Os Pirómanos

Rui Moreira

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Desenho, desenho de desenhos. Repetidos, delicados, luminosos, obscuros. São muitos os desenhos que Rui Moreira revela em Os Pirómanos depois de uma ausência de sete anos do circuito expositivo português. Ei-lo que regressa hoje para nos deixar ver o fruto do seu trabalho, aquilo que fez, que fabricou. Obras sem utilidade alguma, mas necessárias para que o mundo perdure. Desenho, desenho, desenhos aqui emoldurados, protegidos, que ele fez numa solitude solidária, num abandono à acção da actividade artística. Contra a aceleração e a velocidade, com paciência apaixonada.

Tinha sido assim em “Nossa Senhora do Aborto”, mostrado em 2007. Desenho que, planando, parece repousar sobre aqueles que o observam. Desenho de uma divindade velada por linhas, motivos, traçados que se declinam no seu interior, e do qual se desprende um enxame de pássaros. Desenho que não é apenas desenho, pois nele estão reificadas viagens, experiências, outras obras, contexto sociais e políticos. A realidade do mundo. No seu princípio estiveram, um regresso a Trás-os-Montes, as festas dos Caretos em Podence, Itália, uma viagem à Toscânia, para ver a Madonna del Parto, de Piero della Francesca (reconstituindo o percurso das personagens de Nostalgia (1983) de Andrei Tarkovski), o referendo à despenalização do aborto em 2007. Uma convergência de movimentos, de correntes, de caudais que desembocaram num desenho, dando-lhe vida. Assim se pode descrever uma parte significativa do processo de trabalho de Rui Moreira, artista cujo desenho é feito no mundo e é do mundo. Não apenas por causa daquilo que, da criação artística, o enleva, mas também porque reconhece a objectividade do mundo que o rodeia. Não pretende escapar-lhe, apenas transcendê-lo.

Nesta exposição, os desenhos que são grandes, quase majestosos, nunca esmagam quem os vê. São grandes e generosos para acolherem quem chega e permitirem ver, imaginar e lembrar a performance física, o esforço, o cansaço satisfeito do artista. Os seus encontros, as suas experiências. Veja-se “I am a Lost Giant in a Burnt Forest”. O título cita uma frase do livro 2666, de Robert Bolaño e há, transfigurada, a memória de um incêndio que o artista testemunhou em Trás-os-Montes. Não são as únicas presenças neste desenho em que vibra uma desolação confusa, com os seus humores, lampejos, rasgos. O corpo que tem na mão o seu principal instrumento manifesta-se com a mesma solicitude com que Rui Moreira viaja.

O que aparece em Os Pirómanos não resulta só de um processo mental, introspectivo, mas, ou sobretudo, de um movimento físico, de uma acção. Rui Moreira conjura a actividade do artista como aquele que, para construir mundo, acrescentando-lhe coisas, tem de fazer travessias, conhecer os lugares. Estar dentro das paisagens, com as pessoas e diante dos elementos naturais. O seu fazer pode ser entendido como cultura, se entendermos esta como a atitude que cria as condições da nossa habitabilidade no mundo. Atitude que é afinal, também, a do espectador, daquele que contempla. Rui Moreira concilia as duas dimensões numa só. Ele é, ao mesmo tempo, fabricador e espectador, artesão e homem que preserva. Trabalhando no interior e no exterior do seu ateliê, revisita a relação entre o mundo dos homens e o mundo natural, com a finalidade de produzir coisas sem utilidade alguma. É nesse sentido que devem ser entendidas as suas viagens ao deserto, no Sul de Marrocos, e a sua intensa curiosidade pelos processos que levaram à realização de obras cinematográficas como Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola ou Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog. O seu desenho não provém de uma inspiração ou de qualquer tipo de revelação, mas do trabalho num sentido entretanto esquecido: como actividade que não tem como fim último o consumo ou o mero suprimento das necessidades do corpo, mas a conclusão, a feitura, o acabamento do objecto artístico.

Nessa actividade, os desenhos de Rui Moreia surgem-nos, com frequência, numa geometria volúvel, hipnótica, indelével, sinuosa e insinuante, repegando memórias das viagens, fragmentos de outros artistas e obras, para criar sobre a criação. Repare-se, por exemplo em “The Machine of Entangling Landscapes VI”, instigada pela leitura de A máquina de emaranhar paisagens de Herberto Hélder, ou em “The Holy Family I”. Na primeira, vemos círculos dentro de um círculo maior, preenchidas por formas geométricas que suscitam a ideia de movimentos de rotação e progressão. Ou a imagem de um labirinto de estrelas sobre o chão do deserto, que rejeita separar-se da Terra (Rui Moreira furta-se à alienação do homem do mundo e da terra). Na outra obra, resplandece, da exaustação do artista, a luminosidade de outros três círculos que dá ao desenho uma dimensão escultórica. Bem diferente da série “Black Star”, em que os últimos desenhos fogem à luz, sofrem com a luz natural. Não se deixam ver, como as imagens de Branca de Neve, de João César Monteiro, outra das companhias de Rui Moreira.

Com “Telepath I” e “Telepath III (dedicated to Herberto Helder)” regressa, se não a luz, a força violenta e doce da cor. Chamemo-los retratos que brilham intensamente, construídos pelas paisagens do deserto e das montanhas, pela experiência da paternidade (que devolve ainda mais intensamente o artista ao mundo), pelos desenhos de desenho, pela poesia de Herberto Helder, pelo reconhecimento da vida como momento que medeia o nosso nascimento e a nossa morte, e da arte como aquilo que lhe sobrevive.

– José Marmeleira

*O texto não foi escrito segundo o Acordo Ortográfico

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Programa Público

Data
Título
Com/de
Categoria
Local
20161011
11.10.2016
Visita Guiada “Os Pirómanos”
Rui Moreira
Visita Guiada
Pavilhão Branco