Excerto do ensaio Sérgio Mah, “A Memória das Imagens”, retirado do catálogo de Daniel Blaufuks “Hoje, nada”
“Ao longo da sua trajectória enquanto artista, Blaufuks sempre procurou formas de subjectivação e introspecção através da imagem, vinculando-a às contingências pessoais e às vivências e situações quotidianas. Na sua obra abundam as imagens de objectos, detalhes de coisas, do que se come, do que se bebe, motivos que se encontram presentes nesta exposição, em especial no conglomerado de imagens que preenche uma parede, num possível final da exposição: um copo de água (assunto recorrente na obra deste artista), um copo de leite, três limões, uma mesa depois de uma refeição, um mostruário de jóias vazio, uma caixa verde de plástico, um lenço e a única imagem realizada no exterior, um lago gelado reflectindo a luz do céu; e, na parede ao lado, quatro garrafas de água num expositor de supermercado, fotografado em Atenas em plena crise social e política. Juntas compõem um mosaico de coisas e situações facilmente reconhecíveis – algo já visto, já vivido, alhures. São imagens que convocam o infraordinário e o intra-mundano, temas no limiar do não assunto, que contornam, com sentido crítico, o espectacular e o “instante decisivo”. Em alternativa somos confrontados – como na série O Ofício de Viver (2010) ou, mais recentemente, em Tentativa de Esgotamento (2016) – com a experiência lenta, aborrecida, insípida, irrelevante da vida diária, um mundo insignificante, contudo carregado de significado. O artista acredita que uma realidade prosaica, sem adereços, crua, possui a força suficiente para se converter em espaço lírico.
Perante estas imagens somos levados a recordar que uma das mais indiscutíveis qualidades da fotografia é a sua capacidade em suscitar interesse a partir dos mais inesperados assuntos. Com efeito, a modernidade da fotografia procede também dessa competência reconfiguradora, pela qual eventos e matérias aparentemente insignificantes adquirem um relevante valor estético, poético, simbólico. Esse rasgo peculiar é o que nos habituamos a designar de fotogenia, isto é, a faculdade da fotografia para sugerir uma experiência perceptiva para além da aparência do objecto fotografado. Esta é uma condição decisiva para compreendermos a nossa relação com as fotografias, em que se destaca a capacidade de qualquer imagem para suscitar atracção, podendo esta surgir de diversas procedências. Roland Barthes, por exemplo, em A Câmara Clara, diferencia duas: uma predominantemente cultural, decorrente de valores já codificados, e que denomina de studium; e outra mais arbitrária que designa de punctum, por onde se manifesta um “terceiro sentido” imprevisível, estimulado por trajectórias e afecções individuais.
O efeito de fotogenia, enquanto factor de conversão sensível da percepção quotidiana, não deve, contudo, ser exclusivamente alocado ao campo da fotografia, sendo um sintoma do tipo de ficcionalidade que se consolida na cultura moderna: na literatura, na fotografia e na pintura, e mais tarde com o cinema, os aspectos da vida quotidiana adquirem uma importância sem precedentes, constituindo-se como um dos eixos pelo qual o sujeito experiência o real, ficcionalmente. Não é, pois, surpreendente que muitas das referências culturais de Daniel Blaufuks provenham do campo da literatura, nomeadamente de uma literatura que privilegia a observação empírica, a experiência visual e a introspecção imaginária, como são os casos de Cesare Pavese, Georges Perec, Paul Bowles e W. G. Sebald.
A fotografia renuncia a muito mais do que diz. Pertence ao silêncio, mais do que ao relato. Hoje, nada. É com base na qualidade lacunar e permutacional da fotografia que se desenvolve o imaginário de Daniel Blaufuks. Imagens que carregam uma certa verdade, que carregam uma certa ficção, em que o desejo, a angústia e a memória se imiscuem. Trata-se de um olhar que procura movimentos e transformações a partir das aparências, similares às que Jack Kerouac sentiu depois de ver as fotografias de Robert Frank no livro The Americans: «aquele sentimento louco na América quando o sol bate quente nas ruas e a música emerge da jukebox ou de um funeral próximo (…) Depois de vermos as imagens, deixamos de saber o que será mais triste, se a jukebox ou o caixão».
Todas estas imagens do quotidiano parecem conter pouco, têm pouco para mostrar ou contar. Absoluto logro. Cabe-nos perguntar: que experiência do real nos é suscitada por cada imagem, quando nada parece acontecer? Como é que a imagem nos olha e nos indexa a um passado? De que modo cada imagem nos projecta para além do visível, para além do representável? Estas são questões frequentemente suscitadas por Daniel Blaufuks, mediante uma prática visual que clama por uma outra atenção, uma outra disponibilidade perceptiva, entre a apreciação estética e a especulação diegética e temporal, susceptível de nos conduzir para uma rede rizomática de possibilidades de crescimento e de perspectivas sempre adiadas, que parece reflectir o próprio feixe aleatório de possibilidades da imaginação e da rememoração.
[O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.]
[2] Jack Kerouac, na introdução a Robert Frank (1058), The Americans, Steidl, Göttingen, 2008.