– 25.04.2017
Sábado e Domingo: 14h -18h
A CORTINA DOS DIAS
A superfície da História do mundo é a política, os poderes, pequenas e grandes decisões, as guerras, desastres e conflitos. Nesta História regressiva que confirma o percurso fotográfico de Alfredo Cunha reconstitui-se, como momentos decisivos, aquele caminho internacional que também nos coube como mensagem e alerta e, mais focados e mais minuciosos, os sobressaltos que o nosso país foi vivendo, desatando a mudança do todo social.
Para nossa elucidação o tempo surge-nos em blocos de decénios, do muito próximo para a sua fonte, (2000–2012, 1990–1999, 1980–1989 e 1970–1979), numa condensação global do que foi e foi mudando. Assim se passa da caixa alta e das primeiras páginas que internacionalmente nos apelava para a formação da mentalidade da época, (e, por vezes é o nosso país que as cede), para o quotidiano repescado, com a sua trama de traços imateriais assomando nos gestos, nos hábitos, no vestuário, nas emoções. Torna-se claro que as afirmações populares, os signos dos partidos, o discurso palpável das multidões, salientando-se nas paredes violadas, começa a substituir o silêncio da presença obrigatória, as procissões, as feiras de gado, as touradas e os dramas colectivos. As alterações sociais, o uso dos equipamentos públicos, a participação evolui drasticamente nos últimos decénios, mesmo no campo, ainda mítico e progressivamente desertificado. A sociedade pré–industrial do interior transforma-se em reminiscência, a participação torna-se um facto e vai vencendo a tradição.
O percurso fotográfico de Alfredo Cunha também se torna nítido. É o fotojornalista que levanta a madrugada de Abril, em 1974, com o olhar herdado da segunda guerra dos homens da agência Magnum: há o sentido épico do momento, a acção do homem comum nos acontecimentos, a tranquilidade feliz na solidariedade. Essa procura da dignidade do homem está presente ainda nas imagens do aproveitamento de utilidades no lixo urbano ou no regresso dos retornados, (símbolo maior: as bagagens junto ao Monumento das Descobertas, em Belém).
Os anos oitenta, do neo-liberalismo e da Perestroika que trará o fracionamento da URSS e a queda do Muro de Berlim, são ainda a difusão do pós-moderno que tão bem espelham os filmes de Almodóvar e o Centro Cultural das Amoreiras. Os fotógrafos, reconhecidos pela recuperação dos desviados dos finais de 50 e 60, recuperados também nos “Encontros de Coimbra”, amalgamam Cartier-Bresson, Eugene Smith ou Robert Frank com as novidades esquecidas da Lisboa, Cidade Triste e Alegre, as imagens coloniais de Jorge Guerra, a urbanidade elegante de Gérard Castello-Lopes ou o surrealismo de Fernando Lemos. O pós-modernismo fotográfico esperará para a época seguinte, com vagos ensaios e pouca convicção prática. As imagens mostram a luta evidente entre o velho e o novo, a transição difícil, a mudança insegura ganha palmo a palmo. Na década seguinte há um olhar novo sobre os países que nasceram das antigas colónias: a série de imagens em Moçambique trazem-nos o conflito da desunião política, o afundamento dos arbitrários símbolos do colonialismo português, o quotidiano das crianças que convivem com a guerra e os seus destroços metálicos: é um olhar subjectivo que se reencontra nas fotografias da World Press Photo, que hesita entre a fotografia directa e o humanismo fotográfico, já em termos de neo-documentalismo subjectivo.
No país, Alfredo Cunha acumula retratos da nova sociedade crispada, as atitudes da nova geração de estudantes, geração rasca ou pós-moderna, os jovens do rave e as profissões que surgem como arcaicas, relíquias da tradição. O olhar é outro, profundamente simbólico, mas perdeu o mito do modelo; são fotografias abertas à percepção do observador, (as gerações naquela feira de gado, a ambiguidade do duriense que carrega o cesto das uvas, o esforço sóbrio do homem do mar de Matosinhos).
Já no novo milénio, logo após o fim da guerra do Kosovo e pouco antes do ataque às Torres Gémeas, torna-se evidente que o ciclo do morticínio universal se vai prolongar. A série passa pelo conflito no Iraque, na Índia, na China, em Timor-Leste: o mundo ocidental em crise crescente, olha e é olhado pelo Oriente. Pelas imagens ecoam influências da Land-Art, (as mulheres, – indecisas, expectantes? – no desfiladeiro tunisino), do labirinto da ambiguidade e do mistério que regulam crescentemente a sociedade da transparência, aqui e ali experimentações fotográficas sobre o significado da distância: o carregador de tijolos no Brasil, num enquadramento onde a carga coincide exatamente com o arco que ainda não atravessou.
Por cá, os meetings juvenis da música de multidões, as intervenções policiais nos bairros problemáticos, aspecto externo de um Estado que deixou de ser dos políticos e se tornou empresarial, Fátima a concentrar a religiosidade e a tradição luxuosamente actualizada ou aquele pastor moderno que se afirma como opção.
É um país em transição, que perde a população do interior, o dinamismo marítimo e as suas elites, apressando-se a morrer nas estradas e nos hospitais. Ensaios de desfocagem sublinham a indeterminação de um período onde a verdade das coisas e dos homens se definem pela argumentação e o consenso temporário.
– Maria do Carmo Serén
* o texto não segue o Acordo Ortográfico de 1990.
– 25.04.2017
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