– 13.01.2019
VAIVÉM _
Breve reflexão na primeira pessoa sobre alguns dos desafios contidos nas obras presentes nesta exposição.
Durante anos, persegui o Bruno Pacheco com questões sobre o modo como ele escolhia as imagens que vinham depois a figurar nas suas pinturas. Estava obcecado em tentar perceber o que leva um artista – e, neste caso, um artista que trabalha sobretudo a partir de imagens preexistentes – a seleccionar uma dada imagem em detrimento de todas as outras e a demorar-se nela. A lógica funcionalista que governava o meu cérebro insistia em dizer-me três coisas interdependentes: (1) que ao fazer uma pintura, o Bruno estava deliberadamente a resgatar uma determinada imagem da torrente avassaladora de imagens para cujo caudal todos nós contribuímos diariamente; (2) que à falta desse resgate a imagem seleccionada muito dificilmente conseguiria evitar ser votada à irrelevância e ao esquecimento; e (3) que o impulso que determina esse resgate só podia ser da ordem da urgência, isto é, que, de algum modo, a imagem escolhida tinha de sinalizar algo que o Bruno entendia ser importante dar a ver ao público por via da pintura e da experiência particular que ela estimula. Dito de outro modo, eu partia sempre do princípio que o valor icónico das imagens não só precedia como justificava o seu valor artístico como pinturas – algo que o Bruno, naturalmente, não podia deixar de rejeitar, ainda que respeitosamente.
Ao longo de uma entrevista de fundo que fizemos juntos no ano de 2012, o Bruno e eu debatemos esta questão em termos que iluminaram um campo bem mais vasto do que aquele que a questão originalmente previa. Como pude perceber na altura, no processo de decisão que desemboca na escolha de uma imagem pode estar contido todo um programa, talvez mesmo todo um posicionamento artístico. Ao contrário do que pensava, a escolha de uma imagem não é um ponto de partida: ela não só depende do conjunto de imagens que a precederam e, inclusive, daquelas que o Bruno antevê vir a usar (e que, juntas, formam uma espécie de léxico com o qual se conta a história do seu universo artístico), como reflecte duas outras preocupações basilares no seu trabalho, a saber: que o que se mostra nas obras não afaste aquele que vê da consciência de que está a ver uma pintura, e que a imagem lhe coloque (ao Bruno) um desafio no que respeita à sua transformação pictórica.
Ora, a primeira premissa significa que o Bruno mantém vigilância apertada sobre toda a tentação de incluir no seu trabalho quaisquer imagens de alto índice sensacionalista. Imagens de celebridades, cenas grotescas, figuras políticas, lugares históricos, pornografia, paisagens idílicas, acontecimentos de largo impacto social, narrativas, ícones de toda a espécie – todas elas estão liminarmente excluídas do favor do artista. Não porque este tenha qualquer intenção de fugir à construção de um imaginário capaz de interpelar o espectador mas, precisamente, porque pretende colocar essa interpelação num plano que transcenda o mero exercício de reconhecimento ou de um jogo de «descubra as diferenças» entre o resíduo de um já-visto e a nova condição desse já-visto em pintura. Isso aconselha, é certo, a aplicação de um critério que privilegia a subtileza, a sugestão, o nexo menos óbvio e tudo o que possa colocar o observador na disposição de participar activamente na construção deste diálogo, contrariando a sua habitual postura como espectador passivo. É uma questão de atenção, na verdade – de estimular aquele que vê a concentrar-se em algo que não só não se esgote ao primeiro olhar mas que, em última instância, também o inspire a perscrutar este algo por tempo suficiente para que a sua superfície deixe de ser um mero condutor de um conteúdo intangível – uma representação – e passe a ser um conteúdo em si mesma – uma pintura.
O facto de muitas destas imagens manifestarem um grau apreciável de ambiguidade é um dos factores que mais contribuem para a referida concentração. Aliás, uma parte apreciável do trabalho do Bruno consiste, precisamente, em retirar às imagens originais a sua, digamos, clareza para as aproximar de um estado bem mais dúbio e fugidio. Para tal, ele socorre-se de uma ampla panóplia de recursos visuais, como sejam o reenquadramento, a alteração e/ou nivelação cromática, o esbatimento ou acentuação de contrastes, a diluição da acuidade visual, entre outras. Não raras vezes, o que daqui resulta são pinturas que exploram aquela estreita franja liminar entre a figuração e a abstracção e cujo ponto de equilíbrio – ou melhor, a possibilidade de chegar a esse ponto de equilíbrio – é metade do tal desafio a que acima aludimos. A outra metade passa por escolher imagens que, à partida, lhe coloquem dificuldades na sua transposição para o campo pictórico, que ponham em cheque o saber acumulado de duas décadas de intensa e ininterrupta prática de atelier, que renovem o fascínio por esse aparente passe de mágica que é a criação de uma pintura.
Nada de mais equívoco, contudo: no caso de Bruno Pacheco, a tradução pictórica de uma imagem não provém nem de um processo alquímico, nem de uma inspiração momentânea do artista. Muito pelo contrário, ela é fruto de um aturado processo de aproximação, teste, avaliação e variação. E é precisamente neste contexto laboratorial que têm origem os trabalhos sobre papel que esta exposição mostra. A sua esmagadora maioria nasceu no âmbito dessa busca pela pintura que uma determinada imagem pode suscitar. Naturalmente, uma mesma pintura pode ter originado dezenas de obras prévias sobre papel, nenhuma delas com complexos de inferioridade face à versão que eventualmente chegou à superfície da tela. Não se trata de subserviência nem de subordinação. Estes não são esboços de pinturas: são instâncias de um processo artístico que integra momentos e corpos distintos e que de nenhum outro modo se disponibilizariam de forma tão generosa, aberta e orgânica quanto através da reunião das quatro centenas de obras sobre papel que estes livros guardam e que a exposição agora mostra.
– Bruno Marchand, curador
*Por opção expressa do autor, o texto não foi escrito segundo o Acordo Ortográfico de 1990.
– 13.01.2019