à máquina, a essa construção da máquina. Porque é o ensinamento da própria natureza. A construção do aparelho vem da observação do aparelho. Portanto, nós referimos não a construção do aparelho; referimo-nos à existência deste aparelho desde que temos olhos. Desde que há camera obscura, há “câmara clara”. Porque há reflexos… Porque Narciso vê os peixinhos na água e vê o seu reflexo. E já é uma camera lucida.

GM: O desdobrável exposto ao fundo da sala1 que é uma edição que os visitantes poderão levar com eles ― apresenta trabalhos fotográficos vossos o que, numa exposição com este título, acaba por fazer soar logo qualquer coisa, acaba por ser imediatamente intrigante. A questão de a camera lucida ― enquanto aparelho, lá está ― estar tecnologicamente a anteceder a própria câmara fotográfica, mas igualmente o facto da camera obscura, que já comentámos, estar também nessa relação.

Thierry: Sim, a câmara fotográficaPara já, são dados históricos que são baseados nos intérpretes da história da arte, não é? Porque há várias pesquisas da impressão da imagem que remontam… Temos o Platão, não é? Temos a gruta. Essa ideia de que existe manifestamente um inventor de… A imagem impressa, aliás, imagina-se que no Império Otomano também houve experiências com revelações a partir de urina, e coisas de fixar o reflexo da lua. Portanto, nós referimos uma invenção que foi o objeto, o objeto existe, é manufaturado, mas é uma reinvenção. Eu não me refiro ao aparelho fotográfico. A coisa que me interessa no aparelho fotográfico, na verdade, é o tempo entre a decisão de tirar uma imagem e o de clique no obturador, em que eu não sei se não mudou. É o único interesse que a máquina fotográfica que nós conhecemos tem para mim, além da imagem.

GM: Ou seja, não é o processo mecânico da máquina per se mas o processo de decisão.

Thierry: Sim, é ótimo que, na altura em que tu decides uma imagem, te saia outra, porque há mil e um…

GM: Mas há essa relação entre a camera lucida, por um lado, a camera obscura, por outro, e a própria máquina fotográfica, ou a fotografia, entendendo de um modo mais abrangente. E as vossas fotografias focam todos estes jogos de sobreposições, reflexos, etc., a relação interior/exterior aqui no espaço. É inclusivamente curioso que a fotógrafa e a própria câmara fotográfica também aparecem refletidas. Até que ponto podemos levar a cabo uma reflexão intensa sobre o próprio medium fotográfico a partir da exposição e das vossas fotografias em particular? Tendo em conta estes antecedentes, a camera lucida, a camera obscura, mas também a vossa experiência, a vossa performance com a máquina.

Ramiro: Eu acho que não quisemos nem se tratou alguma vez de apresentar uma espécie de tese sobre o medium fotográfico.

Thierry: Ela já foi feita, Ramiro, essa tese. [risos]

Ramiro: Exatamente. Até com o mesmo título. [risos]

GM: Aliás, às vezes parece que Roland Barthes também anda aí, nestes reflexos da Camera Lucida.

Ramiro: Claro, portanto há essa série de toques”, vá, que fazemos, quer com o nome que demos ao projeto, quer com os documentos que são as fotografias que estão expostas, quer com a experiência da visita ao espaço. Portanto, tudo isso se toca e são portas abertas para o entendimento de cada visitante, tal como literalmente o espaço da galeria tem as portas abertas.

GM: Porque há muito isso, a exposição acaba por dar espaço, quer ao sítio, quer ao visitante. Esta ideia de dar espaço é quase literal aqui, não é?

Ramiro: Sim, sem dúvida. Esse convite a um habitar, mesmo que seja temporário, e a um habitar ligeiramente diferente daquele a que estamos habituados neste lugar porque, por norma, há muito tempo que não se abriam estas portas, não é? Mas deixar o lugar praticamente sem intervenções, com exceção ali da prateleira.

Thierry: Pois, isto aqui é um ensaio. Porque, na verdade, não sabemos se o espaço…

Ramiro: Sim, precisamente, é um ensaio tudo isto, não é? Não é nenhuma tese mas será mais da ordem do ensaio.

Thierry: Porque não sabemos até que ponto o espaço da arte, o espaço artificial, funciona por si. E sabemos nós também, que todas as nossas ações implicam uma não-ação também, por outro lado. Às vezes os espaços de arte são feitos para receber obras ― que é uma coisa muito esquisita, o Gehry e essas coisas, eu não quero lá ir sequer.

GM: É aquele “hospital” de obras de arte de que o Rui Chafes fala, não é?2

Ramiro: Se estiverem a ser cuidadas como num hospital, não seria mau…[risos]

Thierry: Não sei, mas é a ideia museológica do século XIX, em que muito coisa está arrumada, “isso é que era bom”, e que se podia reativar de vez em quando — que é uma fase ainda da ideia museológica do século XIX. […] Mas eu não estou a falar de um “hospital”, não. Não estou a falar de hospital, porque eu estou a falar de uma ausência, ou de uma perda. A perda é a condição da vida. Temos de entrar no segredo do vivo de várias formas e, muito possivelmente, o que eu penso que o artista faz muitas vezes, pelo menos é assim que eu entendo, é renascer constantemente. Eu não dou continuidade a uma imagem, não dou continuidade à “câmara clara” em termos de representação constante da mesma imagem, mas eu quero estar onde não estou. E por isso eu não tenho, por exemplo, uma prática de continuidade de uma imagem. Acho que não faz sentido, porque não sou um artesão. E mesmo que eu estivesse a empobrecer a minha linguagem, intento precisamente empobrecer a minha linguagem. O nosso ensaio parte de uma revolta, não é? Este espaço artístico está fechado ao espaço artístico. E a nossa intenção é devolver e ver como é que ele funciona com a mínima das intervenções.

Ramiro: Já falaste de várias coisas, mas ao início estavas a falar dos espaços de arte e eu queria só dizer que este espaço em particular, apesar de sempre ter funcionado como galeria, não foi desenhado para ser uma galeria, foi desenhado para ser cantina. Portanto, nunca foi programado nem pensado como um espaço para receber a arte. Isso foi um acidente que acabou por acontecer.

Thierry: Bom, mas se calhar, isso também a mesa com os doze apóstolos, ou… [risos] Como colocam muitas vezes, por exemplo, vários artistas dos anos 70… à volta da mesa um encontro acontece, o reencontro. Por exemplo, nesta situação que nós temos aqui: temos o encontro da imagem, em tempo real aqui, e o reencontro da imagem projetada. E isso é que é bastante extraordinário, ou podemos simplesmente chamar arte. O encontro e o reencontro, ao mesmo tempo. Que têm, eles próprios, tempos diferentes, mas que se encontrem, depois de formalizada, numa nova imagem, impossível.

GM: O Ramiro acabou por falar um pouco da história da Quadrum, para que é que foi construído este espaço e em que é que se tornou. Nos últimos dez anos (e não apenas, mas de uma forma mais incisiva nesta baliza temporal) a Quadrum tem sido objeto de abordagens que focam a importância deste espaço para a arte contemporânea em Portugal. Relembre-se, por exemplo, a peça performativa Quadruns3, de André Guedes, em 2011, ou o projeto interdisciplinar Quadrum Arquivo Paralelo4, com coordenação de Catarina Rosendo. O facto da galeria integrar o edificado do Complexo de Ateliês dos Coruchéus — que em 2020/2021 celebra 50 anos ― é obviamente um dado crucial para pensar toda essa história de um modo mais alargado. Estudar o passado e o presente da Quadrum acarreta também, naturalmente, um inquérito às diferentes programações que a pautaram ao longo das décadas. Estas questões entraram em consideração durante a conceção de Camera Lucida? Veem este projeto, também, como um ativador de reflexão sobre a história da Galeria Quadrum e do Complexo de Ateliês dos Coruchéus?

Ramiro: Isto não é necessariamente um projeto historiográfico, mas parte do sítio. Ainda antes do lugar, foi o sítio que despertou o interesse em fazer isto ― as qualidades espaciais do próprio espaço, portanto do sítio e não do lugar. O lugar, que é o espaço habitado e vivido, aí já entra a história da Quadrum, que claro que importa e sobre a qual refletimos (eu estive a fazer alguma pesquisa dos primeiros anos). Porque a primeira vez que tivemos esta ideia já foi há seis anos atrás, e na altura ainda havia aqui as paredes falsas construídas, a fazer da galeria um corredor, em vez deste espaço aberto. E portanto estive a ver, precisamente no arquivo que foi criado, fotos do tempo da Dulce d’Agro, como é que eram os equipamentos de exposição, os painéis para se pendurarem quadros, e por aí fora. Mas não era, e acho que nunca foi, um projeto de arqueologia arquitetónica, nem tampouco da arqueologia do lugar e da história da galeria propriamente dita, seja do tempo da Dulce d’Agro, seja depois nos tempos posteriores, até chegar às Galerias Municipais. Portanto, eu acho que é isso, o projeto parte sobretudo do sítio, e por isso é que nos interessou fazer aqui e não noutro lugar qualquer.

Thierry: Sim, sim, o lugar tem de estar sempre reativado. Há muita coisa que passou por aqui. Por coincidência, talvez, ou por razões mesmo energéticas do próprio espaço e das pessoas quererem fazer, organizar, desenvolver, essa cantina, como diz muito bem o Ramiro.

Ramiro: Mas a cantina nunca chegou a sê-lo.

Thierry: Portanto, não foi desenhado para apresentar arte, mas foi desenhado para juntar pessoas. Nunca chegou a ser cantina. Outra coincidência!

GM: Já agora, uma outra questão: estavas a referir, Ramiro, há pouco, que começaram a pensar este projeto há seis anos, quando este espaço estava ainda ladeado de paredes. Ou seja, já nessa altura havia uma intenção de…

Ramiro: De “limpeza”. [risos]

GM: …de limpeza, de alguma forma, de recuperar o espaço?

Ramiro: Aquilo que nos interessava era precisamente devolver o espaço à sua origem, não programática mas do desenho. E portanto, retirar todas as excrescências que foram sendo postas ao longo do tempo. Mas não nos interessava tanto o ato da remoção, da destruição, isso nunca foi nossa intenção.

GM: Ponderaram apresentar a proposta para tirar tudo e depois encarar a eventual hipótese de voltar a pôr tudo outra vez?

Ramiro: Isso já não é uma decisão nossa. [risos] Nós fizemos a proposta de retirar estes “muros” que tapavam as duas fachadas, foi precisamente essa a proposta para poder mostrar o espaço assim “essencial”. Sim, a remoção das paredes era uma condição para poder apresentar o espaço tal como estamos a fazer agora, mas não era a remoção propriamente dita que nos interessava, não era essa ação de destruição e de remover. O que nos interessava era oferecer o espaço na sua integridade.

Thierry: Sim, de facto, chegou a ser entregue a proposta, apresentada, lida pelos responsáveis, não foi uma coisa na nossa cabeça só. Também é verdade que estava na cabeça de toda a gente. Nós não tivemos uma ideia que foge à ideia geral, ao desejo geral, que nunca se realizou, na verdade. Havia até, imagina, muitas intenções que viveriam desse espaço, tal e qual ele se encontra agora, que devem ter sido pensadas no passado e que não se podiam realizar, ou que não chegavam a ser formuladas no papel, ficavam na base da ideia porque havia esse entrave que eram essas paredes falsas. Portanto, nós temos de pensar tudo o que não se realizou por causa dessas paredes…

GM: Também temos de pensar em tudo o que se realizou por causa das paredes.

Ramiro: Sim. As paredes foram feitas para se pendurarem coisas nelas, não é?

Thierry: É preciso ver o termo “realizar”, não sei o que é que tu queres dizer com “realizar”. Na medida em que, se eu atar a minha perna direita à minha nádega, eu estou a realizar qualquer coisa. Podemos pensar em tudo o que vou realizar por ter a perna agarrada, mas tenho de pensar em tudo o que não vou poder realizar. E aquilo que vou realizar vai sobreviver sobretudo daquilo que eu não posso fazer, e isso já é um princípio artístico, que não pode ser alguma coisa técnica, não pode ser um impedimento técnico. Tem de ser uma decisão artística colocar seja o que for no espaço, ou retirar seja o que for do espaço. Eu posso pensar naquilo que se realizou na medida em que eu penso naquilo que não se realizou, porque, senão, não estamos a falar em arte, estamos a falar de outras coisas. Espaços com paredes, não faltam. E eu acho estranho voltar a essa ideia “daquilo que se realizou”, na medida em que “foi atada a perna à nádega”… sim… mas no princípio artístico então, numa decisão artística: “vou pôr paredes e impedir a luz de atravessar”. Mas depois tem de ser retirado, porque foi feito como uma decisão artística, não foi feito como uma decisão arquitetónica.

GM: Sim, parece que estamos todos de acordo, a questão é a decisão arquitetónica preceder a decisão artística, ao invés de decorrer dela.

Thierry: É uma ação que não foi levada até ao fim. Portanto, eu não posso fazer de conta que uma ação que não foi levada até ao fim faz parte do étant donné, não posso pensar que é um dado, um dado concreto.

GM: O Thierry falava há pouco de os espaços precisarem de ser ativados, mas por sua vez os espaços também ativam outras coisas. Recentemente, a exposição Topografias Rurais (Galeria Quadrum, 2019) cruzou obras de Alberto Carneiro, Lala Meredith-Vula, Ana Lupas e Claire de Santa Coloma. Recuperou alguns momentos do passado da Quadrum, nomeadamente de exposições de Carneiro neste espaço. A exposição integrava material de arquivo, tal como ephemera e registos fotográficos, destacando-se uma fotografia de 1977, de um dos momentos da obra Trajecto de um Corpo, de Carneiro. Nesta peça, o artista colhe uma pedra do mar e condu-la até à Quadrum, onde fica a “autenticar-se” como obra de arte. Depois, leva-a para a montanha, de volta à natureza. A foto apresentada foi o registo da fase intermédia da performance, mostrando a pedra sozinha, no chão da galeria. Nesta obra de Carneiro, a Quadrum poderá ser entendida como um espaço-charneira que, enquanto galeria de arte, opera transformações sobre aquilo e aqueles que a habitam, na medida em que é um contexto legitimador de gestos e objetos artísticos. Este tipo de problematização também pesou nesta vossa ação?

Ramiro: Eu acho que sim, que é da mesma natureza. Quer dizer, a partir do momento em que decidimos pôr uma coisa dentro de um espaço que é uma galeria de arte, há sempre uma intenção, tem de haver uma intenção. Portanto, o gesto do Carneiro trazer para aqui a pedra e expor o espaço com esse único objeto lá dentro tem, acho eu, pontos de proximidade.

Thierry: Claro, nós também apresentamos tempo. Não há nada mais transitório que o tempo. Já não estão esses corpos, estão outros, agora reunidos. Nós estamos a dar uma imagem dum acontecimento no tempo, que desaparece na medida do seu próprio registo. Só tem uma manifestação numa imagem ou numa série de imagens. A transitoriedade desta pedra é transitória através do corpo, sobretudo. Ela entra nesta porta e sai pela outra porta, é o que aconteceu à pedra do Alberto Carneiro. Na genealogia deste espaço, houve, intencionalmente, uma intenção que se repetiu, pelos vistos, várias vezes, até haver paredes falsas. Uma intenção que se repetiu. É curioso que este espaço que não é desenhado como um espaço de arte coincida com um espaço de arte, e isso diz muito sobre o espaço da arte.

Ramiro: E diz muito sobre a boa arquitetura, que em princípio deve ser bastante versátil.

Thierry: Na minha opinião, este espaço funciona muito bem por se encontrar entre dois planos espontâneos: um à direita, que é a relva [Jardim do Palácio dos Coruchéus] e, à esquerda, outra vez a relva [Jardim da Quadrum/horta vertical]. O artifício do lugar artificial está nitidamente desenhado, em pedra, onde não há humidade, há condições especiais. À direita, humidade; à esquerda, humidade; sol, passarinhos. Aqui [no interior da galeria] não, é pedra. Aqui há uma fixação no tempo, em que as leis da natureza não se aplicam, mas pouco mais do que isso é. Portanto, é curioso como este espaço não foi desenhado para a arte, foi desenhado para almoçar, não apanhar chuva e não haver bicharada à volta (até se poderia comer no chão), e como isso são talvez as condições necessárias, ao máximo até, podemos dizer assim, do lugar da arte. Isso é uma sugestão que desde sempre este espaço faz, e fez ao longo da sua história. Porque, não estando preparado para a arte, na verdade ele faz com que o artista traga uma coisa que não é forçosamente para o espaço artístico ad aeternum, mas para uma coisa mais transitória. Daí imaginar a perda artística, tudo o que não se fez desde essas paredes falsas.

GM: Diríamos quase que, às vezes, o interesse deste espaço enquanto espaço artístico é quase proporcional ao facto de ele não ter sido concebido como um espaço artístico. Às vezes parece que é isso que justamente desperta e ativa o interesse artístico que aqui podemos encontrar.

Ramiro: Sim, há uma série de camadas diferentes, daquilo que já falámos antes. Quer as qualidades físicas propriamente ditas, quer depois toda a história que está por trás do lugar. Portanto há uma série de camadas que são tidas em conta, não tem de ser necessariamente só uma ou outra sobreposta, mas claro que elas são todas tidas em conta quando vimos aqui abrir as portas.

GM: Em Camera Lucida, o espaço da Quadrum é experimentado quase vazio. Este aspeto, por si só, poderia conduzir-nos pela história da arte até vários casos que, excetuando a premissa de esvaziamento do espaço expositivo, pouco terão em comum com este vosso projeto. Pense-se, por exemplo, na intervenção Le vide, de Yves Klein, na Galeria Iris Clert de Paris, em 1958. Vêm igualmente à memória algumas propostas dos anos 60 e 70, na senda de tendências amplamente apelidadas por “crítica institucional”. Uma delas é a intervenção de Michael Asher na Claire Copley Gallery de Los Angeles, em 1974, onde Asher esvaziou a sala de exposição e eliminou a parede que fazia a separação com a zona de escritório (aqui na Quadrum sabemos bem que a Dulce d’Agro se sentou ali atrás, ao fundo da sala de exposição, mas o espectador tinha de entrar pela entrada habitual da galeria e passar pela exposição toda até chegar à “mesa dela”). Com esta e outras ações, Asher questionou os sistemas de legitimação e valoração do objeto artístico, quer num plano filosófico, quer sociológico, quer económico e de mercado. Outro caso radical é a Closed Gallery (1969) de Robert Barry, em que o artista concebe e endereça convites para a sua futura exposição, mas especificando que as galerias em causa estarão fechadas. É um questionamento limite da importância do espaço físico e da experiência que nele acontece para as “equações” da legitimação artística. Talvez seja interessante adicionar ainda dois exemplos que fogem um pouco desse eixo mais eurocêntrico. O primeiro é um projeto do coletivo 3Nós3, de São Paulo, constituído por Rafael França e Hudinilson Urbano Júnior, ambos já falecidos, e por Mário Ramiro. Foi uma intervenção intitulada X-Galeria (1979), em que os artistas colocaram faixas em forma de “x” nas portas das galerias da cidade, fechando as galerias numa ação clandestina, à noite, comentando assim os projetos burgueses que estavam a ser apresentados nestes espaços e a aplicação dos mesmos no projeto da direita, lembrando também a inacessibilidade desses espaços mais conservadores à vanguarda. Pode-se também evocar a obra Encierro (confinement), que a artista argentina Graciela Carnevale organizou em 1968. Aconteceu num espaço cedido pelo Instituto Di Tella em Buenos Aires ao Grupo de Arte de Vanguardia. Carnevale deixou o espaço completamente vazio, convidou os participantes a entrar na sala e fechou a porta. A artista soube apenas do que aconteceu posteriormente, pelo que lhe foi dito por aqueles que estavam dentro ou fora do espaço. A investigação de práticas artísticas que destacam “o vazio” foi relevante para a conceção de Camera Lucida?

Ramiro: Eu acho que aquilo que estava a dizer volta nesta pergunta: há uma série de camadas da história que são tidas em conta, portanto, não ignoramos essas ações. Acho que, desde o início, o projeto nunca passou por uma linhagem vinda da institutional critique. O Asher quando tira as paredes da galeria, deixa lá as estruturas, portanto esse ato de remoção é quase mais importante do que o espaço que depois é visitado. Há esse foco muito forte na remoção, no ato de remover. Isso a nós não nos interessou, interessava-nos expor o espaço vazio mas, como estava a dizer há bocado, a remoção era só uma maneira de permitir que aquilo que tínhamos pensado há seis anos se tornasse realidade. Entretanto, nem precisámos de ser nós a ir atrás dessa remoção, que acabou por acontecer5. Portanto sim, o vazio… claro, é isso, quer dizer, se estamos a apresentar um espaço que é tido como galeria de arte, que tem uma história por trás, importante no nosso panorama, que vem, precisamente, desse tempo de experimentação ― que acompanha, ao mesmo tempo, a institutional critique e uma série de outras práticas — temos essas camadas por trás, portanto não as ignorámos. Também não quer dizer que estejamos focados a construir um discurso à volta dessa história que existe, mas claro que está cá por trás, de alguma maneira.

Thierry: É uma coincidência do próprio espaço. Nós não precisámos dessa ação de esvaziar. Não é bem a ideia de esvaziar, é de preencher. Eu não estou a esvaziar o espaço, estou a preenchê-lo. E tirámos os ensinamentos que queríamos tirar, nós viemos cá com um objetivo muito preciso: nós queríamos tirar imagens deste espaço, da transparência e… nós viemos cá para estudar, com um objetivo que não mudou desde a primeira conversa.

GM: Preencher com as vossas imagens espelhadas?

Thierry: Sim, queríamos usar este espaço e ver o que fazemos, e tínhamos de ser os dois.

Ramiro: Sim, mas, para mim, estas imagens que produzimos são uma espécie de brinde. O trabalho principal e o foco primário, primitivo, primordial, é precisamente a visita ao espaço.

GM: Claro. E o Thierry quando falava de esvaziar como forma de preenchimento, é preenchimento de experiência, não é? O esvaziar multiplica a experiência, a experiência potencial.

Ramiro: Sim, sim.

Thierry: Sim, é ao contrário. Tenho o espaço de exposição e o espaço de representação. Eu estou a preencher os dois espaços, portanto não há… é o máximo que eu posso fazer. Não estou a esvaziar nada, estou a preencher o máximo possível. Mas não podemos confundir pôr um tecido preto em cima de um quadro, dizendo que esse quadro não pode ser visto, por razões que o autor entende ou o tempo entende, e abrir o espaço. Nós abrimos o espaço. Abrimos o espaço cheio, o mais cheio possível, na medida em que qualquer adição implica uma subtração. Nós, como não lhe adicionámos nada, só tirámos ensinamento, e a partir dele preenchemos o espaço que é o nosso, preenchemos o espaço de projeção e de representação, e saímos satisfeitos, completamente preenchidos. E penso que o espaço ficou completamente preenchido também.

GM: Sim, e os casos já referidos funcionam, acima de tudo, como desbloqueadores de reflexão, até mesmo por contraste, tentando respeitar a especificidade deles em confronto com a especificidade da vossa ação aqui. Aliás, isso é particularmente evidente no caso do Barry, em que de facto é quase primário ver no gesto dele, pelo menos do ponto de vista formal, o inverso do vosso: vocês abrem, ele fecha.

Thierry: O fecho é uma ação artística. É uma ação política e artística. Na verdade, nunca consegues fechar a galeria. Em termos etimológicos, galeria vem de Galileia, uma zona onde tudo se passa, onde nada se pode impedir. Não se pode fechar a galeria. Não quero refletir sobre essa questão, parece uma reação mais do que uma ação, mas é um gesto artístico-político. Não deixa de ser sempre um ato político, a arte não deixa de ser sempre também um ato político.

GM: Sem dúvida. E a questão que ele foca, também, é que o encerramento físico da galeria não é o seu encerramento conceptual, antes pelo contrário.

Thierry: Claro! A questão é essa… “Agora vejam na vossa cabeça”. É por isso que ele está a fechar… “Olhe para si”, ou o que for…

GM: Uma questão mais contingente e “confinada”, digamos assim, ao tempo que atravessamos. Na atual situação pandémica, as relações intersubjetivas e comunitárias presenciais – que possivelmente seriam potenciadas nesta Quadrum quase vazia e tão comunicante com o exterior – estão particularmente condicionadas. No fundo, as coreografias dos nossos corpos e mentes tendem a ser especialmente ponderadas a cada passo. Que impacto terão tido os constrangimentos sociais da pandemia na experiência desta exposição e como os anteviram? Será que reforçam um mecanismo inverso, isto é, uma meditação especialmente individual sobre o que é uma galeria “despida” de objetos e de gente? Talvez uma consciencialização mais íntima deste espaço público, da sua arquitetura específica e das conotações subjetivas com que pode ser carregada?

Ramiro: Como já foi dito, o projeto e a ideia precedem o tempo em que acontece. Portanto, quando decidimos que queríamos fazer isto, estávamos longe de imaginar que viveríamos algum dia uma situação como a que estamos a viver. Claro que, depois de começar esta situação da pandemia, o projeto não foi alterado, mas eu até, em brincadeira, tenho dito que é um projeto perfeito para a pandemia, porque não pode haver mais ventilação natural. [risos] Não há objetos a obstruir a circulação de ar, portanto, quase que nem dá vontade de usar máscara cá dentro quando a exposição está no funcionamento normal, se não houver mais pessoas. Mantemos o distanciamento físico muito facilmente, porque isto não enche. Também nunca foi propriamente a ideia ou o objetivo encher isto com pessoas. Se por acaso acontecesse, aconteceria, nos dias que correm já não pode. A habitação do espaço é uma coisa que é… entregue à sorte.

Thierry: E reparem que nunca houve, desde o princípio, a ideia de uma inauguração — nunca houve. Nós podemos chegar ao esboço original, à folha A4 que entregámos, e nunca houve a ideia de uma inauguração.

Ramiro: Há bocado, estava à procura dos e-mails para perceber exatamente quando é que foi que fizemos a proposta a primeira vez, e foi há seis anos, em Setembro de 2014. E estava a reparar que já não me lembrava que um título provisório, na altura, era Diálogo. Depois cai por terra e passa a tornar-se Camera Lucida, num gesto mais elíptico, se quisermos.

Thierry: Essa alteração de Diálogo para Camera Lucida… é bonito, tem uma certa lógica. Ou de Camara Lucida para Diálogo. Agora se fizéssemos… Podíamos mudar outra vez o título e chamar a isto Diálogo.

GM: Tendo em conta esta avalanche de informação e de “injeção” do assunto dominante na sociedade atual, todo este clima, toda esta tendência que estamos a atravessar, será que pode influenciar suficientemente um visitante ao ponto de ele trazer essa experiência exterior para aqui, e ver quase um elemento apocalíptico neste esvaziamento todo? Será que isso é qualquer coisa que poderá ser mais frequente, menos frequente, esse tipo de interpretação? Isto só pegando neste fator totalmente contingente.

Ramiro: Talvez. Cada pessoa carrega o seu próprio mundo consigo. Portanto, pode haver alguém que, vivendo este período, visite o espaço e a cabeça viaje para esse lugar apocalíptico”, ou… Mas isso é um princípio universal, que é, a partir do momento em que se torna pública uma ideia, ela deixa de ser nossa e cada um passa a entendê-la como quiser, não é?

Thierry: Mas eu penso que não. O objeto, este objeto, este sítio que podemos tratar por “objeto”, não leva à ideia apocalíptica. Porquê? Porque a ideia apocalíptica (enquanto estava relativamente bem — tirando tudo o que estava mal) [risos] voltou a estar na moda, falou-se muito nos anos 50, 60, alguns filósofos até… não: eu vi mais nos anos 60, 70… volta a ser uma ideia discutida por filólogos ou até mesmo filósofos e pessoas em geral e tem que ver com uma série de imagens, tem que ver com textos, tem que ver com sentimento, obviamente, mas tem que ver com a ideia das coisas estarem interligadas umas com as outras – todas! O que, obviamente, leva-nos ao Apocalipse, não é? Tudo está ligado, em cadeias, e leva-nos ao precipício, obviamente. Este espaço, este objeto, acho que não interliga tudo. Acho que é um espaço de renascimento, em que, repito, coabitam um espaço de representação e um espaço de projeção, em tempo real, e este objeto não leva à ideia de que todos os mares estão ligados uns com os outros e vão criar esta avalanche da qual ninguém sobrevive. Não, acho que este objeto não leva a isso.

GM: E é interessante, se calhar, apontar as próprias valências arquitetónicas deste espaço como um ponto de resistência a essa ideia. Até podemos fazer um exercício: vamos imaginar que estavam cá as paredes falsas, já tão faladas, e que o visitante encontrava o espaço vazio com as paredes falsas, talvez canalizasse mais para esse tipo de sentimento…

Ramiro: Sim, mas isso não aconteceria com o nosso nome. [risos]

GM: Sim, não passa minimamente pelo vosso projeto. Era só para tentar dar alguma concretização à questão apocalíptica” que foi levantada. Estamos aqui agora, a luz entra por todo o lado, é quase uma resistência a essa tendência mais…

Ramiro: Obscurantista.

GM: Mais depressiva e obscurantista da solidão que, às vezes, hoje em dia, é quase inevitável que nós teremos de atravessar temporariamente. Uma solidão “prática”, digamos assim.

Ramiro: Eu não sei se uma pessoa que visite este espaço com paredes se sente mais sozinha do que no espaço sem paredes. Porque podemos estar sozinhos no meio de uma multidão também, não é?

GM: Se eventualmente havia algum eco remoto de uma ideia de “arte relacional” neste vosso trabalho, ele processa-se agora de um modo ainda mais peculiar. Parecem ganhar maior alcance os contrastes entre Camera Lucida e, por exemplo, a peça Untitled 1992 (free) na 303 Gallery, em Nova Iorque, a primeira das célebres experiências de Rirkrit Tiravanija que incluem uma refeição no espaço expositivo. Trata-se de um caso marcante para a “Estética Relacional” teorizada por Nicholas Bourriaud. Gostariam de debater os confrontos entre Camera Lucida e este conceito de “Estética Relacional”?

Ramiro: Não. [risos]

Thierry: Tirando as coincidências de isto ser um refeitório, que nunca chegou a ser. [risos]

Ramiro: Pois, exato, há essa coincidência simpática. [risos]

Thierry: As reverberações à volta da mesa, obviamente… tudo se passa à volta da mesa, não é? Tudo se passa…

Ramiro: Sim, partir pão é uma coisa ancestral. Não, o Bourriaud e a “Estética Relacional”, nunca passou por mim.

Thierry: Porque a nutrição, fora alimentos… Essa coisa do anel da boca, de onde passa a palavra e entram ideias transformadas em comida, ideias culinárias, coisas confecionadas, feito com amor, em princípio, que vem de fora para dentro. E para fora vamos dizer “Mmm… como está bom!”. Obviamente que o fazer artístico vem daí também. Ou da impossibilidade de isto ocorrer. Ou da violência de quando isto ocorre. Quando o mundo interior e o mundo exterior… Obviamente que todas as obras estão na base de…

Ramiro: Estão sempre em relação com qualquer coisa, seja com o observador, seja com o espaço em que se inserem. Não há arte sem relação.

GM: Sim, mas isso no fundo é a redundância deste conceito de “estética relacional”, não é?

Ramiro: Sim. Mas isso é um conceito curatorial e da teoria de quem vê de fora, não é de quem faz.

GM: Isso é o ponto, talvez. E é preciso distinguir: uma coisa é a peça do Tiravanija, outra é o encaixe dela numa teorização do Bourriaud, que depois foi cunhada com o termo, algo redundante, como talvez todos nós concluiremos, de “estética relacional”. Mas, em todo o caso, a pergunta vinha para fazer esse confronto. Tal como os outros exemplos eram exemplos de contraste, este também o seria. Tentar perceber como é que esta questão da “relacionalidade”, principalmente se encarada do ponto de vista de uma proximidade física, social, intersubjetiva, como é que ela está a ser problematizada pelo espaço da Quadrum vazio, e numa situação pandémica, neste caso.

Ramiro: Há desde logo um gesto que acho que se prende um bocado com estas ideias de que se estava a falar, ainda antes da “estética relacional”, mas que tem que ver com, além do tempo que estamos a viver neste momento, também com essa ideia do “comunitário, que é sempre uma coisa altamente problemática, nunca se sabe exatamente do que é que se está a falar. Mas há um gesto que é importante, que é: a única coisa que aqui pousámos, que são estes documentos fotográficos, podem ser vistos quer desde o lado de fora, quer desde o interior do espaço. Portanto, ninguém necessita de entrar na galeria para ver a nossa proposta, para ver este trabalho. Além das condições físicas do próprio espaço, há esta oferta de uma dualidade.

GM: Mas isso afeta aquele elemento, porque depois a experiência do espaço, que também é uma experiência exterior e interior…

Thierry: Não precisas de entrar! Isso é uma liberdade que te é dada.

GM: Podes ficar lá fora apoiado pelo momento, ou solitário ou até em contexto de bar, de café, que leva a proposta inicial do refeitório daqui para lá fora. [risos]

Ramiro: Sim, são possibilidades que depois cada um tem a liberdade de as pôr ou não pôr em prática.

Thierry: De experienciar, ou não. Podes ser o testemunho, só, de um acontecimento. Estás lá fora e vês que alguma coisa ocorreu, e não querer praticá-lo, ou o contrário. Embora este seja um espaço muito aberto, é um espaço também muito fechado, que não obriga a entrar, mas que delimita, justamente, embora seja muito aberto. Porque, de tão aberto que é, cria mesmo uma diferença entre o interior e o exterior.

Ramiro: A oferta das possibilidades não quer dizer que elas depois sejam postas em prática. As possibilidades de atravessamento do espaço: eu ontem vim aqui, e vieram cá dois conhecidos meus, e a maior parte das pessoas tem tendência a entrar pela entrada, mesmo quando a fachada já está completamente aberta. [risos] Portanto é curioso, isso. Depois há um condicionamento que cada um faz a si próprio.

GM: Mas há também muita gente a entrar pelas portas da fachada. Curiosamente, anteontem estiveram cá algumas pessoas que não são portuguesas, não são de cá, se calhar não estão habituadas ao espaço, e entraram imediatamente pela fachada. E também há aqui uma coisa interessante: agora, com a mudança da hora, às 18:00 é de noite, e a alteração aqui dentro é incrível. O “afamado” lusco-fusco é uma presença muito substancial aqui.

Ramiro: Isso é uma coisa que nos interessava desde o primeiro momento, possibilitar a visita ao espaço com as variações de luz do dia e da noite, e das luas também, já agora, apesar de as luas mal se verem dentro da cidade com a iluminação artificial. E tivemos esta sorte ótima: precisamente durante esta quinzena mudou a hora, portanto é possível visitar o espaço à noite. Não acrescentámos luz artificial cá dentro, para se viver esta “câmara clara” nas várias potencialidades. Foi uma sorte. Uma sorte, mas que tinha sido pensada.

GM: A própria meteorologia gera alterações.

Thierry: Mas foi o Tobi que fez, foi o Tobi que programou. [risos] Começa na lua nova e acaba na lua cheia! [risos] Nós estamos à espera há seis anos! Portanto, seja uma coincidência. Eu vivo muito de coincidências.

Ramiro: É uma coincidência feliz. É um feliz acaso.

Thierry: Mas o Diálogo, aliás, vem da ideia do lusco-fusco, em que há uma separação entre o dia e a noite, um momento em que se pode decidir.

Ramiro: Ou uma união.

Thierry: Ou uma união. Ou como a voz quebra o silêncio. Essa dialética. Por isso é que ao princípio se chamava Diálogo, por causa do lusco-fusco. Porque sabíamos que íamos viver nessas horas, nesses minutos.

Ramiro: A sequência de fotografias em que aparecem os corpos é feita precisamente nesses minutos de lusco-fusco. De outra maneira não conseguiríamos os reflexos.

Thierry: Para poder ter transparência e reflexão precisamos desse momento de “lapso” entre o dia e a noite. Ou o diálogo.

[1] Nota editorial: Este desdobrável era a única peça exposta no interior do espaço. Foi apresentado numa prateleira montada junto aos vidros da fachada que dá para a rua. Trata-se também da única zona da sala de exposição cuja parede é revestida por tijolos, que ficaram à vista nesta intervenção dos artistas.

[2] N.e.: «Há um sequestro e a impossibilidade de a arte se relacionar com o resto. Como não se acredita no resto, apaga-se esse resto, faz-se um cubo branco, neutro, sem espiritualidade e fica tudo bem seja branco, preto ou verde. É como se fosse um hospital. A arte está órfã do mundo e fica hospitalizada durante um mês ou dois e depois se melhorou volta para o mundo ou vai para o cemitério. Os espaços museológicos e galerias têm com frequência um problema de arquitetura, de vocação, mas também o da relação que instauram entre as pessoas e a arte.», cf. «Rui Chafes. “Não existe arte sem a ambição de parar o tempo”», in Expresso. Atual, 27 de dezembro de 2015. Disponível em: https://expresso.pt/cultura/2015-12-27-Rui-Chafes.-Nao-existe-arte-sem-a-ambicao-de-parar-o-tempo (acedido em 28-11-2020).

[3] N.e.: Dramaturgia que revisita a história da Quadrum, com interpretação de Maria Duarte e Gonçalo Ferreira de Almeida. A peça foi encenada in situ, com a arquitetura da galeria a desempenhar um papel central. Integrou Play(Galeria Quadrum, 2011), uma exposição em vários atos, com curadoria de Ana Anacleto e Bruno Marchand [v. CRESPO, Nuno, «O teatro de uma galeria», Público. Ipsilon, 9 de setembro de 2011, https://www.publico.pt/2011/09/09/jornal/o-teatro-de-uma-galeria-22861048 (acedido em 27/10/2020)].

[4] N.e.: Projeto com coordenação de Catarina Rosendo, abordando o arco temporal 1973-1995, em que a Quadrum esteve sob a direção da sua fundadora, Dulce D’Agro [cf. http://quadrumarquivoparalelo.blogspot.com/ (acedido em 27/10/2020)].

[5] N.e.: A primeira exposição apresentada na Quadrum após a mais recente reabertura das fachadas de vidro foi Vaivém, de Bruno Pacheco, com curadoria de Bruno Marchand (patente entre 12 de outubro de 2018 e 13 de janeiro de 2019).

Exposição

Data
Título
Artistas
Curadoria
Galeria
15.10.2020
– 01.11.2020
Camera Lucida
Ramiro Guerreiro e Thierry Simões
Galeria Quadrum