Nudez – Uma Invariante

Pedro Morais

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Este coração posto a nu

Na esfera da literatura monástica é conhecida a lenda de “Mestre Eckhart e o menino nu”. Trata-se de um breve diálogo entre uma criança e o filósofo medieval renano, porventura escrito por um seu discípulo ou seguidor. Nesse texto, de carácter alegórico, narra-se um encontro onde o místico dominicano e personagem mais nova encontram no acto de despojamento, na nudez, a via para a revelação da essência contida no coração: a pobreza enquanto virtude crucial da existência. É através dessa despossessão, através da qual nos acercamos do nada, que somos confrontados com o facto da vida e da morte se equivalerem na sua suprema importância. Não devemos, pois, desperdiçar o nosso tempo:

“O Mestre levou o menino à sua cela e disse:
– Podes levar a roupa que quiseres.
– Mas, assim já não seria rei!
E desapareceu
O menino era Deus em pessoa, e viera para se divertir com ele.”

“Nudez – uma invariante” é não só o título da exposição de Pedro Morais, mas também o nome de um projecto inédito, agora revelado. Esta obra, que ocupa o primeiro piso do Pavilhão Branco, é dedicada quer a Leonardo da Vinci, para quem a pintura é “cosa mentale”, quer a Marcel Duchamp, que projectou essa ideia para uma quarta dimensão. Há um terceiro nome que percorre esta mostra, o japonês Hogen Yamahata, mestre zen contemporâneo, do qual se escuta a voz a recitar um texto fundamental daquela escola: o “Sutra do Coração”, onde, a determinada altura se lê: “(…) tudo, todos os fenómenos têm por natureza o vazio; não são nem produzidos nem destruídos, nem impuros nem imaculados, nem crescentes nem decrescentes.”

Através desta obra, Pedro Morais propõe uma reflexão acerca do carácter impermanente da existência, servindo-se, para isso, da pintura. Podemos nomear mesmo este trabalho como uma instalação pictórica, onde as cores primárias e complementares se espelham, num constante movimento de velaturas – o “sfumato”, tão utilizado por Leonardo –, que nos convidam a descobrir um espaço pleno de simbolismo, onde podemos encontrar essa passagem da virgem a noiva, protagonizada pela figura da maternidade. L.H.O.O.Q. [“Elle a chaud au cul”], como inscreveria, em 1919, Duchamp, depois de pintado o bigode, numa reprodução da “Mona Lisa”.

A exposição inclui ainda, no rés-do-chão, uma série de maquetas, com as respectivas caixas, e trabalhos recentes de Pedro Morais, sendo ainda apresentadas as duas primeiras “células” realizadas pelo artista em 1986. Podemos assim confrontar-nos com um percurso de uma rara consistência na arte portuguesa das últimas décadas: uma obra de um rigor atroz, onde confluem elementos de diferentes tradições: a mística renana medieval, a alquimia, o zen, a pintura enquanto “coisa mental”, de Leonardo a Duchamp, passando por Dacosta, os espaços solitários de Raymond Roussel, ou a prática em ateliês livres – de arquitectura, de pintura, de experimentação –, não só enquanto aprendiz, mas também como professor.

Nesse face-a-face onde qualquer falha deixa entrar a luz, quando a poeira assenta no chão, ou as nuvens atravessam o céu, tudo pode acontecer: uma corrente de ar, um espirro, a aparição de uma chama, o som da água a correr, o brilho dos pirilampos, as douradas sementes sobre terra azul, uma lâmina que surge de uma parede e Ah! As papoilas. Basta estar sentado para que o acontecimento, a nudez, se produza:

“Para além do mental nada existe. As flores nascem e morrem – como é simples a noite clara.” (Pedro Morais)

Quase uma retrospectiva de bolso, esta exposição é para transportar para casa, levando connosco este coração aqui e agora, uma vez mais, posto a nu.

-Óscar Faria, curador

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Programa Público

Data
Título
Com/de
Categoria
Local
20180324
24.03.2018
Jornada “Para ser visto: em torno da obra de Pedro Morais”
Pedro Morais, Óscar Faria, Rui Calçada Bastos, Edgar Massul, Marta Soares, Francisco Tropa, João Fernandes, Tomás Maia, José Luís Porfírio
Conferência
Pavilhão Branco

Publicação

Título
Textos de
Nudez – Uma Invariante
Sara Antónia Matos, Pedro Morais, Óscar Faria