– 11.12.2016
Desenho, desenho de desenhos. Repetidos, delicados, luminosos, obscuros. São muitos os desenhos que Rui Moreira revela em Os Pirómanos depois de uma ausência de sete anos do circuito expositivo português. Ei-lo que regressa hoje para nos deixar ver o fruto do seu trabalho, aquilo que fez, que fabricou. Obras sem utilidade alguma, mas necessárias para que o mundo perdure. Desenho, desenho, desenhos aqui emoldurados, protegidos, que ele fez numa solitude solidária, num abandono à acção da actividade artística. Contra a aceleração e a velocidade, com paciência apaixonada.
Tinha sido assim em “Nossa Senhora do Aborto”, mostrado em 2007. Desenho que, planando, parece repousar sobre aqueles que o observam. Desenho de uma divindade velada por linhas, motivos, traçados que se declinam no seu interior, e do qual se desprende um enxame de pássaros. Desenho que não é apenas desenho, pois nele estão reificadas viagens, experiências, outras obras, contexto sociais e políticos. A realidade do mundo. No seu princípio estiveram, um regresso a Trás-os-Montes, as festas dos Caretos em Podence, Itália, uma viagem à Toscânia, para ver a Madonna del Parto, de Piero della Francesca (reconstituindo o percurso das personagens de Nostalgia (1983) de Andrei Tarkovski), o referendo à despenalização do aborto em 2007. Uma convergência de movimentos, de correntes, de caudais que desembocaram num desenho, dando-lhe vida. Assim se pode descrever uma parte significativa do processo de trabalho de Rui Moreira, artista cujo desenho é feito no mundo e é do mundo. Não apenas por causa daquilo que, da criação artística, o enleva, mas também porque reconhece a objectividade do mundo que o rodeia. Não pretende escapar-lhe, apenas transcendê-lo.
Nesta exposição, os desenhos que são grandes, quase majestosos, nunca esmagam quem os vê. São grandes e generosos para acolherem quem chega e permitirem ver, imaginar e lembrar a performance física, o esforço, o cansaço satisfeito do artista. Os seus encontros, as suas experiências. Veja-se “I am a Lost Giant in a Burnt Forest”. O título cita uma frase do livro 2666, de Robert Bolaño e há, transfigurada, a memória de um incêndio que o artista testemunhou em Trás-os-Montes. Não são as únicas presenças neste desenho em que vibra uma desolação confusa, com os seus humores, lampejos, rasgos. O corpo que tem na mão o seu principal instrumento manifesta-se com a mesma solicitude com que Rui Moreira viaja.
O que aparece em Os Pirómanos não resulta só de um processo mental, introspectivo, mas, ou sobretudo, de um movimento físico, de uma acção. Rui Moreira conjura a actividade do artista como aquele que, para construir mundo, acrescentando-lhe coisas, tem de fazer travessias, conhecer os lugares. Estar dentro das paisagens, com as pessoas e diante dos elementos naturais. O seu fazer pode ser entendido como cultura, se entendermos esta como a atitude que cria as condições da nossa habitabilidade no mundo. Atitude que é afinal, também, a do espectador, daquele que contempla. Rui Moreira concilia as duas dimensões numa só. Ele é, ao mesmo tempo, fabricador e espectador, artesão e homem que preserva. Trabalhando no interior e no exterior do seu ateliê, revisita a relação entre o mundo dos homens e o mundo natural, com a finalidade de produzir coisas sem utilidade alguma. É nesse sentido que devem ser entendidas as suas viagens ao deserto, no Sul de Marrocos, e a sua intensa curiosidade pelos processos que levaram à realização de obras cinematográficas como Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola ou Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog. O seu desenho não provém de uma inspiração ou de qualquer tipo de revelação, mas do trabalho num sentido entretanto esquecido: como actividade que não tem como fim último o consumo ou o mero suprimento das necessidades do corpo, mas a conclusão, a feitura, o acabamento do objecto artístico.
Nessa actividade, os desenhos de Rui Moreia surgem-nos, com frequência, numa geometria volúvel, hipnótica, indelével, sinuosa e insinuante, repegando memórias das viagens, fragmentos de outros artistas e obras, para criar sobre a criação. Repare-se, por exemplo em “The Machine of Entangling Landscapes VI”, instigada pela leitura de A máquina de emaranhar paisagens de Herberto Hélder, ou em “The Holy Family I”. Na primeira, vemos círculos dentro de um círculo maior, preenchidas por formas geométricas que suscitam a ideia de movimentos de rotação e progressão. Ou a imagem de um labirinto de estrelas sobre o chão do deserto, que rejeita separar-se da Terra (Rui Moreira furta-se à alienação do homem do mundo e da terra). Na outra obra, resplandece, da exaustação do artista, a luminosidade de outros três círculos que dá ao desenho uma dimensão escultórica. Bem diferente da série “Black Star”, em que os últimos desenhos fogem à luz, sofrem com a luz natural. Não se deixam ver, como as imagens de Branca de Neve, de João César Monteiro, outra das companhias de Rui Moreira.
Com “Telepath I” e “Telepath III (dedicated to Herberto Helder)” regressa, se não a luz, a força violenta e doce da cor. Chamemo-los retratos que brilham intensamente, construídos pelas paisagens do deserto e das montanhas, pela experiência da paternidade (que devolve ainda mais intensamente o artista ao mundo), pelos desenhos de desenho, pela poesia de Herberto Helder, pelo reconhecimento da vida como momento que medeia o nosso nascimento e a nossa morte, e da arte como aquilo que lhe sobrevive.
– José Marmeleira
*O texto não foi escrito segundo o Acordo Ortográfico
– 11.12.2016