Ensaios (sobre a mesa)

Alfredo Miguéis, Álvaro Perdigão, Ana Hatherly, Ana Jotta, Ângela Ferreira, António Passaporte, António Rafael, Charo Marin, Daniel Blaufuks, Francisco Romano Esteves, Francisco Rocchini, José Artur Leitão Bárcia, José Luís Neto, Joshua Benoliel, J. Lusitanus, Júlio Pereira, Leopoldo de Almeida, Luís Pastor de Macedo, Rafael Bordalo Pinheiro, Rosa Capeans

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ENSAIOS (SOBRE A MESA)

A partir da coleção do Museu de Lisboa

Em cada objeto da coleção, o murmúrio da cidade. Em cada caixa. Em cada estante. Em cada armazém. Há que perscrutar essa imensa acumulação de histórias e de estórias que fez cidade esta cidade. Há sempre algo por dizer. De facto, o objeto museológico existe sempre para e na iminência de ser redescoberto. Uma e outra vez. A cada dia que passa, novos significados e novos sentidos se entretecem. A cada novo olhar, outras memórias se avivam. Buscamos o olhar contemporâneo, esse olhar a partir, através, além, para lá de. Que trespassa, pela intemporalidade, a infinita cacofonia de acasos. Que reanima o objeto, depois da sujeição ao número de inventário. Procuramos transcender as classificações, as hierarquias, as etiquetas. Ensaiamos as correlações, as afinidades, as sincronias. De entre as possíveis, as nossas, as vossas.

Sobre a mesa, sem rede nem reticência. Uma casa de todos, para todos. Que se habite a coleção. Que nunca se cale. Lançamos aqui as pistas para o diálogo. Numa encenação sugestiva e inevitavelmente inacabada, as peças reclamam as nossas e as vossas interpelações. Queremos as perguntas, mais do que as respostas. Abrimos esta casa ao debate informal, despretensioso, livre. Trata-se de uma proposta para a ativação da coleção, assente na participação e, por isso, indefinidamente em construção. Que entre toda a gente, a gente desta e de qualquer cidade. Façamos a coleção. Façamos a cidade. Cruzemos as nossas e as vossas memórias. Ouçamos as experiências e as confidências, as opiniões e as sugestões, as ideias e os projetos. Reflitamos sobre os acontecimentos e as circunstâncias, os símbolos e as retóricas, as topografias e as biografias. Construamos juntos um lugar de encontro, de comunhão, de partilha.

Mas não necessariamente de concordância. Importa afirmar a crítica, no sentido da pluralidade, da divergência, da dissensão. Buscamos o olhar caleidoscópico, esse que atravessa – e que, por vezes, fere irremediavelmente – a estrutura institucional, o discurso hegemónico e a verdade absoluta. Propomos um diálogo inédito, reformador, provocatório até. Não impondo uma certa e determinada leitura. Não lendo, mas dando a ler. Que se diga. Que se contradiga. Cremos na contradição, tanto ou mais que no consenso.

Em cada objeto da coleção, a latência do agora, essa urgência de contemporaneidade. Há que trazer a coleção à luz desta cidade, a de hoje, hoje e sempre, para que se mantenha como organismo vivo. Convidamos ao debate a partir das micronarrativas, dos fragmentos ou mesmo dos restos. O que fica do que passa? O que fica para lá da espuma das coisas? Pensemos a coleção em todas as suas vertentes – histórica, antropológica, simbólica, urbanística, social, económica, por aí adiante – e no confronto com a atualidade. É sob a luz destes dias que a coleção respira, mesmo que aludindo a outros, mais ou menos distantes. Concebamos a exposição como ponto de partida para a recuperação da vitalidade interrompida. Um novo fôlego. Em cada conversa, a epifania.

Sobre a mesa, sem mestre nem aprendiz. Uma exposição de todos, para todos. É a interpretação como exercício de questionamento. É a curadoria como trabalho de revelação. Diríamos até como prática social, não querendo, ainda assim, ceder às categorizações ou às tendências. Além disso, a superação do abismo entre a vida e a arte. Mas também entre a arte e o artefacto. Não há por que restringir, preterir, elitizar. Construamos juntos um espaço de experimentação. Façamos da galeria o nosso laboratório. Reencontremos a cidade no cidadão anónimo, no lisboeta desconhecido. Em cada retrato seu. Em cada objeto de decoração ou de mobiliário. Em cada representação, artística ou não, dessa pertença. E tanto que fica por expor. E tanto que fica por contar. Devolvamos a coleção à cidade, mesmo que uma ínfima parte, assumindo o compromisso da sua revivificação.

MANIFESTO

“Conjunto de objetos classificados”. É esta a definição enciclopédica de coleção. Objetos naturais ou artificiais, mas também imateriais, são agrupados segundo critérios informados por metodologias científicas, por gostos ou sentimentos pessoais. 

É sobre a mesa que nos debruçamos sobre esta definição enquanto extensão da existência do Homem, uma preparação para a sua morte e legado.

É sobre a mesa que pretendemos dar uma vida comum a esta coleção, fruto de muitos acasos e intersecções e habitá-la, ou torná-la habitável, através de diversas experiências de partilha, confronto e reflexão dentro do próprio espaço da galeria.

É sobre a mesa que sugerimos uma informalidade semelhante às quase extintas “casas do povo”: um espaço comunitário, de confluências, permutas e partilhas, de aprendizagem e conversa.

É sobre a mesa que se conversa, uma casa de todos, para todos.

Curadores: Ana Quintino, Carolina Machado, Carolina Serrano, Carolina Trigueiros, Catarina Monteiro, Elsa Garcia, Inês Cabral Fernandes, Madalena Galvão, Marco Oliveira, Marta Almeida Santos, Patrícia Ferreira, Rosa Ruivo, Rui Almeida, Stefanie Pullin, Thiago Verardi, Zé Rui Pardal Pina

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