– 01.04.2018
Este coração posto a nu
Na esfera da literatura monástica é conhecida a lenda de “Mestre Eckhart e o menino nu”. Trata-se de um breve diálogo entre uma criança e o filósofo medieval renano, porventura escrito por um seu discípulo ou seguidor. Nesse texto, de carácter alegórico, narra-se um encontro onde o místico dominicano e personagem mais nova encontram no acto de despojamento, na nudez, a via para a revelação da essência contida no coração: a pobreza enquanto virtude crucial da existência. É através dessa despossessão, através da qual nos acercamos do nada, que somos confrontados com o facto da vida e da morte se equivalerem na sua suprema importância. Não devemos, pois, desperdiçar o nosso tempo:
“O Mestre levou o menino à sua cela e disse:
– Podes levar a roupa que quiseres.
– Mas, assim já não seria rei!
E desapareceu
O menino era Deus em pessoa, e viera para se divertir com ele.”
“Nudez – uma invariante” é não só o título da exposição de Pedro Morais, mas também o nome de um projecto inédito, agora revelado. Esta obra, que ocupa o primeiro piso do Pavilhão Branco, é dedicada quer a Leonardo da Vinci, para quem a pintura é “cosa mentale”, quer a Marcel Duchamp, que projectou essa ideia para uma quarta dimensão. Há um terceiro nome que percorre esta mostra, o japonês Hogen Yamahata, mestre zen contemporâneo, do qual se escuta a voz a recitar um texto fundamental daquela escola: o “Sutra do Coração”, onde, a determinada altura se lê: “(…) tudo, todos os fenómenos têm por natureza o vazio; não são nem produzidos nem destruídos, nem impuros nem imaculados, nem crescentes nem decrescentes.”
Através desta obra, Pedro Morais propõe uma reflexão acerca do carácter impermanente da existência, servindo-se, para isso, da pintura. Podemos nomear mesmo este trabalho como uma instalação pictórica, onde as cores primárias e complementares se espelham, num constante movimento de velaturas – o “sfumato”, tão utilizado por Leonardo –, que nos convidam a descobrir um espaço pleno de simbolismo, onde podemos encontrar essa passagem da virgem a noiva, protagonizada pela figura da maternidade. L.H.O.O.Q. [“Elle a chaud au cul”], como inscreveria, em 1919, Duchamp, depois de pintado o bigode, numa reprodução da “Mona Lisa”.
A exposição inclui ainda, no rés-do-chão, uma série de maquetas, com as respectivas caixas, e trabalhos recentes de Pedro Morais, sendo ainda apresentadas as duas primeiras “células” realizadas pelo artista em 1986. Podemos assim confrontar-nos com um percurso de uma rara consistência na arte portuguesa das últimas décadas: uma obra de um rigor atroz, onde confluem elementos de diferentes tradições: a mística renana medieval, a alquimia, o zen, a pintura enquanto “coisa mental”, de Leonardo a Duchamp, passando por Dacosta, os espaços solitários de Raymond Roussel, ou a prática em ateliês livres – de arquitectura, de pintura, de experimentação –, não só enquanto aprendiz, mas também como professor.
Nesse face-a-face onde qualquer falha deixa entrar a luz, quando a poeira assenta no chão, ou as nuvens atravessam o céu, tudo pode acontecer: uma corrente de ar, um espirro, a aparição de uma chama, o som da água a correr, o brilho dos pirilampos, as douradas sementes sobre terra azul, uma lâmina que surge de uma parede e Ah! As papoilas. Basta estar sentado para que o acontecimento, a nudez, se produza:
“Para além do mental nada existe. As flores nascem e morrem – como é simples a noite clara.” (Pedro Morais)
Quase uma retrospectiva de bolso, esta exposição é para transportar para casa, levando connosco este coração aqui e agora, uma vez mais, posto a nu.
-Óscar Faria, curador
– 01.04.2018